Os direitos que exigem os estudantes da saúde

No Dia do Estudante, bolsistas do Mais Médicos relatam situação precária em universidades privadas autorizadas no âmbito do programa. Em seu relato, pedem apoio à sua mobilização: “O Governo Federal precisa entender que estamos adoecendo”

Créditos: Associação Nacional dos Bolsistas Mais Médicos
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O acesso ao ensino superior público no Brasil ainda é muito desafiador e, em graduações mais concorridas como na Medicina, o processo de aprovação pode ser longo e adoecedor. A existência de modalidades de acesso a estudantes de baixa renda no ensino superior privado, por meio de programas de bolsas governamentais, são alternativas – no entanto, a inserção de pessoas hipossuficientes na rede privada têm evidenciado a desigualdade social e favorecido o adoecimento da força de trabalho da saúde.

O Programa Mais Médicos (PMM), criado em 2013 como resposta emergencial à escassez de médicos em regiões remotas do país, se consolidou como uma das maiores estratégias de enfrentamento às desigualdades em saúde no Brasil. No entanto, ao longo da última década, o Programa também deu origem a uma modalidade de acesso ao ensino superior que ainda é pouco conhecida: as bolsas Mais Médicos para estudantes brasileiros em vulnerabilidade socioeconômica.

Essa política, que deveria representar uma porta de entrada para jovens de comunidades marginalizadas ao curso de Medicina, revela contradições profundas ao garantir o acesso, mas não possuir mecanismos que garantam a permanência, a formação e fixação destes futuros profissionais nas regiões prioritárias do SUS. Tampouco regula as regras para manutenção das bolsas, o que desencadeia diversas formas de violência institucional, exclusões veladas e uma ausência de regulamentação que ameaça o próprio direito à formação.

A história que poucos conhecem é a daqueles que, após ingressarem no ensino superior por meio das Bolsas Mais Médicos, passaram a enfrentar não só os desafios típicos do curso de Medicina, mas também a negligência institucional e a inexistência de políticas públicas efetivas de permanência no âmbito do Programa, tanto governamental, quanto das próprias instituições privadas. Sem garantias claras sobre bolsas, assistência estudantil ou mesmo sobre a conclusão do curso, em março de 2023, no interior do Maranhão, teve início a Mobilização Nacional dos Bolsistas Mais Médicos, que obteve rápida repercussão nacional, e logo pode contar com o apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE).

Foi assim que surgiu um movimento que vem rompendo o silêncio em torno da realidade desses acadêmicos nas áreas remotas do Brasil. Em um contexto de crescente mercantilização do ensino superior, com instituições privadas lucrando milhões enquanto estudantes em vulnerabilidade são ignorados, o movimento exige regulação, dignidade e voz.

Com o edital lançado pelo MEC em 2023, prevendo a autorização de 95 novos cursos de Medicina em todo o país, a esperança e a desconfiança caminham lado a lado. Embora algumas das pautas estudantis tenham sido acolhidas – como ações afirmativas e implementação de bolsa de permanência para os bolsistas dos futuros campus –, não há clareza sobre valores, fontes de financiamento ou operacionalização das bolsas. O medo é que a história se repita: uma política lançada com boas intenções que, na prática, exclui os mais vulnerabilizados.

“De março de 2023 para cá foram inúmeras reuniões no Ministério da Educação, no Ministério da Saúde, na Secretaria de Relações Institucionais e na Secretaria de Relações Sociais da Presidência da República. Pelas vias institucionais, já batemos em todas as portas possíveis” relatou Jefferson Alves, fundador do movimento.

Em 12/12/2023, o ministro da Educação, Camilo Santana, validou a Mobilização, informando que estava ciente dos desafios e que trabalhariam para que em 2024 fosse implementada a bolsa de permanência para os acadêmicos de Medicina do Programa Mais Médicos, no evento “Projeto Formação Médica para o Brasil” realizado em parceria a Associação Brasileira de Educação Médica, Ministério da Saúde, Ministério da Educação e OPAS.

