O oportuno resgate de Franca Ongaro Basaglia

Frequentemente apagada, a socióloga e senadora regulamentou o fim dos manicômios na Itália. Inspirou e aconselhou a Reforma Psiquiátrica do Brasil. Coletânea organizada por Paulo Amarante e Leandra Brasil apresenta seus escritos, inéditos em português

Foto: Quaderni di Inchiesta Sociale
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Um ato de justiça histórica com uma mulher que influenciou significativamente o movimento antimanicomial no Brasil começa a acontecer. Neste mês de agosto, foi lançada pela Editora Zagodoni a coletânea Ilhas, Percursos das Defesas e das Liberdades e Outros Ensaios sobre Direitos Humanos, Feminismo e Saúde Mental, que reúne textos da socióloga e senadora italiana Franca Ongaro Basaglia.

Enquanto parlamentar de esquerda, Ongaro Basaglia introduziu a lei que regulamentou o fim dos manicômios na Itália – e inspirou os brasileiros a fazerem o mesmo. Também ajudou a organizar o movimento da Psiquiatria Democrática, que impulsionou esse processo. Foi esposa e companheira de ideias de Franco Basaglia, médico marxista com um singular legado para o campo da saúde mental. Organizada por Paulo Amarante e Leandra Brasil da Cruz, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a nova obra marca a primeira vez em que os escritos da pensadora e militante italiana são publicados em português.

Em entrevista a este boletim, Amarante relembra a passagem de Ongaro pelo Brasil, onde conheceu e dialogou com os profissionais, usuários de serviços de saúde mental e ativistas que lutaram – e lutam – pela Reforma Psiquiátrica. “Embora fosse uma pioneira em escrever sobre a questão da mulher e saúde mental, ela ficou apagada pelo patriarcado e o machismo”, opina. Os textos da coletânea abarcam temas como o processo saúde-doença, a mulher e a “normalidade”, políticas públicas e até mesmo a saúde mental na China socialista, onde “700 milhões de pessoas tentam construir […] uma proposta prática de uma vida que vale a pena viver”, como escreveu nos anos 1970.

Outra Saúde conta um pouco da história e das ideias de Franca Ongaro Basaglia, além de publicar fotos inéditas de sua viagem ao Brasil. “Fazendo uma mea culpa histórica, é momento de recuperar Franca, uma pessoa com um trabalho muito importante e uma escrita muito bonita e poética”, defende Paulo Amarante.

Um pilar da Psiquiatra Democrática

A nova coletânea de escritos de Franca Ongaro Basaglia inclui seus textos “Saúde/doença”, “Ilhas, percursos das defesas e das liberdades”, “A situação italiana e as políticas de saúde mental”, “Mulher e normalidade” e “Introdução ao livro Saúde mental na China, de Gregorio Bermann”. A diversidade de temas reflete sua trajetória militante, que abarcou bandeiras como o fim dos manicômios e a emancipação das mulheres. 

Como conta o Dizionario Biografico degli Italiani, Franca Ongaro nasceu na Itália em 1928, na cidade de Veneza. Quando jovem, estudou Sociologia na faculdade – ainda que não tenha concluído o curso – e também se dedicou a escrever livros infantis. Na década de 1950, casou-se com o então estudante de medicina Franco Basaglia, adicionando o sobrenome do marido a seu nome. O irmão mais velho da socióloga, o celebrado quadrinista Alberto Ongaro, foi responsável pelo encontro. Alberto e Franco haviam se conhecido na prisão durante a Segunda Guerra Mundial, onde cumpriam pena pelas atividades clandestinas de sua militância antifascista.

Como colaboradores intelectuais e políticos, Franca e Franco fizeram história. O psiquiatra, influenciado pelas ideias do marxismo e de outras correntes filosóficas em prol da emancipação humana, liderou uma pioneira tentativa de transformar um hospital psiquiátrico na cidade italiana de Gorizia, para fazer cessar as violações de direitos humanos tão típicas dessas instituições. Pondo fim às situações mais graves mas encontrando uma série de limites e dificuldades, a experiência se encerrou em 1968. No entanto, os aprendizados extraídos fizeram parte do acúmulo de forças que desembocou na criação do movimento da Psiquiatria Democrática, de que Franca Ongaro seria uma das principais organizadoras e formuladoras. 

