Remédios: sigilo em compras públicas é má ideia
Ministro sugere que Brasil assine acordos confidenciais com Big Pharma para adquirir fármacos de alto custo. Seria um retrocesso. Transparência garante preços internacionais mais justos – e proposta põe em risco posição autônoma e soberana do país
Publicado 29/10/2025 às 07:00 - Atualizado 28/10/2025 às 23:40

Por Gabriela Costa Chaves e Thiago Azeredo, para a coluna Saúde não é mercadoria
Título original: Nem tudo que vem de fora é bom
Recentemente, o Ministro da Saúde Alexandre Padilha anunciou a intenção de adotar uma nova modalidade de compra de medicamentos de alto custo baseada na garantia da confidencialidade dos preços negociados.
Argumenta-se que tal abordagem, que concederia exceções ao atual modelo de transparência dos preços dos medicamentos adquiridos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), poderia acelerar a incorporação e estimular o investimento no país, favorecendo o acesso. Também se argumenta que ela já é adotada por países europeus e nos Estados Unidos das Américas. Mas nem tudo que vem de fora é bom.
Experiências de negociação de preços em países que também são a sede das empresas farmacêuticas transnacionais, líderes do mercado mundial em vendas, devem ser analisadas com cautela quando consideradas para países periféricos como o Brasil, que representam grandes mercados farmacêuticos para essas mesmas empresas, mas que talvez não estejam na mesma posição de negociação que países de renda alta.
Ainda que a promessa de garantia oportuna do acesso a tecnologias sanitárias traga um sentido de urgência ao desenho e implementação de políticas públicas, ela não deve justificar respostas que priorizem abordagens onde o país atua em posição isolada na negociação e que ponha em risco uma perspectiva autônoma e soberana na aquisição de tecnologias para o setor público.
Leia todos os textos da coluna Saúde Não É Mercadoria, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual.
O que diz a experiência internacional
No âmbito multilateral, em 2019 os países Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovaram uma resolução para “Melhorar a transparência dos mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde” (resolução WHA72.8), da qual o Brasil foi um dos co-patrocinadores.
Em seu preâmbulo, são ressaltadas preocupações com os altos preços de certas tecnologias e os seus efeitos na produção de iniquidades no acesso entre os diferentes países e destaca a importância de informações públicas sobre preços de medicamentos como um facilitador dos esforços para garantir equidade e preços acessíveis. A resolução aponta uma agenda de trabalho para a OMS nesse mesmo sentido de ampliar os esforços para promover a transparência.
Entre os instrumentos de regulação de preços está a utilização de preços de referência, sejam eles internos (aqueles praticados dentro do país) ou externos (praticados em diferentes países). A adoção de preços de referência em licitações públicas favorece a concorrência e, se associada a outros elementos, como o volume da aquisição e a garantia da compra, pode trazer resultados satisfatórios para os sistemas de saúde. O uso do poder de compra do Estado, nesse caso, assegura o volume e a garantia da aquisição.
Em sentido inverso, acordos sigilosos de preços de medicamentos, à medida que diferentes países deixem de publicizar seus preços sob a alegação de possíveis descontos ou outras vantagens de compra favoráveis ao país para casos específicos, minam as opções de preços de referência, desconstroem as próprias fontes de informação que permitiriam avaliar as supostas vantagens dos contratos e reforçam a opacidade do mercado farmacêutico.
Um exemplo recente é o da África do Sul. Embora o governo tenha iniciativas para tornar públicos os preços dos medicamentos adquiridos no setor público, durante a pandemia de Covid-19 o governo negociou contratos para a aquisição de vacinas com empresas farmacêuticas transnacionais que não estavam públicos.
Uma ação judicial apresentada pela organização sul-africana Health Justice Initiative resultou em decisão favorável à obrigatoriedade de o governo sul-africano tornar público esses acordos e outros documentos sobre o processo de negociação. Revelou-se que o governo sul-africano pagou 15% mais caro que o preço praticado na União Europeia pela vacina da Johnson & Johnson e 33% mais caro que o preço praticado a União Africana para a vacina da Pfizer-BioNTech.
Essa experiência não só ilustra os riscos de acordos sigilosos e dos preços resultantes desse tipo de negociação como também aponta para uma vulnerabilização do governo de países de renda média em tempos de pandemia, já que diante da emergência sanitária e da situação de monopólio das tecnologias o governo ficou em posição desvantajosa no momento da aquisição da tecnologia. O mesmo aconteceu no Brasil, já que para a aquisição da vacina da Pfizer/BioNtech e da Johnson & Johnson, o governo aceitou não divulgar o preço praticado ao SUS [1].
Fortalecer o Estado e evitar o retrocesso
É mais provável que o Brasil seja excluído de preços de desconto do que do fornecimento de tecnologias no mercado nacional. Estando entre os dez países no ranking do mercado farmacêutico mundial, é pouco provável que as empresas vão abrir mão da enorme fatia que o mercado farmacêutico brasileiro – incluindo o setor público – representa. O exemplo do ecolizumab, indicado para algumas doenças raras, é emblemático em ilustrar o peso importante das vendas no mercado brasileiro na fatia de vendas do produto mundialmente.
É por este mesmo motivo que se deve direcionar o poder de compra do Estado a políticas que fortaleçam o poder de negociação do Estado em compras públicas, reconhecendo as assimetrias de poder entre empresas e governo, principalmente para tecnologias de alto preço envolvendo plataformas tecnológicas específicas e em situação de monopólio decorrente, entre outros, da situação patentária.
As políticas no contexto do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) se anunciam como estratégia para superar a vulnerabilidade do SUS frente à dependência tecnológica. Nesse sentido, ao invés de atender às demandas do setor regulado de fechar ainda mais a “caixa-preta” dos custos e dos preços dos medicamentos, devemos nos perguntar quais são os caminhos de políticas industriais e tecnológicas que fortaleçam o poder de negociação do governo na aquisição de tecnologias sanitárias promissoras e que salvam vidas por meio de estimativas de custos de produção, preços de referência e capacidade de produção e fornecimento oportunos.
Ainda que a aposta esteja centrada em tecnologias específicas, como as de alto custo, corre-se o risco de que a exceção vire regra e represente um retrocesso nos esforços de transparência de preços de medicamentos no setor público que estão em vigor há décadas.
NOTAS
[1]: Protocolo 25072.032399/2023-70. Lei de acesso a informação.
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