Infância: como o cuidado nos torna seres humanos

Para Winnicott, uma vida psíquica saudável é fundada com o nascimento do bebê, quando há condições dignas de acolhimento – e transtornos podem vir da precariedade. Em novo livro sobre o psicanalista, pistas de que a autonomia só nasce quando há proteção

O psicanalista Donald Winnicott observa duas crianças brancas brincando de trenzinho
O psicanalista e pediatra Donald Winnicott em atendimento com crianças
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Desde seu nascimento, com Sigmund Freud, a psicanálise voltou os olhos à infância e a como essa fase da vida impacta na formação do ser humano. Mas poucos se debruçaram tanto sobre a compreensão do cuidado dos bebês por suas mães nas fases iniciais da vida – e até mesmo na gestação – como o britânico Donald Winnicott. Como pediatra, ele tratou crianças por anos no pós-Segunda Guerra, no Sistema Nacional de Saúde, o NHS inglês, em especial nos hospitais infantis de Queen e Paddington Green. Foi inicialmente a partir das suas experiências com o sofrimento dos pequenos durante e depois da guerra que ele elaborou suas teorias – trazendo inovações essenciais para a psicanálise e para compreender o sofrimento humano.

Em novo livro sobre o psicanalista, traduzido pela Ubu, parceira editorial de Outras Palavras, há algumas chaves para a compreensão de suas ideias. Ele foi publicado originalmente em 1988, e foi seu autor, o também britânico Adam Phillips, o primeiro a demonstrar como o pensamento de Winnicott foi um divisor de águas na teoria psicanalítica. Na introdução, que publicamos abaixo, há também caminhos para pensar a saúde pública – no que se pode depreender da sua visão sobre a dependência do bebê dos cuidados maternos nos primeiros anos de vida, essencial para sua formação plena na vida adulta.

Nas palavras de Phillips: “Winnicott tentou explicar como o indivíduo cresce, por meio da dependência, rumo a uma forma pessoal de existência, como ao mesmo tempo se assemelha e se distingue dos outros de acordo com seu senso de si, e como o ambiente inicial torna isso possível”. No capítulo a seguir, ele oferece as primeiras explicações sobre como as psicopatologias podem decorrer das lacunas, intrusões, privações e catástrofes vividas na infância. 

Winnicott põe grande peso da responsabilidade nos primeiros anos do bebê nas costas das mães – algo que pode ser refutado nos dias de hoje, como alerta a psicanalista brasileira Vera Iaconelli em seu livro Manifesto Antimaternalista (Zahar, 2023). Mas é possível partir da teoria winnicottiana para pensar também na importância dos cuidadores mais próximos ao bebê, dos serviços de saúde, da estrutura pública que o acolhe e – por que não? – do próprio Estado, para garantir a formação plena do sujeito. Apostamos que há, aí, caminhos para pensar também a saúde coletiva. (G. L.)

Leia, abaixo, a introdução de Winnicott, de Adam Phillips.


A saúde é bem mais difícil de administrar que a doença.
DONALD W. WINNICOT

I

Em uma palestra proferida em 1945 para os alunos do último ano do Ensino Médio na St. Paul’s School, Donald Winnicott descreveu sua experiência de descobrir, como estudante, A origem das espécies, de Charles Darwin:

Eu não conseguia parar de ler. Naquela época, eu não sabia por que aquilo era tão importante para mim, mas agora entendo que o principal é que o livro mostrava que as coisas vivas poderiam ser examinadas cientificamente, com a certeza de que as lacunas do conhecimento e da compreensão não precisavam me assustar. Para mim, essa ideia ajudava a diminuir consideravelmente a tensão e, consequentemente, liberava muita energia para trabalhar e brincar. [1]

Darwin havia examinado criaturas vivas para explicar sua relação mútua. Ele percebeu que as lacunas no registro evolutivo eram meras interrupções na evidência histórica da continuidade das espécies. Assim como Freud mais tarde descreveria as histórias reprimidas dos indivíduos que tratava, Darwin havia reconstruído as histórias invisíveis das espécies. Lacunas nas evidências eram brechas e tanto Darwin como Freud haviam sido capazes de contar histórias convincentes e aparentemente coerentes. Com sua afirmação, Winnicott dá a entender que não precisava fechar as lacunas, mas encontrar uma forma de examiná-las. Elas podiam ser espaços potenciais para a imaginação. Ele se preocuparia, como veremos, com a ideia das lacunas, os “espaços intermediários” que acomodariam o brincar especulativo.

