O que Lula precisa vetar no PL das Cobaias

Para entidades, projeto aprovado pelo Congresso Nacional piora transparência dos estudos das farmacêuticas com humanos. Se quiser defender a ética em pesquisa, elas dizem, Governo Federal deve barrar trechos da lei

Foto: Divulgação
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Nesta terça-feira (28/5), se encerrará o prazo para que o presidente Lula vete o Projeto de Lei 6.007/2023. O “PL das Pesquisas Clínicas”, como ele é conhecido, também tem sido chamado por alguns de seus críticos pelo apelido de “PL das Cobaias” ou “PL das Cobaias Humanas”.

Isso porque seu conteúdo, a pedido do setor empresarial farmacêutico, promove alterações no sistema de ética em pesquisa que fragilizam radicalmente o controle social sobre os estudos com seres humanos, estruturado por instituições estabelecidas há três décadas no país e bastante consolidado. Isto é, pode ser reduzido o controle que garante que os procedimentos estão dentro da lei e respeitam a dignidade dos participantes. Inicialmente, o projeto chegava a extinguir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos, excluindo a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) do controle dessas atividades. Após muita pressão, em especial do Conselho Nacional de Saúde (CNS), esse ponto foi suprimido – mas vidas podem seguir em perigo com o avanço do conjunto do PL.

Quarenta entidades científicas, da saúde e de trabalhadores do setor farmacêutico, encabeçadas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), divulgaram uma nota que indica a Lula que vete, prioritariamente, oito pontos centrais do projeto — que, eles dizem, podem ser os mais danosos para a solidez da ética em pesquisa no Brasil.

Já aprovado pelas duas casas do Congresso Nacional e encaminhado para sanção presidencial, o projeto só pode ser alterado pelo veto de Lula (salvo, é claro, eventuais questionamentos na Justiça). Por isso, há grande urgência das entidades de que o Governo Federal não deixe passar a oportunidade de defender o rigor científico e a dignidade humana com esta ação.

Outra Saúde conversou com Elda Bussinguer (SBB), Fábio Basílio (Fenafar), Fernando Pigatto (CNS), Francisco Viegas (MSF), Reinaldo Guimarães (Abrasco) e Susana van der Ploeg (GTPI), representantes de entidades que se opõem ao atual texto do PL das Pesquisas Clínicas (e, em alguns casos, participaram da construção da nota crítica), para que apresentem sua visão sobre o projeto. Confira, a seguir, seus depoimentos.

ATUALIZAÇÃO: Ao sancionar a lei no dia 28/5, Lula atendeu a apenas dois dos oito pedidos de veto das entidades: o que regula a participação de membros de grupos indígenas em pesquisas e o que orienta o acesso pós-ensaio a medicamentos. O texto final da Lei nº 14.874/2024 pode ser lido aqui.


Elda Bussinguer, doutora em Bioética, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)

A Sociedade Brasileira de Bioética entende que estamos vivendo um momento crucial no que respeita à Ética em Pesquisa no Brasil. Caso o projeto de Lei 6007/2023, aprovado pelas duas casas, seja sancionado sem vetos pelo Presidente da República,  teremos um enorme retrocesso no que respeita a Direitos dos participantes de pesquisa e   riscos incalculáveis inerentes a violações éticas, civis e criminais envolvidas na experimentação com seres humanos.  A história precisa ser pedagógica no sentido de nos lembrar os horrores expostos no Tribunal de Nuremberg e de tantos outros casos emblemáticos que já vivenciamos. A história precisa nos servir de alerta e de lembrança,  reforçando que pesquisadores não podem fixar seus próprios limites éticos. 

O projeto aprovado fragiliza o sistema de regulação da pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil, já que institui um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos descompromissado com o Controle Social, delegando ao Executivo a regulamentação.

 Da mesma forma altera a composição dos Comitês de Ética em Pesquisa ignorando o papel importante de bioeticistas, filósofos, juristas, sociólogos, teólogos, bem como outros que garantiriam uma avaliação ética abrangente e imparcial. 

