Indústria: É tempo de construir um SUS soberano

O SUS é decisivo para a independência sanitária, econômica e política do país, frisa a farmacêutica Roberta Dorneles. Por isso, a hora é certa para ousar mais nas ações de reforço da autonomia do Brasil na produção de medicamentos, vacinas e insumos

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Lançada nesta quarta-feira (30) no canal de Outra Saúde, a mais recente entrevista do programa SUS 35 Anos é uma conversa com a farmacêutica Roberta Dorneles, professora e coordenadora de Graduação do curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre os rumos do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS).

Desde o segundo mandato de Lula, o CEIS está no centro de uma aposta do Governo Federal para conjugar saúde e desenvolvimento: ao estimular a fabricação nacional de medicamentos, vacinas e outros insumos, busca não apenas garantir o abastecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também gerar ciência, empregos para milhões de brasileiros e o que os criadores da proposta chamam de “soberania sanitária”. Esses esforços sofreram uma desarticulação após o golpe de 2016, mas ganharam novo impulso em 2023 com a publicação da Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde e a inclusão do CEIS entre as missões prioritárias do programa Nova Indústria Brasil.

No entanto, a recente retomada do CEIS também convida à reflexão sobre os limites da estratégia adotada até aqui e as necessárias correções de rota. Entre elas, Dorneles critica a ideia de que “as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs) sejam o único caminho para a soberania sanitária, quando a engenharia reversa oferece a possibilidade de desenvolvermos um parque tecnológico nacional em torno de laboratórios oficiais já muito bem consolidados, como Farmanguinhos”. Os laboratórios estaduais, que padecem com a subutilização, também deveriam ser melhor empregados.

Pesquisadora de longa data na área das patentes farmacêuticas, ela também explica que o Brasil ainda carece de uma política de propriedade intelectual mais alinhada com os objetivos da soberania sanitária – isto é, que sirva claramente ao objetivo de superar a condição dependente do país.

Dorneles ainda acrescenta que o fortalecimento de uma cadeia produtiva autônoma em torno da saúde pública é um passo decisivo no contexto de ameaças à soberania do país. “O SUS é extremamente importante para a independência econômica, sanitária e política do país. Além disso, ainda que os vínculos estejam sofrendo precarização, nós estamos falando do grande empregador na área da saúde no Brasil”.

A experiência de outras nações que compõem o bloco dos BRICS pode ser um importante exemplo: “Quando a gente revisita a história de parceiros como a China e a Índia, é possível perceber que os Estados tomaram a decisão de serem protagonistas na produção de fármacos porque entenderam que aquilo seria estratégico”. 

Na Índia, como já descreveu este boletim em uma série de textos, uma pujante indústria de genéricos, que exporta seus produtos a preços acessíveis para todo o Sul Global, surgiu da decisão histórica de introduzir uma legislação de propriedade intelectual que impõe barreiras às práticas abusivas de patenteamento de medicamentos promovidas pela Big Pharma. Já na China, chama atenção o protagonismo das empresas farmacêuticas estatais, como a Sinopharm, na criação do segundo maior parque industrial deste setor no mundo.

Nesse sentido, um novo impulso aos laboratórios estaduais e federais poderia ser um trunfo do CEIS, por meio de investimentos que permitam sua consolidação como o principal fornecedor do “sétimo maior mercado farmacêutico em termos de consumo”, que é o Brasil. “Atualmente, segundo a Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), 18 deles estão ativos. Sete ficam no Rio de Janeiro, o que poderia ser um motor para a recuperação do estado. É preciso dar um apoio maior para esses laboratórios, além de soberania, eles geram riqueza para o país, inovação, empregos”, indica. Ela sugere que é necessário inclusive retomar o funcionamento de equipamentos que foram fechados, como o Laboratório Farmacêutico do Estado do Rio Grande do Sul (Lafergs).

