O maior colapso sanitário da história do Brasil

Estudo da Fiocruz aponta UTI superlotadas em toda partes. Número de mortes sobe a 2,8 mil e pode crescer ainda mais. Mas novo ministro assume prometendo que nada mudará. E mais: a estranhíssima suspensão da uma na Europa

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O MAIOR DA HISTÓRIA

Em mais um boletim extraordinário, o Observatório Covid-19 da Fiocruz traz um mapa do Brasil quase completamente pintado de vermelho: é o símbolo do alerta crítico. Só dois estados – Rio de Janeiro e Roraima – estão amarelos, em alerta médio. É a pior figura desde julho do ano passado; mais grave mesmo do que a apresentada quatro dias antes, quando a instituição advertiu que vivíamos o pior momento da pandemia. Estão se esgotando as palavras que deem conta de descrever o que se passa. Ontem, os pesquisadores responsáveis pelo boletim usaram as mais duras e diretas possíveis: este já é o “maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil”

E deve piorar. A evolução dos últimos números mostra essa tendência, muito difícil de ser freada. São agora 25 unidades federativas com taxas de ocupação de UTI acima de 80% (na avaliação anterior, do dia 12/3, eram 20), sendo que 15 delas estão acima de 90% (antes eram 13). Se antes 16 capitais estavam com mais de 90% dos leitos de UTI ocupados, agora são nada menos que 19. “A situação é absolutamente crítica”, diz o documento. 

Ressaltamos que estar em amarelo no mapa não é, de forma alguma, sinônimo de bonança. O alerta deve ser levado a sério: Roraima tem 73% de ocupação das UTIs e o Rio está em 79% (já beirando a zona crítica), com sinais de crescimento.

Ontem foi (mais uma vez) o pior dia da pandemia até aqui. O Ministério da Saúde registrou 2.841 mortes em 24 horas e ainda há cerca de três mil em investigação pelos estados. Os veículos de imprensa, que fecharam seu balanço um pouco antes do Ministério, contabilizaram um número um pouco mais baixo, de 2.798 óbitos. A média móvel já está em 1.976; há duas semanas, ela era de 1.274. 

Quanto à média móvel nos estadosoito deles bateram recordes ontem: São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás, Santa Catarina, Mato Grosso, Paraíba, Tocantins e Acre.

“Imagine você não poder respirar, como se estivesse se afogando, mas consciente. O médico chega e diz que ‘você vai ter que ser intubado’. Nesse momento a pessoa está lúcida, está com falta de ar, mas está entendendo. Nós temos ouvido, antes da sedação para intubação, que é o procedimento para colocar no ventilador, frases muito difíceis de ouvir, que devem ser muito difíceis de falar, por exemplo: ‘Cuide de mim que eu não quero morrer’, ‘avise minha esposa que eu amo ela’, ‘avise meu filho que o pai não vai esquecer dele’”, apelou disse recentemente, de voz embargada, o diretor superintendente do Hospital do Trabalhador em Curitiba, Geci de Souza Júnior. Por lá, diretores de hospitais pediram à prefeitura que decretasse lockdown – o que foi feito.

VOLTARAM-SE AO SUS

E pelo menos 15 hospitais da rede privada em São Paulo decidiram pedir socorro ao SUS. Sem vagas e com filas de pacientes para covid-19, eles solicitaram 30 leitos de UTI e enfermaria à prefeitura, segundo informações dadas pelo secretário municipal da Saúde, Edson Aparecido, à CNN. Hospitais citados por ele, contudo, negam estar lotados. Alguns admitiram ter feito a solicitação, mas dizem ter sido para pacientes que não têm plano de saúde nem condições de pagar pela internação particular. 

OS COÁGULOS E A VACINA

Desde a semana passada, quando falamos disso pela primeira vez, cresceu a lista de países europeus que decidiram suspender temporariamente a aplicação da vacina de Oxford/AstraZeneca. Agora, já são quase 20.  A França, que inicialmente tinha recusado a medida, depois decidiu aplicá-la. Alemanha, Espanha e Portugal também se juntaram ao grupo, que já tinha nações como Dinamarca e Áustria. A precaução, como se sabe, se deve a eventos adversos (inclusive fatais) relacionados a coágulos sanguíneos entre pessoas vacinadas. 