Entre 13 e 15 de março de 2024, durante a Conferência Regional da Educação Superior (CRES+5) foi entregue o projeto para regulamentação da modalidade com as principais demandas dos estudantes nas mãos do ministro. Ao longo do ano foram realizadas outras reuniões com o MEC, porém sem execução do prometido.

Jefferson Alves destacou também que “Não tem sido fácil organizar as demandas de estudantes vulnerabilizados que vivem realidades tão distintas em um país continental como o Brasil. Mas queremos uma Medicina com a cara da juventude brasileira, entendemos que existe uma necropolítica, que diz que a graduação é um não lugar para nós, mas temos lutado para que nossos companheiros não vivenciem a violência institucional que temos enfrentado”. Segundo ele, o movimento está com três processos em andamento junto ao MEC, mas a assinatura final de Camilo Santana tarda a acontecer. “Não entendemos a letargia desse processo, em dezembro de 2023 ele prometeu publicamente que ainda naquele ano superaríamos esses desafios, mas já estamos quase entrando em 2026… nao sabemos em qual conjuntura estaremos no próximo ano, precisamos de respostas!”

Relatos dos estudantes

Entre os relatos colhidos pela Associação Nacional dos Bolsistas Mais Médicos, surgem histórias de superação, mas também de dor e abandono. Leia algumas abaixo.

“Sou indígena do Povo Kanindé no Ceará. Após sair da escola indígena, onde fiz meu ensino fundamental, fui para a cidade de Canindé cursar o técnico de enfermagem junto com o ensino médio, logo depois comecei a trabalhar. Quando eu passei para Medicina com a Bolsa do Mais Médicos precisei largar o emprego. Atualmente, estou no fim do 4º ano de medicina. Todo semestre é uma dúvida acerca da minha permanência no curso. Eu sou filho de agricultores e as coisas são bem difíceis sem trabalhar. Algo que me entristece muito é que outras instituições de ensino, como federais e outros programas, fornecem auxílio para alunos indígenas, mas eu sou abandonado por estar dentro de uma particular, mesmo com todo o contexto de vulnerabilidade. Acredito que a assistência estudantil tornaria mais digna não só a minha, mas a trajetória de todos os bolsistas do programa Mais Médicos. Acho que a discussão aqui é sobre ter o básico e se sentir minimamente seguro em poder ‘apenas’ estudar, sem se preocupar com alimentação, higiene e outros gastos necessários ao longo do semestre” relatou Robson Kanindé.

Bárbara Cunha, estudante da Bahia, disse: “Entrei na Bolsa Mais Médicos com a nota do Enem. Tenho 36 anos, casada e mãe de 3 filhos e sou técnica de enfermagem. Atuo na área há mais de 14 anos para ajudar na manutenção do lar. Consegui chegar até aqui com muita dedicação e ajuda dos familiares como rede de apoio, pois tive que abandonar o trabalho por questões de carga horária integral do curso. Portanto, o programa tem proporcionado a integralidade da mensalidade do curso, mas deixa o aluno em total abandono em questões de bolsa permanência para ajuda de custo, como já é verídico em outros programas como o Prouni, e faz nos encontrar em situação de total dificuldade para manter despesas como transporte, alimentação e custos do próprio corpo discente que é exigido em cada semestre. Precisamos urgentemente de visibilidade e que os pedidos já feitos para os órgãos competentes sejam atendidos para nossa bolsa permanência e regulamentação do nosso programa!”.