A professora da UFRGS argumenta que, para reduzir sua dependência de compras das grandes corporações ocidentais do setor farmacêutico, a chamada Big Pharma, o Brasil deveria reorientar suas parcerias no setor saúde para o Sul Global. O país teria muito a ganhar com uma ênfase em acordos de desenvolvimento compartilhado de tecnologias e produção conjunta de insumos com países dos BRICS, sempre buscando termos transparentes e equânimes – à distinção das tratativas quase sempre desvantajosas com as empresas do Norte.

Já no que se refere à política de propriedade intelectual, ela sugere que “para retomar a ideia de que o medicamento é um bem público, estratégico para a saúde do país” o objetivo de longo prazo deveria ser “tirar os medicamentos da lista de produtos patenteáveis”. Vale lembrar que, até a adoção da atual Lei de Patentes em 1996 durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, os medicamentos não podiam ser patenteados no Brasil. 

“Quando o Brasil assinou o Acordo TRIPS em 1994, ele rapidamente adotou essa nova legislação. Outros países em desenvolvimento, como China e Índia, aproveitaram todo o período que tinham para se adequar”. Em relação a este tratado que promoveu a uniformização das leis de propriedade intelectual dos países signatários, Dorneles acredita que o Brasil deve aproveitar mais suas flexibilidades e salvaguardas, como o direito de recorrer às licenças compulsórias – conhecidas entre a população como “quebras de patente” – para enfrentar problemas de saúde pública.

Além disso, explica a professora da UFRGS, “é preciso chamar atenção para o desmonte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que faz a avaliação dos pedidos de patente. Cada vez menos técnicos estão sendo chamados para compor os quadros do órgão, o que faz com que o Brasil tenha um dos maiores tempos de análise do mundo. Falta pessoal e condições estruturais para o trabalho do INPI.”

Outro foco da entrevista foram as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), um dos pilares da atual política para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Tratam-se de acordos que envolvem instituições públicas e empresas privadas, onde estas últimas se comprometem com uma transferência de tecnologia que permitirá a fabricação nacional de um determinado medicamento ou produto para a saúde.

No entanto, o caráter sigiloso desses entendimento muitas vezes mascara condições desvantajosas – como no conhecido caso do dolutegravir, um remédio para tratamento de HIV. O período estipulado até que a transferência da tecnologia se complete pode ser muito longo, ela pode ser incompleta ou o valor que o país paga pelo fármaco até que ela se conclua pode ser muito alto. Roberta frisa que não é preciso abandonar as PDPs, mas garantir que outras possibilidades também sejam exequíveis, a exemplo do desenvolvimento nacional de novas tecnologias e a engenharia reversa. 

Para ir além das PDPs e apostar mais em outras alternativas, é indispensável ampliar o investimento em projetos de ciência e tecnologia da área da saúde, reforçando o papel de um sistema nacional de inovação e qualificando profissionais competentes, completa a membro do Grupo de Pesquisa Saúde, Sociedade, Estado e Mercado (SEM/UERJ).

A implementação desse conjunto de medidas para fortalecer o CEIS exigirá, sem dúvida, uma significativa ampliação no gasto público com Saúde – com um correspondente retorno para o Sistema Único de Saúde e a população através de maior autonomia no desenvolvimento e na fabricação de insumos. Por isso, é preciso pôr fim às amarras fiscais que travam o investimento público no país.

“O SUS é a maior e talvez a melhor política pública do Brasil. Dentro da lógica da austeridade, que é essa lógica de um teto de gastos como o Arcabouço Fiscal, não vejo possibilidade de a gente atender às necessidades da população brasileira. É preciso pensar do ponto de vista da soberania, do desenvolvimento econômico, da inovação, da tecnologia e dos empregos”, conclui.

O diálogo com Roberta Dorneles faz parte da série SUS 35 anos, cujos episódios estão disponíveis em vídeo. O programa é um “esquenta” para o Seminário SUS 35 anos, que acontecerá em São Paulo nos dias 18 e 19 de setembro, promovido por Outra Saúde e entidades parceiras. Para se inscrever no evento e conferir sua programação, clique aqui.

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