Partindo das lições de Gorizia, o grupo propôs a substituição dos hospitais psiquiátricos por serviços de saúde mental baseados no cuidado em liberdade e integrados à vida da comunidade. Isto é, mais que mudar as instituições, seria preciso pôr fim à sua existência. Nesse sentido, o programa da Psiquiatria Democrática, lançado na cidade de Bolonha em 1973 e redigido por um comitê encabeçado pela socióloga, propunha “continuar a luta contra o ‘manicômio’, como lugar onde a exclusão encontra sua expressão mais evidente e violenta, bem como os meios práticos para reproduzir os mecanismos de marginalização social”.

Além disso, explica Paulo Amarante, “eles verão a necessidade de criar uma rede substitutiva. Não bastava fechar o manicômio, era preciso um trabalho cultural e social mais amplo na sociedade”.

A socióloga Franca Ongaro e o psiquiatra Franco Basaglia. Foto: Fondazione Franca e Franco Basaglia, Isola de San Servolo, Venezia]

Como em boa parte do mundo, as décadas de 1960 e 1970 foram de grande agitação política na Itália. Movimentos estudantis e contraculturais efervesceram, e a luta dos trabalhadores viveu um apogeu de greves e experiências de autonomia operária. Ator incontornável desse processo, o Partido Comunista Italiano (PCI) contava com mais de um milhão de militantes e era o maior PC do Ocidente. O médico Giovanni Berlinguer, irmão do secretário-geral do PCI Enrico Berlinguer, se tornou o protagonista da Reforma Sanitária que erigiu o Servizio Sanitario Nazionale (SSN), um sistema de saúde público e universal que muito inspirou o desenho do Sistema Único de Saúde (SUS).

Foi nesse contexto que, na região de Trieste, Franco Basaglia e seus colaboradores tiveram êxito em encerrar as atividades do Hospital Psiquiátrico San Giovanni, inaugurando em seu lugar um centro comunitário que existe até hoje. Em uma iniciativa sem precedentes, os internos do manicômio foram reintegrados à vida da cidade. Também naquela década, as italianas conquistaram o direito ao divórcio e ao aborto. Como mostram seus textos inseridos na coletânea, Franca Ongaro também foi uma participante destacada das lutas pela emancipação da mulher (aproximando-as da luta antimanicomial, escreveria livros como Mujer, Locura y Sociedad e Una voz – reflexiones sobre la mujer, ambos traduzidos para o espanhol).

Em 1978, aprovou-se a Lei 180, apelidada de Lei Basaglia, considerada um marco da Reforma Psiquiátrica italiana por determinar a extinção progressiva dos manicômios. “Mas na verdade, a reforma foi feita na raça pela Psiquiatria Democrática e pelas bases”, pondera Paulo Amarante. Isso porque, bem antes da legislação ser aprovada, os membros do movimento se espalharam por várias províncias da Itália, convidados por governos locais a dirigir os serviços de assistência à saúde mental. Assim, foram materializando suas propostas, havendo lei ou não.

Essa história pode ser conhecida em maiores detalhes na tese de doutorado da psicóloga Maria Stella Brandão Goulart, atualmente professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No gráfico a seguir, a pesquisadora mapeou a disseminação dos membros do movimento (denominados “gorizianos” por terem participado da experiência de Gorizia, contada acima) por toda a Itália, onde orientaram a transformação dos serviços de saúde mental em uma série de regiões, a maioria delas governada pelo PCI.

Gráfico confeccionado por Maria Stella Brandão Goulart, disponível na tese De profissionais a militantes: a luta antimanicomial dos psiquiatras italianos nos anos 60 e 70.

