Maconha medicinal e a encruzilhada proibicionista

O que fazer, em um contexto político que impede a disseminação da cannabis para tratamento médico, criando pânico moral em relação a seu uso recreativo? Uma pediatra analisa as graves consequências dos entraves a seus pacientes

Avanços na regulamentação da cannabis medicinal se deve à luta de pais e mães de crianças com doenças graves. Foto: Isabela Vieira/ Agência Brasil
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A cannabis medicinal chegou ao SUS paulista neste mês e estará disponível para tratamento de três doenças neurológicas: Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e esclerose tuberosa. No entanto, a novidade parece ser só o começo de uma tendência de absorção progressiva dos derivados da maconha para tratamentos de saúde.

“É uma grande porta de entrada para todas as situações clínicas que têm indicação e estudos de eficácia e segurança comprovadas sejam dispensadas pelo SUS”, afirmou Daniela Bezerra, neuropediatra com experiência em receitação do CBD, o princípio ativo que será disponibilizado nos fármacos agora inseridos no sistema público de saúde.

Como se viu no Congresso Brasileiro de Cannabis Medicinal, realizado entre 23 e 25 de maio, a pressão social e mesmo empresarial em torno da liberalização da produção de derivados da maconha é crescente. Desde profissionais que defendem a extensão de seu uso para outras condições de saúde, e não apenas físicas, a familiares e investidores que já perceberam o potencial econômico deste nicho de mercado, as barreiras para a aceitação da cannabis medicinal vão sendo derrubadas.

“Existem estudos que mostram a eficácia, a tolerabilidade, a segurança para as doenças que são crônicas, que são refratárias a muitas coisas. Então, os estudos tendem para esse público e tipo de patologia. Em relação a outros tipos de doença, precisa avançar muito nos estudos. Mas eu acredito que daqui a pouco a própria sociedade já tenha uma resposta porque está tendo uma mobilidade muito grande de estudos no mundo todo. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos”, suscitou Bezerra.

Médica-voluntária da Associação Brasileira de Epilepsia e coordenadora do ambulatório de epilepsia da Infância e adolescência da Faculdade de Medicina do ABC, ela deu palestra na qual falou dos possíveis benefícios da introdução de tais produtos no SUS. Sua cautela se explica. Ainda há forte resistência política, a exemplo de entidades profissionais que fecham os olhos para os benefícios clínicos e sociais e se apegam a um conservadorismo ideológico.

Além disso, algumas dessas entidades têm poder de promover perseguições aos profissionais que prescrevem cannabis medicinal, a exemplo de alguns presentes no Congresso, ou do médico Paulo Fleury, colaborador assíduo do Outras Saúde. Não é raro que órgãos como o Conselho Federal de Medicina tentem cassar o registro profissional de quem já trata a cannabis medicinal como um legítimo produto farmacêutico.

“E eu acho que essas disputas ideológicas fogem um pouco do que é o principal, que é a doença, o paciente, as famílias, os cuidadores. Não deveria ser assim, mas os médicos prescritores, quem têm experiência com a prescrição da cannabis medicinal, sabem que é um fitoterápico e tem suas indicações, como qualquer fitoterápico, e sua tolerabilidade eficaz”, complementou a neuropediatra.

Nesse sentido, o Brasil ainda vive em estado de profundo negacionismo científico. Apesar dos comprovados avanços na saúde de usuários destes produtos, a criminalização da maconha continua a ser um obsessivo capital de uma direita que parece cada vez mais instigada a fabricar histerias coletivas e pânicos morais.

Desse modo, o país segue distante de uma oferta condizente com a demanda. Isso porque com a proibição da maconha, não há meios de produzir seus derivados em escala suficiente para atender a todo o SUS e estender seu uso a portadores, por exemplo, de TEA e epilepsia, duas condições que contam com ativismo das próprias famílias em sua liberação, mesmo que em caráter experimental, uma vez que não há cura consolidada.

“Ampliar o acesso a cannabis medicinal tem várias vertentes. A questão do custo é muito séria, mas implica principalmente na questão judiciária. Existe uma confusão muito grande em que se forçando a barra, exigindo uma abertura maior da cannabis medicinal, o uso recreativo vem junto. São coisas distintas, objetivos distintos, público-alvo distinto, mas o grande problema hoje nessa questão do acesso vem de acordo com o custo”, explicou Daniela Bezerra.

Ao Outra Saúde, a médica lamenta que o debate coloque a ciência e o interesse dos pacientes em último plano. É o que se vê tanto no debate em torno da votação no STF, cuja retomada acaba de ser autorizada pelo ministro Dias Toffoli, e a tentativa de ampliação da criminalização de seu consumo, através da tramitação da PEC 45/2023, defendida pelo próprio presidente do Senado – o supostamente moderado Rodrigo Pacheco – e aprovada em abril.

Sem nenhum respaldo científico, o projeto visa tratar o consumo de maconha como doença e prescreve internação dos usuários, o que remete aos piores capítulos da história da saúde pública brasileira. Como tem sido hábito no Brasil dos últimos anos, o interesse público e a necessidade humana parecem passar ao largo.

“Eu acredito que, como médica, o meu papel não é me posicionar em relação a questões judiciárias. Mas acho que a sociedade tem muito a discutir. E eu puxando a sardinha para o meu lado, para os pacientes, para as pessoas com epilepsia, essa briga não pode ser misturada. Não é justo com as pessoas que precisam. Precisamos realmente precisa dividir as batalhas, dividir quem precisa mais, e buscar o que é justo no princípio básico do SUS, que é a equidade, dar mais para quem precisa mais. Nesse caso, as pessoas com as doenças que se beneficiam com a cannabis medicinal, um fitoterápico”, afirmou Bezerra.

Desse modo, parece difícil avançar com no tema sem confrontar o proibicionismo. Apesar da Daniela Bezerra lembrar que seu uso recreativo, alvo de toda a rejeição histórica, não tem nada a ver com o medicinal, a garantia de sua oferta em quantidades satisfatórias está intrinsecamente ligada à capacidade de produção. E neste aspecto ficaria difícil separar o lícito do ilícito.

“A maconha ser droga ilegal no Brasil afeta o custo, pois não tem como se ter um plantio legalizado, porque não se tem controle se essa planta que está sendo plantada, cultivada, vai para uma cannabis medicinal ou se ela vai para o uso recreativo. É uma discussão muito ampla, que envolve diversas esferas, e a cannabis medicinal está sendo, na minha opinião, usada para ampliar tal discussão. Está tudo bem, mas não podemos esquecer que do ponto de vista da cannabis medicinal, das doenças, das pessoas que precisam dessa medicação para uma melhora de qualidade de vida, esse jogo não deveria ser assim. Deveria ter um acesso melhor, com um custo melhor também e menor”, conclui.

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