Mas continua não havendo nenhuma evidência que aponte para uma relação entre esse imunizante e a formação de coágulos. Em geral, a incidência de coágulos sanguíneos é de mais ou menos cinco casos por milhão. Até agora, foram reportados cerca de 30 casos em 45 milhões de vacinados, o que dá 0,7 por milhão. 

Para comparar: a matéria da Quartz lembra que certas pílulas anticoncepcionais levam a uma incidência de mil casos por milhão… 

De todo modo, a EMA (agência análoga à Anvisa na União Europeia) está investigando os dados e deve dar um veredito sobre a segurança e os riscos potenciais amanhã. Mas, por ora, recomendou que o imunizante continue sendo utilizado, por estar convencida de que os benefícios superam os riscos. “Estamos em uma crise sanitária gravíssima, com forte sobrecarga dos sistemas de saúde, e a vacina protege contra a covid-19, que mata milhares de pessoas todos os dias”, disse a diretora-executiva do órgão, Emer Cooke. Ela também se disse preocupada, com razão, com o efeito das suspensões precipitadas sobre a confiança da população nas vacinas. 

DECISÕES POLÍTICAS

Se não ainda há evidências ligando os coágulos ao imunizante, por que tantos países optaram por suspender sua aplicação? A motivação é provavelmente política, como já disse, sem meias palavras, o diretor-geral da agência reguladora italiana, Nicola Magrini: “Chegamos ao ponto da suspensão porque vários países europeus, entre eles Alemanha e França, preferiram interromper as vacinações para fazer os controles. A escolha é política“.

E a desconfiança não é em relação a qualquer vacina, mas especialmente à da AstraZeneca, empresa com a qual as relações europeias andam azedas há meses, desde que as entregas de doses começaram a sofrer atrasos. Já vimos aqui que a Alemanha e o restante do bloco europeu acusaram a farmacêutica de privilegiar as entregas ao Reino Unido.

No New York Times, os repórteres Jason Horowitz e Benjamin Mueller destrincham essa história. A preocupação das autoridades alemãs com os casos relatados colocou imediata – e gigantesca – pressão sobre outros governos, para que a opinião pública percebesse uma decisão coesa. “Quando Speranza [Roberto Speranza, ministro da Saúde italiano] trouxe a questão ao primeiro-ministro [Mario] Draghi, ele observou a insuportável pressão pública que a Itália enfrentaria se sozinha usasse uma vacina considerada muito perigosa para a Europa”, diz a matéria. 

Não menos importante, a decisão em conjunto seria tomada “pelo bem de uma frente europeia unida”. Que, no entanto, contraria a recomendação da própria agência reguladora do bloco. 

O resultado mais concreto e imediato disso deve ser desastroso: um atraso de pelo menos duas semanas – podendo chegar a mais de um mês – na campanha de imunização europeia, que, por sinal, anda quase tão lenta e insatisfatória quanto a brasileira. Os danos já estão evidentes. “É certo que os reguladores investiguem os sinais de segurança. Mas interromper o lançamento de uma vacina durante uma pandemia, quando há muita covid-19 por perto, é uma decisão dramática de se tomar – e não vejo por que alguém faria isso”, avalia Michael Head, pesquisador em saúde global da Universidade de Southampton.

COMO FUNCIONA

É preciso ter em mente que vários problemas de saúde acontecem com milhões de pessoas todos os dias – de gripes a aneurismas e infartos – e que, quando se começa a vacinar muita gente, com certeza esses problemas começam a aparecer também entre os vacinados. Mas isso não indica que haja relação entre uma coisa e outra. Os eventos precisam, sim, ser reportados às autoridades, justamente para que se investigue se foram apenas coincidências. 

No Brasil, no primeiro mês de vacinação houve 430 ocorrências de eventos adversos graves após a administração de 5,9 milhões de doses (de CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca), segundo a Folha. Entre eles, há 139 mortes, das quais 70% já foram analisadas e classificadas como sem relação com as vacinas. As demais ainda aguardam outros dados, como laudos de necrópsias.