A concentração da avaliação ética das pesquisas multicêntricas  apenas no centro coordenador da pesquisa, instituição do coordenador da pesquisa,  coloca em risco uma avaliação ética  imparcial, promovendo um claro conflito de interesses. 

O projeto mantém a tutela dos povos indígenas, o que representa uma pratica que precisa ser superada no Brasil. 

São muitos os riscos inerentes ao Projeto de Lei e ele precisa sofrer vetos significativos por parte do presidente da República, se não quisermos entregar os participantes de pesquisa nas mãos de interesses privados, totalmente descompromissados com a dignidade, com os direitos humanos e com a soberania nacional. 

Ao possibilitar o envio de material biológico ao exterior o projeto de lei compromete os direitos dos participantes de pesquisa e a soberania nacional. A perda do controle e dos direitos sobre o material encaminhado ao exterior  são apenas alguns dos problemas inerentes a essa transferência. 

A possibilidade de patenteamento e comercialização do material biológico por entidades estrangeiras, mesmo com a vedação na legislação nacional, coloca em risco a soberania nacional sobre recursos genéticos e biológicos. 

Nesse sentido, a Sociedade Brasileira de Bioética, solicitou, em documento próprio, vetos ao presidente da República, além de assinar documento compartilhado com outras instituições.


Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS)

Inicialmente, assinamos a nota porque ajudamos a construí-la. O Sistema Nacional de Ética em Pesquisa funciona no âmbito do Conselho Nacional de Saúde e portanto faz parte da história do próprio Sistema Único de Saúde (SUS). Desde 1988, todo o aprimoramento desse sistema passou justamente pela possibilidade de termos a participação social à frente dele, obviamente integrada com todos os pesquisadores, participantes de pesquisas, entidades, enfim, uma ampla democracia instituída pra garantir a ética em pesquisa no nosso país. Por isso, nós nos empenhamos pela não-aprovação deste projeto desde a sua origem. Depois, quando houve a possibilidade de propor aperfeiçoamentos, o fizemos. Por fim, quando vimos que não teria como ele ser reprovado, sinalizamos para o Governo que defenderíamos o veto das partes do texto que não contemplam os anseios da sociedade brasileira. Temos convicção de que o Presidente da República terá sensibilidade e atenderá à nota que nós, juntamente com outras entidades, assinamos.


Reinaldo Guimarães, médico, pesquisador da UFRJ e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

Sobre o PL 6007/2023, a primeira coisa que eu gostaria de dizer é que o apelido ‘PL das Cobaias’ ou ‘das Cobaias Humanas’ é muito infeliz, tanto para os participantes de pesquisas clínicas quanto, talvez, pelos animais que se sacrificam por nós. Mesmo que mais comprido, acho que nós deveríamos falar do ‘PL das Pesquisas Clínicas’.

Haverá outras questões envolvidas, mas a que considero mais importante diz respeito à mudança da governança da revisão ética dessas pesquisas, hoje liderado pelo Conselho Nacional de Saúde na coordenação do sistema CONEP/CEP’s. A constituição de um novo organismo, vinculado ao Ministério da Saúde e designado por uma portaria (ou mesmo um decreto) em nada agiliza e, ao mesmo tempo, fragiliza a isenção da revisão.

Ministros e suas equipes vão e vêm e, nessa questão, não devemos pensar na equipe atual do MS; nós temos que imaginar um novo ministro Pazuello ou Queiroga. Já houve outras tentativas de retirar do CNS a liderança do processo e esse PL está tramitando há anos no Congresso. Sua primeira versão foi patrocinada por uma senadora com notórias ligações com a indústria farmacêutica multinacional e foi inspirada pela representante dessas indústrias no Brasil – a Interfarma.

O ponto de vista das indústrias patrocinadoras sobre os projetos de pesquisa clínica deve estar disposto apenas no protocolo que é apresentado por elas. Não há razão, nem lógica, nem política, nem operacional para ampliar a voz da Big Pharma no processo de revisão, pois isso implicaria em grave conflito potencial de interesse. Além disso, a indústria farmacêutica já tem representação no plenário do CNS.

Há outras deficiências no PL, mas gostaria de fixar-me nesta que, caso não seja revista, implicará em muito grave retrocesso histórico.


