Médicos ingleses denunciam crise na atenção básica

Generalistas trabalham em situação dramática e precisam atender cada vez mais pacientes. Muitos desistem da profissão. Agora, governo trabalhista tem a chance de reverter o quadro, causado pelos cortes no orçamento dos governos conservadores. Darão esse passo?

Créditos: Keep Our NHS Public
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Por Ana Vračar, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

Médicos generalistas (GPs) na Inglaterra estão considerando uma ação coletiva em resposta às condições de trabalho deteriorantes e à falta de investimento em atenção primária à saúde nos últimos 15 anos. Uma votação recente, realizada pela British Medical Association (BMA), pode levar a várias ações nas clínicas gerais, incluindo a limitação das consultas diárias.

Segundo Tony O’Sullivan, co-presidente da organização Keep Our NHS Public, a atenção básica na Inglaterra é, há décadas, a base do Serviço Nacional de Saúde (NHS), e proporciona acesso universal aos cuidados. No entanto, à medida que o número de pacientes e suas necessidades cresceram, o número de médicos generalistas diminuiu devido ao planejamento e financiamento insuficientes, denunciou O’Sullivan ao People’s Health Dispatch.

Hoje, há 1.700 GPs a menos na Inglaterra do que em 2015, apesar das frequentes promessas de aumentar esse contingente. A escassez levou a uma carga maior de pacientes para os GPs restantes: cada médico cuida de cerca de 2.300 pacientes – em 2018, eram pouco mais de 2.000, segundo a BMA. Em termos de consultas diárias, isso significa que mais da metade dos GPs na Inglaterra atende entre 31 e 50 pacientes por dia, dedicando, no máximo, 15 minutos por visita. O número máximo recomendado de visitas é de 25 por dia.

A pressão está se tornando tão intensa que mais GPs começam a deixar a profissão ou enfrentar problemas de saúde mental. Uma pesquisa recente da BMA revelou que quase um quarto dos GPs entrevistados não se vê na mesma linha de trabalho daqui a três anos. A organização também alerta que um em cada quatro GPs conhece um colega que morreu por suicídio.

Para lidar com a pressão, muitos GPs passaram a trabalhar em meio período. No entanto, na prática, sua carga de trabalho continua sendo de tempo integral. Eles podem atender pacientes três dias por semana, em vez de cinco – mas os dois dias restantes ainda são dedicados a tarefas administrativas, aponta O’Sullivan.

Um sistema que vale a pena proteger

A Keep Our NHS Public e a BMA concordam que o modelo atual de atenção primária à saúde vale a pena ser protegido. O sentimento atual de desmantelamento foi intencionalmente causado pelos governos recentes, destacou a BMA.

“Quando há GPs suficientes, é um bom sistema”, assegura O’Sullivan. Ele também argumenta que não é preciso reduzir o papel dos GPs a meros guardiões de acesso. Em circunstâncias ideais, funciona como um sistema avançado de triagem, atendendo às necessidades de saúde das pessoas sem sobrecarregar os hospitais.

No entanto, a última proposta orçamentária para os GPs, apresentada pelo governo conservador que não está mais no poder, prevê um aumento de menos de 2% – e desenha um futuro sombrio. Os tempos de espera para consultas com GPs estão aumentando, especialmente fora de Londres, levando a tensões crescentes. Como resultado, mais pacientes passam a ignorar a atenção primária e ir diretamente aos departamentos de emergência por doenças menores – o que sobrecarrega ainda mais o NHS.

Ainda não está claro quando (e se) o novo governo trabalhista tomará medidas concretas para resolver a crise da atenção primária. Há algumas razões para um otimismo cauteloso, como novas ofertas de aumento salarial para médicos juniores. Mas será necessário muito mais para tirar o sistema de saúde da beira do colapso. Uma prioridade chave identificada pela Keep Our NHS Public é aumentar o investimento no setor para igualar os gastos orçamentários de países equivalentes.

Igualmente importante é interromper as tendências de privatização que fragmentaram o NHS e drenaram ainda mais a força de trabalho da saúde. O’Sullivan alerta que o único grupo real de empregos disponível para o setor privado é o NHS. Em vez de acabar com essa fuga de cérebros nacional, governos conservadores têm repetidamente limitado as oportunidades de educação e emprego no setor público. Por exemplo, eles financiaram a contratação de assistentes médicos, mas bloquearam o uso desse orçamento para contratar mais GPs.

Como resultado, centenas de formandos generalistas enfrentarão dificuldades para encontrar trabalho neste verão, apesar de serem extremamente necessários pelo sistema, segundo a Keep Our NHS Public. Enquanto isso, trabalhadores com treinamento médico limitado foram contratados, levantando preocupações sobre a continuidade e qualidade dos cuidados. O caminho é redirecionar o foco para os GPs e enfermeiros, que representam o núcleo do modelo de medicina de família que o Partido Trabalhista prometeu restaurar. É preciso garantir-lhes condições de trabalho dignas, um sistema funcional e rendimentos adequados para garantir a restauração salarial.

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