No plano mestre do desenvolvimento humano no qual trabalhou por mais de quarenta anos, Winnicott tentou explicar como o indivíduo cresce, por meio da dependência, rumo a uma forma pessoal de existência, como ao mesmo tempo se assemelha e se distingue dos outros de acordo com seu senso de si, e como o ambiente inicial torna isso possível. O crescimento tem a função perene da integração psicossomática. Ele destacou a necessidade do cuidado contínuo – da “maternagem suficientemente boa” – para sustentar o que chamou de “continuar a ser”, a “linha de vida” do bebê, nos primeiros estágios de sua vida. Winnicott falaria, de maneira enigmática para um psicanalista, sobre a vida instintual como uma possível “complicação” nas necessidades mais fundamentais que o indivíduo tem de se relacionar. Winnicott compreenderia a doença como a inibição da espontaneidade potencial que ele tomava como característica da vitalidade de uma pessoa. E viria a pensar na psicopatologia como consequência das rupturas na continuidade, das distrações no desenvolvimento inicial da pessoa: lacunas causadas pelas intrusões, deprivações e catástrofes naturais da infância, em geral resultantes, para ele, de falhas na provisão parental.

A criança tivera certas experiências às quais não conseguia dar um sentido satisfatório, o que implicava não encontrar em si um lugar para elas. Para o bebê que passa tempo demais esperando pela mãe, por exemplo, “a única coisa real é a lacuna; ou seja, a morte, a falta ou a amnésia”. [2]

Do ponto de vista de Winnicott, a experiência é traumática para a criança quando é incompreensível, quando está além de seu alcance. Cabe à mãe, inicialmente, apresentar o mundo para o bebê em doses administráveis. E, para Winnicott, cabe a quem ajuda as mães e os bebês proteger esse processo. Ele escreve:

Se é verdade – ou ao menos possível – que a saúde mental de cada indivíduo é fundada pela mãe, em sua experiência viva com seu bebê, os médicos e enfermeiras poderiam adotar a não interferência como primeira tarefa. Em vez de tentarem ensinar à mãe como fazer o que na verdade não pode ser ensinado, os pediatras deveriam aprender a reconhecer, mais cedo ou mais tarde, quando estão diante de uma boa mãe, e garantir-lhe a plena possibilidade de crescer na realização de sua tarefa. [3]

Em sua obra, Winnicott dedicou-se a reconhecer e descrever a boa mãe, adotando a relação entre a mãe e o bebê como modelo do tratamento psicanalítico. E muitas vezes ele dava como certo que o que as mães faziam naturalmente, “o que na verdade não pode ser ensinado”, serviria como modelo para a técnica do psicanalista. Em particular, ele examinou o paradoxo das experiências traumáticas que se tornam formadoras por escaparem ao self e o papel da mãe em facilitar no bebê o surgimento de um self disponível para a experiência pessoal. Porém, Winnicott usaria o conceito de “self” de maneira idiossincrática e, por vezes, enigmática, o que nem sempre se alinhava de maneira óbvia com a teoria psicanalítica tradicional. Segundo ele, “uma palavra como ‘self’ naturalmente sabe muito mais do que nós; ela nos usa e pode nos dominar”. [4] Com base nos contextos em que Winnicott foi usado por essa poderosa palavra, perceberemos que ele afirmava a presença de algo essencial sobre uma pessoa, algo ligado à vitalidade corporal, mas que permanecia inarticulado e, em última análise, incognoscível: talvez como uma alma encarnada. “No centro de cada pessoa há um elemento incomunicável, e isso é sagrado e digno de ser preservado”, escreveu Winnicott. [5] O self que ele descreveria como “permanentemente sem se comunicar” se enquadra de maneira instável, evidentemente, na noção da psicanálise como prática primariamente interpretativa.

