Oposição tentará impugnar eleições do CFM

• ESPECIAL: ELEIÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA •

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O processo eleitoral que elegeu a nova diretoria do Conselho Federal de Medicina, para a qual cada estado indica dois representantes, extrapolou os muros da categoria e entrou para o debate público com repercussão inédita. Rapidamente percebido como mais um capítulo da chamada polarização que divide o país, o pleito ficou marcado pela disputa de chapas ultraconservadoras identificadas com o bolsonarismo e oposições que clamaram pela recuperação do órgão a suas funções precípuas, como o exercício da medicina e questões de saúde pública. Em quase todos os estados, os candidatos da direita reacionária levaram a melhor, com exceção de Pernambuco e Paraíba. No entanto, as oposições vão à justiça contestar o resultado das eleições.

“Há incompatibilidade de números de votantes apresentados no relatório da apuração de votos, mais votos apurados que eleitores votantes. Com isso pediremos impugnação ao Ministério Público Federal”, disse uma fonte oposicionista ao Outra Saúde, que pediu anonimato. “Há graves divergências entre o número de eleitores votantes e o número total de votos apurados, dúvidas acerca da correção de tais dados oficialmente informados, com potencial para gerar questionamentos e nulidade do pleito”, manifestou-se a Chapa ConsCiência, que concorreu em São Paulo.

“Queremos transparência de todo o processo eleitoral, desde a cerimônia de abertura em 6 de agosto até o final da apuração. Queremos um relatório total com log, IP, data e horário de acesso ao banco de dados de todos os eleitores”, completou a fonte a este boletim.

Campanha ilegal

Como demonstrado pela imprensa, em São Paulo houve disparo ilegal de mensagens da chapa 2. Ela foi apoiada em público por figuras alheias à medicina e propagandistas da cloroquina, como o dono da Lojas Havan, que autorizou o tratamento ineficaz de covid em sua própria mãe, que faleceu. Ou seja, para além da possível fraude, houve evidente abuso de poder na campanha eleitoral, a exemplo das eleições dos conselhos regionais do ano passado, quando assédio e tentativas de supressão de chapas de oposição ocorreram.

Desta vez, a direção da autarquia informou ter pedido investigações à Polícia Federal a respeito do envio não autorizado de mensagem aos médicos com direito de voto. Por ora, não informou como andam as investigações. Ademais, diz-se que a Polícia Federal já investigava o CFM em alguns estados por mau uso de verba pública e a mobilização da atual direção teria conseguido evitar a publicização das investigações antes das eleições.

Intervenção contra “perigo à sociedade”

“É muito importante contestar a eleição. A nossa presença deve ser de atenção e vigilância enquanto grupo de médicos críticos e em oposição ao grupo que manda há 25 anos no CFM. Precisamos denunciar irregularidades e exigir punição rigorosa”, comentou Ana Costa, médica e diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes). Cerca de dois meses atrás, Olímpio Moraes, diretor do Hospital da Universidade de Pernambuco e do Centro Integrado de Saúde Amaury Medeiros (Cisam), mais conhecido como Maternidade da Encruzilhada, já defendia intervenção federal no órgão.

À época, o Brasil se espantava com o PL 1904, popularizado como PL do Estuprador e amplamente rechaçado pela sociedade. O CFM foi mentor intelectual do Projeto de Lei e Olímpio Moraes o qualificou como “perigo à sociedade”. Nesse sentido, cabe destacar ainda que o CFM, uma autarquia estatal, abandonou todos os espaços institucionais de elaboração de políticas públicas, como o Conselho Nacional de Saúde.

Interesses em jogo

Como debatido em matérias recentes do Outra Saúde, o fanatismo ideológico que culminou em crimes brutais contra a saúde pública na pandemia, quando centenas de milhares de vidas foram ceifadas a partir da ação sabotadora do governo Bolsonaro, apoiado pelo órgão. O CFM é uma autarquia de Estado que arrecada centenas de milhões de reais por ano, como mostra sua prestação de contas. Em São Paulo, um médico paga anuidade de cerca de R$ 700 reais para o Conselho Regional de Medicina para se manter filiado ao órgão. Deixar de votar implica multa de R$ 94 reais. Para efeito de comparação, nas eleições gerais no Brasil, onde o voto é obrigatório, as multas para quem não comparecer às urnas são de valores irrisórios, inferiores a uma passagem de ônibus.

Ser conselheiro virou carreira”, disse outra fonte ao Outra Saúde, também preservada no anonimato pois corria risco de retaliações à sua chapa de oposição. “Tem a ver com a economia da saúde, numa abordagem mercantil estratificada, capturada pela medicina dos planos privados, uma medicina anti-SUS”, analisa José Noronha, sanitarista histórico, ex-secretário de Atenção à Saúde (que posteriormente seria dividida em Atenção Primária e Especializada) do ministério e membro da Frente Pela Vida.

Prioridades

Saúde coletiva, políticas públicas, formação de profissionais e posterior inclusão no mercado de trabalho? Para Francisco Cardoso, conselheiro eleito por São Paulo, nada disso é importante. Em suas redes sociais, o médico destila ódio à esquerda e levanta surrados espantalhos ideológicos: “se os esquerdopatas não gostam, estamos no caminho certo”, publicou. Sobre o Mais Médicos, não teve medo de emitir seus valores corporativistas e elitistas: “em qualquer lugar do mundo, quem mora no interior tem que se deslocar para achar especialistas. Mais Médicos é discurso de comunista que vulgariza a profissão. Se ligue”. 

Choques geracionais

Estela Aquino, médica e professora aposentada de Saúde Coletiva na UFBA, corrobora que por trás da radicalização com tinturas de charlatanismo há disputas mais objetivas. Para compreender a transformação do órgão em puxadinho partidário de reacionários e golpistas, analisa as disputas políticas que marcam o Brasil pós-ditadura. “O debate sobre a categoria médica precisa de análises sociológicas. O movimento de residentes e o movimento médico no fim dos anos 70 e início dos 80 se somaram a outras categorias assalariadas, quando o mito do profissional autônomo se desmanchava e lutávamos pela democracia. Hoje temos um cenário de pejotização da categoria médica que está emprenhada pela ideia de empreendedorismo e tomada pelo antipetismo (contra o Mais Médicos e pelo ato médico)”.

No entanto, também há um processo de mudança no perfil do profissional médico. Trata-se de uma ocupação que perdeu parte de seu caráter elitista de épocas passadas. No Brasil, o número de médicos quase dobrou neste século e a expansão do ensino, mesmo altamente privada, forma milhares de profissionais de estratos socioeconômicos diferentes da tradição. O próprio Programa Mais Médicos em sua retomada em 2023 bateu recordes de inscritos. A Demografia Médica, pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da USP, mostra que a mudança galopa. Até 2035, o Brasil deverá contar com 1 milhão de médicos. Mulheres serão maioria de uma categoria que será mais jovem e menos branca. E, com ou sem impugnação das eleições, os resultados mostram diferenças ajustadas entre o que se pode classificar de conservadores e progressistas. Nada será igual na medicina brasileira.

Atualização:

Nesta manhã, a Comissão Eleitoral do CFM indeferiu os pedidos de impugnação do pleito da oposição de SP e afirmou que o número de votos corresponde ao de eleitores, uma vez que alguns podem votar mais de uma vez caso possuam registros profissionais em diferentes estados, o que é permitido. No entanto, chapas de oposição de outros estados ainda vão apresentar recursos. Por fim, a oposição promete judicializar a eleição fora do âmbito da autarquia.

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