A Fiocruz, responsável pela produção do imunizante no Brasil, reforçou ontem que ele tem se mostrado seguro e eficaz. Segundo a Anvisa, já foram investigadas seis ocorrências de tromboembolismo entre vacinados no país e não foi estabelecida nenhuma causalidade. 

A OMS vai aguardar mais dados sobre as vacinas e os coágulos antes de emitir qualquer parecer. Vale lembrar que o imunizante de Oxford/AstraZeneca é o que hoje responde pela quase totalidade das doses da Covax Facility destinadas a países de baixa e média renda. 

MOTIVO DE PREOCUPAÇÃO

Muito mais do que a ocorrência de coágulos sanguíneos, o que realmente continua parecendo preocupante em relação à vacina de Oxford/AstraZeneca é seu desempenho contra a variante B.1.351, identificada inicialmente na África do Sul. No mês passado a imprensa adiantou os resultados de um estudo que agora foi publicado no New England Journal of Medicine. Eram ao todo pouco mais de dois mil voluntários jovens e saudáveis, e a eficácia geral ficou em apenas 22%. Porém, o ensaio não conseguiu medir a proteção da vacina contra doenças graves e internações, então o resultado não signfica necessariamente que ela seja inútil.

O PRIMEIRO PRONUNCIAMENTO

O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fez seu primeiro pronunciamento ontem. Como já tinha ficado claro, ele confirmou que pretende seguir as ordens de Jair Bolsonaro e dar “continuidade” ao trabalho do general Eduardo Pazuello, que “tem trabalhado arduamente para melhorar as condições sanitárias do Brasil”. “A política é do governo Bolsonaro, não do ministro da Saúde. O ministro executa a política do governo”, disse. O ponto máximo da discordância entre ele e o governo federal tavez tenha sido quando Queiroga pediu à população que use máscaras… mas, segundo ele, o objetivo é evitar “paralisar a economia”. 

Ao mesmo tempo em que pregou continuidade, ele declarou que vai se basear no “melhor das evidências científicas“. Bom, ou isto, ou aquilo: seguir a ciência implica necessariamente romper com a política que matou 282 mil pessoas.

Enquanto isso, o Centrão ficou dividido. Enquanto os aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), estão incomodados, a nomeação contou com o aval do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PI). Segundo a Folha, deputados discutem fazer uma demonstração de força, dificultando a aprovação de pautas do governo. Eles ainda consideram aprovar requerimentos propostos pela oposição para convocar ministros a depor na comissão de enfrentamento à covid-19. O recado do vice-presidente da Casa, Marcelo Ramos (PL-AM), foi o seguinte: “Não teremos paciência com ele. É acertar ou acertar”.

ALTA REJEIÇÃO

O Datafolha publicou mais uma pesquisa de avaliação do governo Bolsonaro pela população Brasileira. É um momento-chave. Além do coronavírus em completo descontrole, temos o auxílio-emergencial parado há três meses, prestes a retornar com valores mais baixos e chegando ao bolso de menos pessoas.

A taxa de rejeição a Jair Bolsonaro é recorde: segue tendência de alta, cresceu 12 pontos percentuais em três meses e chegou a 54% – ao mesmo tempo, 44% dos entrevistados reprovam o governo como um todo. A avaliação negativa supera a positiva em mais de 20 pontos percentuais entre os que se autoclassificam pretos,  os que têm nível superior de escolaridade, os mais ricos, as mulheres e os moradores das regiões metropolitanas do país. E, para 43% dos entrevistados, o presidente é o maior culpado pela crise da covid-19. 

Apesar disso, nas palavras dos diretores do instituto de pesquisa, o cenário descrito é incerto. É que a popularidade do presidente seguiu estável, oscilando levemente de 31% para 30%; a parcela da população que o julga “regular” também não se alterou muito, caindo de 26% para 24%. Quanto aos ‘bolsonaristas fiéis’, eles representam cerca de 14% da população.  

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