Winnicott acreditava que o principal risco para o self do indivíduo era a adaptação precoce ao ambiente. Em A origem das espécies, Darwin notou o que chamou de “gradações transicionais” ou “intermediárias” no desenvolvimento das espécies e o papel do ambiente nesse processo. Ele percebeu o valor da diversidade e da variação individual para a sobrevivência, mas também notou como o organismo precisa atender às demandas do ambiente. Os organismos têm que se conformar e adaptar, mas também precisam de um prolífico processo de individuação para ampliar suas chances de sobrevivência. Inovação e adaptação são mutuamente necessárias, já que, em última instância, aqueles que não conseguem se adaptar ao ambiente não sobrevivem. Na teoria de Winnicott sobre o desenvolvimento, é a mãe, como primeiro ambiente, que “se adapta ativamente” às necessidades do bebê. Nos termos de Winnicott, a princípio, a criança tem o direito natural de usar a mãe de modo impiedoso para obter o reconhecimento e a gratificação que seu desenvolvimento requer. “Sem alguém especificamente orientado para suas necessidades, o bebê não pode encontrar uma relação operacional com a realidade externa”, escreveu. [6] Com o tempo, a mãe limitará gradualmente sua disponibilidade, levando a criança a se desiludir e a considerar as consequências da própria impiedade. Mas, como veremos, Winnicott está comprometido com uma noção de processos “naturais” do desenvolvimento – derivada da biologia darwinista – aos quais a mãe pode se adaptar e fomentar por meio de sua atenção responsiva. A palavra “natural”, como também veremos, realiza funções tortuosas na escrita de Winnicott. Às vezes, ela pode traí-lo – quando ele se refere, por exemplo, ao “papel na ópera cômica da natureza” [7] desempenhado pelas mulheres –, conduzindo-o a um sentimentalismo do qual em geral desconfia com convicção.

O primeiro relacionamento, no relato winnicottiano, era de reciprocidade, e não de conflito esmagador ou submissão. Porém, se a mãe não fosse capaz, por razões ligadas a seu próprio desenvolvimento, de se adaptar às necessidades do bebê e demonstrasse, ela mesma, uma exigência intrusiva, ela estimularia uma obediência precoce na criança. Para manejar as demandas da mãe e proteger o self verdadeiro da necessidade e preocupação pessoais, a criança precisa construir o que Winnicott chamou de falso self. Ao introduzir na história do desenvolvimento humano inicial uma linguagem da reciprocidade, Winnicott revisou parte da teoria darwinista. Ele reverteu a equação de Darwin ao sugerir que o desenvolvimento humano muitas vezes é uma batalha impiedosa contra a obediência ao ambiente. E essa batalha aparece em seus escritos sempre que encontramos inovações na teoria e técnica psicanalíticas seguidas de afirmações explícitas sobre a continuidade de sua obra em relação a uma tradição psicanalítica mais ortodoxa. Veremos, na verdade, certa tendenciosidade na maneira como Winnicott disfarça suas divergências radicais com relação a Freud. Segundo ele, “os adultos amadurecidos, ao destruir e recriar o que é velho, antigo e ortodoxo, infundem-lhe nova vitalidade”. [8] De maneira alegremente desafiadora, Winnicott recriou, muitas vezes de forma irreconhecível, o trabalho daqueles que o influenciaram.

