“O SUS que está aí é uma caricatura”
Para Jairnilson Paim, em momento de divórcio do capitalismo com a democracia, sistemas universais estão ameaçados. No Seminário SUS 35 anos, ele alerta: só a organização política pode conquistar o SUS que o povo merece, hoje deformado por políticas de austeridade
Publicado 22/09/2025 às 11:58 - Atualizado 22/09/2025 às 12:17

Nos dias 18 e 19 de setembro, Outra Saúde ajudou a realizar um seminário para marcar a data em que a lei que regulamentou o Sistema Único de Saúde completou 35 anos. Foram 25 convidados que dialogaram em quatro mesas de debate, uma sessão especial, uma conferência e o lançamento de dois livros. Em pauta, temas que abordam os principais entraves impostos à concretização de um sistema de saúde que atenda com dignidade todos os 210 milhões de brasileiros – e as novas oportunidades para fortalecê-lo.
Um dos sanitaristas que melhor contribui para resgatar as bases da Reforma Sanitária Brasileira – e para demonstrar o quanto estamos longe de ter um SUS do tamanho do povo brasileiro – é Jairnilson Paim. Professor e fundador do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, ele foi um dos participantes da conferência final do seminário, na sexta-feira à noite, ao lado de Gonzalo Vecina.
Em entrevista exclusiva concedida a este boletim, algumas horas antes do encerramento do evento, ele refletiu sobre o ponto em que estamos, três décadas e meia após a Lei Orgânica da Saúde. Alerta: o que vivemos hoje é “uma caricatura” do SUS projetado na Constituição de 1988. Mas o jogo não está perdido, desde que a sociedade continue lutando pela sua construção e para resgatar seus ideais.
Jairnilson recorda que no princípio, a Reforma Sanitária não era pensada apenas como uma formulação para a saúde pública, mas também “precisava ser acompanhada pela reforma urbana, reforma agrária, reforma universitária, reforma tributária, reforma moral e intelectual da sociedade”. Esse horizonte, de certa forma, se perdeu – mas pode ser resgatado, inclusive incorporando novas pautas e proposições que não estavam presentes nos anos 1980.
“Na disputa entre os Poucos e os Muitos, os poucos controlam tudo, mas têm muita clareza dos seus interesses. Eles sabem que nós somos o inimigo deles”, alerta, ao refletir sobre como o capital busca se infiltrar e destruir as bases do sistema público e a noção de saúde como direito social.
“A única coisa que os Muitos têm a fazer é lutar”, sintetiza Jairnilson. “Se o grande problema do SUS é político, como eu já escrevi e muitos vêm reiterando, a forma como vamos ter que encarar esse desafio é por meio da organização.”
Fique com a entrevista completa.
Que SUS é esse que encontramos 35 anos depois da promulgação da Lei Orgânica da Saúde, a Lei nº 8080/90?
É quase uma caricatura do SUS projetado na Constituição Federal de 1988.
Por quais razões ele é uma caricatura?
Historicamente, foram surgindo várias concepções acerca do SUS. Existe o SUS da Reforma Sanitária. Há também o SUS da Constituição de 1988, que é muito distante desse sistema que nós temos visto. Ainda podemos falar da proposta de um SUS pobre para os pobres. E existe o SUS real – faço um trocadilho entre a realidade e a moeda Real –, em que a moeda é mais importante do que a vida e a saúde das pessoas. Esse SUS real é refém do setor privado, mas também de uma forma de gestão e governança baseada no capitalismo e no clientelismo.
As pessoas esquecem, às vezes seletivamente, mas no início da Reforma Sanitária o Sérgio Arouca falava de uma “totalidade de mudanças”, isto é, ela precisava ser acompanhada pela reforma urbana, reforma agrária, reforma universitária, reforma tributária, reforma moral e intelectual da sociedade. Esse conjunto de reformas se perdeu, não são mais nem postas em questão. Isso está conectado com o fato do SUS que está aí ser uma caricatura, um primo pobre de um projeto mais amplo. Por exemplo, o fato de que hoje já não se fala em socialismo – nem mesmo em socialismo democrático – significa que uma dimensão importante da Reforma foi excluída de todas as discussões acerca do SUS. Ao analisar as políticas públicas de uma perspectiva sócio-histórica, é importante saber como elas foram pensadas.
Também é importante fazer esse resgate dos “possíveis mortos” pelo caminho, não para desenterrar os defuntos, mas para podermos ter novas possibilidades de utopia e não rebaixarmos aquilo que já havia sido pensado antes. Além disso, essas discussões que têm sido feitas aqui no Seminário, muitas das quais não foram pensadas originalmente pela Reforma, ajudam a aprofundar alguns avanços que tivemos.