Em 1980, pouco após visitar o Brasil e fechar o manicômio de Trieste, o psiquiatra Franco Basaglia viria a falecer. Por isso, coube a Franca Ongaro e aos demais membros da Psiquiatria Democrática levar adiante a luta pelo fechamento dos manicômios. Naquela década socióloga seria eleita parlamentar de esquerda independente nas listas do Partido Comunista Italiano, representando sua região natal de Veneza. Ao longo de seus dois mandatos como senadora, que duraram de 1983 a 1992, fez da pauta uma de suas prioridades.

Apesar da aprovação da Lei Basaglia, sucessivos ministros da Saúde contrários ao fechamento dos hospitais psiquiátricos haviam atrasado a implementação total da diretriz. “Eleita senadora, Franca propôs o que ficou conhecido como Progetto Obiettivo, que regulamentou a Lei 180. O projeto foi aprovado e estipulou dois anos para que fossem fechados os manicômios que ainda estavam abertos. Só aí é que eles realmente deixaram de existir na Itália”, explica Amarante.

Em foto inédita, Franca Ongaro (de casaco vermelho) em palestra no Brasil. Foto: Acervo de Paulo Amarante.

A passagem de Franca pelo Brasil

Como o Outra Saúde contou no dossiê Reforma e Contrarreforma Psiquiátrica no Brasil, as visitas de Franco Basaglia ao Brasil no fim dos anos 1970, quando denunciou a Colônia de Barbacena como um “campo de concentração nazista”, foram um entre vários eventos disparadores da Reforma Psiquiátrica no país. Apesar disso, o contato com a socióloga Franca Ongaro Basaglia se tornaria mais direto apenas duas décadas depois – em uma história conectada ao título da coletânea Ilhas, percursos das defesas e liberdades, que agora é publicada.

É como conta Paulo Amarante: “A conferência de Franca que nomeia o livro foi dada em Gênova, na Itália, em 1992. Vários chefes de Estado europeus e sul-americanos se reuniram naquela cidade para comemorar os 500 anos da expedição de Cristóvão Colombo, que era genovês. Então, a partir de uma conexão internacional de movimentos sociais, fizemos um outro encontro, crítico à invasão e colonização das Américas. Eu e Antonio Slavich, coordenador de saúde mental em Gênova e membro da Psiquiatria Democrática, encomendamos à Franca uma fala para esse evento. Na sua reflexão, ela lembrou que Colombo chegou primeiro à ilha de Santo Domingo, Cuba é uma ilha de resistência, a prisão de Alcatraz era uma ilha, e assim por diante. Assim, ela construiu essa imagem muito linda das ilhas como espaços de resistência e liberdade, mas que também podem ser de exclusão e isolamento”.

“A partir desse contato com a Franca, começamos a trabalhar com ela. Isso resultou em um convite para que ela viesse ao Brasil em 1996. Além de conhecer a Fundação Oswaldo Cruz, ela passou por algumas instituições do Rio de Janeiro, Santos e Minas Gerais, que tinha acabado de aprovar a Lei Carlão”, continua o psiquiatra brasileiro. 

Seu roteiro de viagem é uma espécie de mapa das lutas do movimento antimanicomial brasileiro naquela década. Em Santos, o prefeito e sanitarista David Capistrano Filho havia comandado uma intervenção na Casa de Saúde Anchieta, um hospital psiquiátrico conhecido por denúncias de tortura e escravidão dos internados, e fundado os primeiros NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), antecessores imediatos dos atuais CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).

Já a Lei Carlão (ou Lei nº 11.802/1995), apelidada em homenagem ao deputado estadual de esquerda que a propôs, determinou “a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos e a extinção progressiva destes” em Minas Gerais. A peça legislativa foi um dos principais marcos anteriores à conquista da Lei nº 10.216/2001, ou Lei Paulo Delgado, que instituiu a nível nacional o cuidado em liberdade para pessoas com problemas de saúde mental.