A obediência era um problema crucial para Winnicott devido à questão da dependência. O bebê depende do zelo firme da mãe para sua sobrevivência. E a mãe, por sua vez, depende das pessoas que ela precisa ter a seu redor. Como Winnicott afirmou, expressando sua famosa ideia de que não existe isso que chamam de bebê: [9] “se vocês me mostrarem um bebê, mostrarão também, com certeza, alguém cuidando desse bebê, ou ao menos um carrinho no qual estão grudados os olhos e os ouvidos de alguém. O que vemos, então, é o ‘par mãe-bebê’”. Winnicott derivaria tudo em sua obra, incluindo uma teoria das origens da objetividade científica e uma revisão da psicanálise, desse paradigma do relacionamento mãe-bebê em desenvolvimento. Ele deslindaria o que havia na mãe de quem a criança dependia, e isso o levaria a questões raramente abordadas pela teoria psicanalítica: de que dependemos para nos sentirmos vivos ou reais? De onde vem a sensação, nos casos em que ela comparece, de que vale a pena viver? Winnicott abordou essas questões por meio da observação – uma de suas palavras prediletas – de mães e bebês, e do que, com o passar do tempo, se torna o “espaço transicional” entre ambos. E ele se empenharia em conectar essas observações a insights derivados da psicanálise. Como o primeiro pediatra da Inglaterra a fazer formação em psicanálise, ele esteve em uma posição privilegiada para comparar suas observações com as histórias do tratamento psicanalítico, sempre reconstruídas e retrospectivas.

O que acontece entre a mãe e o bebê se tornaria a fonte de um dos insights mais impressionantes e característicos de Winnicott. Mas seria parte de sua incompatibilidade com Freud que esses insights – a conexão, por exemplo, entre a impiedade do bebê e a sexualidade adulta – raramente fossem ligados por ele com o lugar do erótico na vida adulta. O pai costuma aparecer em seus escritos entre parênteses ou colchetes. Suas contribuições teóricas mais importantes para a psicanálise – fenômenos transicionais, criatividade primária, impiedade, a tendência antissocial e o verdadeiro e o falso self – nunca foram descritos nos termos das diferenças entre os sexos.


NOTAS

[1] Donald W. Winnicott apud Madeleine Davis e David Wallbridge, Boundary and Space: An Introduction to the Work of D. W. Winnicott. Harmondsworth: Penguin Books, 1981, p. 24 [ed. bras.: Limite e espaço: uma introdução à obra de D. W. Winnicott, trad. Eva Nick. Rio de Janeiro: Imago, 1982].

[2] D. W. Winnicott, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” [1951], in O brincar e a realidade, p. 46.

[3] Id., “Pediatria e psiquiatria” [1948], in Da pediatria à psicanálise, p. 305.

[4] Id., “Contratransferência” [1960], in Processos de amadurecimento e ambiente facilitador, p. 202.

[5] Id., “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos” [1963], in Processos de amadurecimento e ambiente facilitador, p. 240. Em Natureza humana, pp. 79–80 (trad. modif.), Winnicott afirma que “a psique é forjada a partir do material fornecido pela elaboração imaginativa das funções corporais (que, por sua vez, depende da saúde e capacidade de um órgão específico: o cérebro)”, e que a alma é “propriedade da psique”. Deixando de lado a ambiguidade de “forjada”, nessa descrição a alma não é mais o tipo de essência pessoal sugerida pelo conceito winnicottiano de self verdadeiro. Trata-se de algo derivado e construído, não dado de antemão. O vocabulário religioso latente nos escritos psicanalíticos de Winnicott muitas vezes levam-no a formas reveladoras de confusão. Uma descrição interessante da relação entre a ideia de alma e a ideia de originalidade, que ilumina, por implicação, muitos dos interesses de Winnicott, pode ser encontrada no livro de Thomas McFarland, Originality and Imagination. Baltimore/ London: Johns Hopkins University Press, 1985.

[6] D. W. Winnicott, “Manejo residencial como tratamento para crianças difíceis” (escrito com Clare Britton, 1947), in Deprivação e delinquência, p. 85.

[7] Id., “A contribuição da psicanálise para a obstetrícia” [1957], in Bebês e suas mães, p. 90.

[8] Id., “Família e a maturidade emocional” [1960], in Família e desenvolvimento individual, p. 168.

[9] Id., “Mais ideias sobre os bebês como pessoas” [1947], in A criança e o seu mundo, p. 99; trad. Modif.

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