Quais você acredita que são os caminhos para construir o SUS da Reforma Sanitária nessa sociedade tão mudada desde aquele tempo?
O mundo mudou muito nesses 35 anos. Nós temos hoje uma situação que aprofunda a crise anterior do capitalismo internacional, iniciada em 2008, e que resulta em uma série de patologias tanto na geopolítica quanto no interior da formação social de cada país. O Antonio Gramsci tem uma frase muito conhecida que diz que quando o velho não morreu e o novo ainda não pode nascer, todas as patologias sociais podem aparecer. Uma delas é o fascismo, que no seu eterno retorno, já se apresenta hoje no Brasil com características próprias. No âmbito internacional, ele se configura mais agudamente com as vitórias de Donald Trump em 2016 e 2024.
Esse é um período em que muitas políticas resultantes da “fase áurea” do capitalismo do imediato pós-Segunda Guerra até a metade dos anos 1970, em especial os sistemas universais de saúde, estão sendo questionadas. Isso nos deve fazer perguntar se a natureza do capitalismo não é incompatível com a democracia e os sistemas universais de saúde. Também nos deve fazer perguntar se a “fase áurea” não era apenas um ponto fora da curva, e se o capitalismo não voltou de vez à sua face mais dura, mais excludente, mais reprodutora de desigualdades e de criação de sociedades menos solidárias.
Eu acho que o SUS vive esse enfrentamento hoje. Não é possível ver o SUS sem ver sua relação com o capital da Saúde e de fora da Saúde, e no âmbito de um capitalismo periférico como o do Brasil, que está sendo um coadjuvante nas decisões do mundo no atual pós-multilateralismo.
E que outras características do SUS da Reforma você acha que deveriam ser resgatadas?
Um dos pontos que está sendo muito retomado hoje é a questão da soberania. A Reforma Sanitária sempre foi uma alternativa ao que o imperialismo norte-americano propunha para nós. Também foi um certo terceiro-mundismo, quer dizer, uma forma de um país do Sul Global ter uma alternativa de organização econômica, social e política.
Na nossa geração isso foi muito marcante devido ao exemplo da Revolução Cubana. O Enrico Berlinguer dizia que “as revoluções, como as reformas, não se exportam”, mas o nosso objetivo não era reproduzir, apenas também ter o horizonte do socialismo, como se vê nos primeiros documentos da Reforma Sanitária. Levantar a bandeira do direito à saúde sem se limitar a ampliar os serviços de saúde, reconhecendo que o capital é patogênico. Isso se expressou um pouco na discussão de Saúde do Trabalhador que tivemos aqui no Seminário.
Depois da pandemia, parece ter acontecido uma mudança de percepção da importância do SUS, inclusive por parte do setor privado e daqueles que nunca o prestigiaram. Antes, o empresariado apostava em menosprezar o SUS e atrair a população para a saúde suplementar, agora ele parece querer desenhar o SUS e disputar seus recursos. Essa disputa por qual SUS temos e teremos também passa por aí?
Acho que tem duas nuances nessa pergunta. Uma delas é a posição do setor privado, que sempre se aproveitou do subfinanciamento crônico do sistema para expandir seus negócios, e hoje “defende o SUS”. Mas qual SUS? Eles falam de uma “reforma do SUS” ou de uma “integração com o SUS”, como se fosse possível integrar a saúde como direito e a saúde como mercadoria.
Outra é a posição da mídia hegemônica. No que se refere à mídia, antes da pandemia, ela se concentrava na acusação das falhas do SUS – apontando a demora das filas, os corredores lotados, todas aquelas situações. Depois da pandemia, as grandes redes de televisão e os grandes jornais passaram a desenvolver um discurso diferente do anterior.
Hoje [dia 19 de setembro, data da promulgação da Lei Orgânica da Saúde], elas estão fazendo reportagens sobre o “dia do SUS” e chamando a atenção para a gratuidade. Quer dizer, quando você foca nisso, a saúde ainda é vista como uma mercadoria, só que gratuita – em nenhum momento se apresenta a saúde como um direito. Ficamos subordinados a uma noção de que recorrer ao SUS é a possibilidade de você ser consumidor de um serviço, e não um momento em que você realiza a sua cidadania e o direito à saúde.
São nuances para as quais começamos a prestar atenção. Todos são favoráveis ao SUS, ninguém hoje tem a coragem para chegar e dizer “eu sou contra o SUS”. Agora, é um SUS que passa a ser uma caricatura, porque é um SUS tão reduzido, tão limitado, com possibilidades de produção de sentidos tão radicalmente deturpadas, que quem ganha mesmo com essa defesa do SUS é o capital.