“Tenho 31 anos, estou no sétimo período e sou bolsista do programa Mais Médicos. Trajetória muito significativa pois sou a primeira pessoa da minha família a chegar ao ensino superior. Como mulher autista, com transtornos do processamento sensorial e auditivo, minha caminhada acadêmica é uma constante busca por adaptação e superação. Minha realidade se torna ainda mais complexa ao conciliar os estudos com o cuidado da minha mãe, que criou a mim e meus irmãos sozinha e hoje, também como pessoa com deficiência (PCD), enfrenta uma doença neurodegenerativa. Diariamente, enfrento o desafio de estar em ambientes hospitalares repletos de estímulos intensos, como ruídos e luzes que sobrecarregam meus sentidos, e de processar a avalanche de informações auditivas e visuais nas aulas e discussões clínicas. Para conseguir acompanhar, desenvolvi minhas próprias estratégias, como o uso de abafadores de ruído e entre muitas outras. Mas as adaptações (materiais e transportes ) e tratamentos (medicamentosos e com especialistas) além dos tratamentos de minha mãe exigem custos que vão muito além das minhas condições financeiras.  Minha história é um testemunho da interseccionalidade de ser mulher, autista, cuidadora e estudante de medicina, e espero que ela ajude a melhorar e tornar perceptível a necessidade de um ambiente acadêmico e de saúde verdadeiramente inclusivo e consciente sobre as diversas formas de existir e aprender proporcionando condições  de permanência aos alunos que estão em vulnerabilidade” relatou Tamires, uma das líderes do Movimento.

Matheus, da cidade de Jacobina, no interior da Bahia, relatou: “Sou um jovem negro, filho de mãe solo, e o primeiro da minha família a ingressar no ensino superior. Entrei no curso de Medicina em 2023, realizando um sonho que sempre pareceu distante. Durante muito tempo, achei que não teria oportunidade de cursar Medicina, mas graças a um programa de bolsas, essa porta se abriu. Ainda assim, mesmo com a isenção das mensalidades, enfrento muitos desafios no dia a dia. A ausência de uma bolsa de permanência torna tudo mais difícil, já que há outros custos envolvidos, como alimentação, deslocamento até a faculdade e campos de prática. A luta para permanecer no curso é constante, mas sigo firme, acreditando que a educação transforma vidas e a minha já está sendo transformada”.

Essas vozes escancaram as falhas de um sistema que, sem regulamentação estatal firme, perpetua desigualdades e compromete a equidade no acesso à formação médica.

Estudantes organizaram ato

No dia 12 de dezembro de 2024, em um ato inédito de resistência, estudantes bolsistas vinculados ao Programa Mais Médicos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, assentados, amazônidas, pessoas com deficiência, favelados, periféricos e do interior, ocuparam o Ministério da Educação, denunciando a letargia do Governo Federal diante das graves violações enfrentadas dentro das instituições privadas de ensino superior autorizadas no âmbito do Programa. A mobilização teve como objetivo pressionar o MEC a tomar providências concretas sobre a regulamentação das bolsas e garantir mecanismos de permanência estudantil.

Durante o ato, os ativistas foram recebidos por representantes da SESU, SERES, DDES e DIPES/MEC, que informaram que os processos estavam em andamento, que a parte burocrática no sistema estava bem encaminhada, mas que seria necessária a aprovação da LOA e após isso a assinatura do Ministro na Portaria. Prometendo encaminhar soluções estruturais para os principais desafios relatados, como a falta de isenção nas taxas dos processos seletivos que possuem preços abusivos, cancelamento de bolsa por baixo rendimento em uma disciplina, impossibilidade de trancamento de curso por motivos de saúde. No entanto, novos prazos, novas reuniões, porém ainda sem execução do solicitado – aprofundando ainda mais a sensação de abandono e descrédito entre os bolsistas.

“Estamos cansados de promessas vazias. O governo precisa entender que estamos adoecendo e morrendo tentando nos manter na universidade”, declarou uma das ativistas, em fala registrada durante a ocupação. 

O movimento cobra mais que promessas: quer um programa reestruturado, comprometido com a integração ensino-serviço-comunidade, com qualidade e equidade. Quer segurança de que quem entrou e quem vai se formar. E quer o fim da invisibilidade.

Se o Brasil deseja uma saúde pública fortalecida, precisa começar pela base: pela formação de médicos e médicas comprometidos com o SUS e com suas comunidades – e isso só será possível garantindo que ninguém seja deixado para trás.

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