Nessa viagem, além de conhecer as conquistas da Reforma Psiquiátrica no país, a socióloga trabalhou para ampliar a disseminação das obras de Franco Basaglia em português, explica Amarante. Antes, apenas dois livros de autoria do psiquiatra estavam disponíveis para o público brasileiro. Um deles, A Psiquiatria Alternativa, compila as conferências realizadas no Brasil durante as visitas de 1978 e 1979, incluindo a histórica viagem a Barbacena. O outro, A Instituição Negada, é sua obra clássica sobre a experiência no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, vertida para o português pela editora Graal em 1985. 

“Franca estranhou muito. No Brasil, já existia Instituto Franco Basaglia, Associação Franco Basaglia e CAPS Franco Basaglia, todos falavam nele, mas poucos conheciam seu pensamento. Ele era quase que um mito, o ‘homem que fechou o manicômio e fez o Marco Cavallo [escultura que se tornou símbolo do cuidado em liberdade]’. Por isso, começamos a trabalhar para publicar mais de suas obras”, lembra. (Em entrevista recente a Outra Saúde, a professora da UFRJ Rachel Gouveia Passos também analisou a necessidade de retornar à obra de Franco Basaglia).

Após o retorno da socióloga à Itália, o trabalho conjunto de seleção de textos de Franco Basaglia continuou via fax. O esforço resultou na publicação de Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica pela Editora Garamond, em 2005 (o volume foi recentemente republicado em meio às comemorações do centenário de Franco Basaglia, com lançamento no Seminário A Liberdade É Terapêutica, realizado na Fiocruz). No entanto, a italiana não chegou a ver o livro brasileiro pronto. Após uma rápida doença, Franca Ongaro faleceu em janeiro daquele ano.

Em foto inédita, Franca Ongaro e Paulo Amarante no Brasil. Foto: Acervo de Paulo Amarante.

A redescoberta de uma intelectual

Um episódio que deu novo fôlego à organização da coletânea de escritos de Franca Ongaro Basaglia é ilustrativo dos apagamentos vividos pela socióloga – enquanto mulher, especialmente – na história da saúde mental.

Mais uma vez, quem conta é Paulo Amarante: “Muito recentemente, eu estava trabalhando na Universidad de Lanús, e os editores de uma coleção de saúde mental de lá estavam trabalhando na publicação de Saúde mental na China, livro do psiquiatra argentino Gregório Bermann, um exilado político que havia sido membro do Partido Comunista Argentino. Conversando comigo, eles chamaram atenção para o prefácio de Franco Basaglia, porque haviam dúvidas sobre a autoria. Procuramos a edição original do livro na Itália, que não havia sido publicado na Argentina por conta da ditadura militar, e descobrimos que o prefácio era de Franca, não de Franco.”

Não se trata do único caso. Hoje, estudiosos consideram que Franca é coautora ou co-organizadora (apenas em alguns casos, originalmente creditada) de diversos escritos basaglianos paradigmáticos, como O Que É Psiquiatria, A Instituição Negada, Crimes de Paz e A Maioria Desviante

A coletânea agora publicada conta com apresentação de Leandra Brasil da Cruz e Paulo Amarante, seus organizadores. Também inclui um prefácio de Amarante e prólogo de Ernesto Venturini, colaborador de Basaglia que trabalhou na Organização Mundial da Saúde (OMS) assessorando o fechamento de manicômios em países ao redor do mundo. Completa o material um artigo dos organizadores sobre a produção bibliográfica de Franca Ongaro, originalmente publicado na revista Saúde em Debate, do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).

Mostrando a força do cuidado em liberdade, o livro é ilustrado por aquarelas de Rogéria Barbosa, artista plástica ligada ao movimento da luta antimanicomial, que retratam a socióloga. “O resgate de Franca é muito importante. Hoje, a questão do papel da mulher na produção assume protagonismo. Naquela época, ela já assumia essa luta, como em seus textos de crítica à medicalização e à normalização da vida”, completa Amarante.

Retrato de Franca Ongaro, em aquarela de Rogéria Barbosa.

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