Eles ganham inclusive uma fronteira de expansão dos lucros, já que a saúde privada parece ter encontrado um teto de mercado no Brasil.
Eles vão capturando o orçamento público e, como são vasos que se comunicam, cada avanço do setor privado é menos espaço para o SUS. Se aproveitando das dificuldades que a política de austeridade está impondo ao SUS, eles disputam todos os espaços: o financiamento, a infraestrutura, os trabalhadores, os modelos de atenção, reforçando um modelo médico-hegemônico… Com isso, conseguem seguir crescendo, mesmo que os planos de saúde fiquem naquela faixa de 25% da população. Arranjam outras maneiras de transformar dinheiro em capital, que vai ser aplicado na Bolsa de Valores e compra carteiras de clientes sem que essas empresas necessariamente produzam serviços de saúde ou possuam uma rede de assistência.
Acho que, a partir de 2018, as situações se modificaram tanto que a produção de conhecimento não acompanhou completamente a dimensão dessa financeirização da saúde e quais são os riscos para o sistema público. Nunca passou pela cabeça de muitos pesquisadores que uma rede de hospitais privados fosse comprar uma operadora de planos de saúde e que, depois, esse mesmo grupo comprasse uma intermediadora de serviços – também chamada de “administradora de benefícios” – que tem uma grande fatia do mercado. Antes, se pensava no contrário, em operadoras comprando hospitais: aquilo que se chamava de “verticalização”, em que a empresa administra tudo, até a unidade hospitalar.
Hoje, a disputa é entre grupos empresariais que, além dos serviços hospitalares, possuem as operadoras de planos de saúde e as intermediárias. E o fato novo é que o mercado está sendo distribuído de uma forma nova, criando um novo produto para pegar a classe média baixa. É o que eles tentam com os planos acessíveis ou populares.
Se não estivermos atentos e investigando isso, no limite, vamos ter apenas uma retórica de indignação, sem entender o fenômeno que está acontecendo.
O David Capistrano Filho, homenageado no nosso Seminário, dizia que era “favorável a uma estratégia de confronto, de conflito”, já que a busca brasileira pelo consenso é o que permitiu a perpetuação de tantas injustiças por séculos. Acho que isso tem um parentesco com sua ideia de que a Reforma Sanitária acabou sendo apenas uma reforma parcial, mas só foi possível porque havia um horizonte de reformas totais e até de uma “revolução do modo de vida” no Brasil. Quais são os caminhos para reconstruir uma “estratégia de confronto” ou um horizonte de reformas totais, de uma revolução no modo de vida?
Vou dar um exemplo. Ninguém diz que a ideia da reforma agrária acabou, pois existe um sujeito coletivo chamado MST que faz com que a luta continue. Fazendo um paralelismo, a Reforma Sanitária não fez o que prometeu completamente, mas essa reforma tem um conjunto de sujeitos coletivos que mantém o debate vivo. Não é porque estou aqui com vocês, mas o Outra Saúde é um deles, tal como o Cebes, a Abrasco, a Sociedade Brasileira de Bioética. Quem imaginaria que, em plena pandemia e com um neofascista no Governo Federal, apareceria algo como a Frente Pela Vida, que é outro desses sujeitos coletivos?
Essas contradições que estamos expondo podem resultar em confronto ou não. O que é preciso é retomar a organização política. O confronto com o capitalismo implica as lutas sociais, que supõem a organização.
Na disputa entre os Poucos e os Muitos, os poucos controlam tudo, mas têm muita clareza dos seus interesses e de quem são seus inimigos e adversários. Eles sabem que nós somos o inimigo deles. Já os Muitos não têm sempre clareza de seus interesses, e nos últimos anos, têm se fracionado em torno de pautas legítimas, mas cada vez mais diversas. A única maneira que os Muitos têm de mudar a sua situação é se organizar politicamente. Se o grande problema do SUS é político, como eu já escrevi e muitos vêm reiterando, a forma como vamos ter que encarar esse desafio é por meio da organização.
A experiência mostra que, para além das redes sociais, é preciso ir na casa das pessoas, olhar nos olhos, conversar, fazer os parlamentares assinarem compromissos escritos de que não vão votar com o inimigo, combater o transformismo. É preciso retomar o olho no olho.
O Gramsci dizia, com outras palavras, que é muito difícil fazer prognóstico em política, o que é possível fazer é a luta. Diante da manutenção e reprodução do capitalismo, a única coisa que os Muitos têm a fazer é lutar. Se não, vamos sempre, sempre matar amanhã os velhotes inimigos que morreram ontem.
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