Susana van der Ploeg, coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI)

O PL das Cobaias Humanas surgiu de uma demanda da Interfarma, que representa os interesses das maiores empresas farmacêuticas transnacionais. Em outras palavras, não há interesse público envolvido, ou pelas vidas das pessoas no Brasil. A aprovação desse PL no Congresso Nacional é um indicativo de que os nossos parlamentares não estão preocupados em proteger a saúde do povo dos abusos de poder econômico.

É fundamental que o presidente vete o PL. O PL coloca tudo nas mãos do Ministério de Saúde e retira a CONEP-CEP do CNS. É o fim do controle social. Além disso modifica as bases da ética no Brasil, as resoluções anteriores, sem levar em conta todo o trabalho desenvolvido desde 1988.

Acabamos de sair de uma pandemia em que não houve responsabilização criminal ou civil de nenhum ministro, nem do ex-presidente, sobre as mortes absolutamente desnecessárias. Imagina deixar na mão de um governo negacionista e irresponsável a nomeação dos membros da Conep? Por outro lado, é muito bom o novo modo de conformação da CONEP: são os CEPs que apresentam ao CNS os candidatos para a CONEP e o CNS escolhe. Esse sistema garante autonomia e não as modificações ao sabor do governo.


Fábio Basílio, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar)

A Fenafar espera que o Governo Federal do presidente Lula vete alguns artigos do PL das Cobaias que foi aprovado, principalmente porque ele tira do CNS e da CONEP a responsabilidade da averiguação da parte ética das pesquisas, colocando nas mãos do Poder Executivo para regulamentar essa questão mas deixando em aberto como isso vai ser feito.

Outro problema muito grave do PL é que ele não fala que papel o Ministério Público pode ter nos casos de desvios que ocorrerem durante essas pesquisas. Ainda outro ponto muito importante que deve ser vetado é o que diz que as empresas podem parar de distribuir gratuitamente os medicamentos para as pessoas participantes de seus testes. Nesse formato, a pessoa pode estar tratando uma patologia com um medicamento experimental e a empresa simplesmente vai decidir se pode parar de entregar esse medicamento de forma unilateral.

Na verdade, há outros pontos em que há problemas, mas os principais são esses. O principal é tirar do CNS e da CONEP o acompanhamento ético das pesquisas em humanos, quando a Comissão já faz isso há muito tempo.


Francisco Viegas, assessor de Política e Inovação em Saúde da Campanha de Acesso da Médicos Sem Fronteiras (MSF) [A MSF não é uma das entidades que assinou a nota da Abrasco, mas apresentou posicionamento próprio, também contrário ao PL]

O projeto de lei é um retrocesso em relação ao que já temos nas legislação brasileira de proteção dos participantes de pesquisa clínica, particularmente porque o texto aprovado delega a decisão sobre o acesso pós-ensaio dos participantes aos medicamentos para o patrocinador da pesquisa. Há um claro conflito de interesse, que põe em risco um direito e uma garantia do do participante. Também é um retrocesso bem significativo a retirada de atribuições importantes da CONEP, que historicamente auxilia o monitoramento das pesquisas clínicas pra garantir a defesa dos direitos dos participantes das pesquisas e garante que no Brasil elas sejam conduzidos de forma ética.

Atualmente, o Brasil tem um sistema robusto e está alinhado com a Declaração de Helsinque, que determina que os benefícios da pesquisa clínica tem que ser superiores aos riscos e também que haja a oferta continuada de medicamentos pros sujeitos participantes dessa pesquisa. É importante que sejam respeitados esses direitos e garantias previstos em acordos internacionais. Nas próprias discussões do Acordo de Pandemias esse é um tema que que está na pauta: a importância do acesso pós-ensaio. Isso tem sido fortalecido nessas discussões e esse retrocesso na legislação nacional indica que o Brasil está indo na direção contrária do que está sendo posto como boas práticas de ética médica.

Os direitos dos participantes de pesquisa devem ser fortalecidos, e não enfraquecidos como é essa atual proposta legislativa. Por isso é tão importante que o presidente Lula vete esses artigos.

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