Hospital Estadual Sumaré: batalha contra as OSS em SP

Administrado pela Unicamp via convênio, equipamento já foi eleito o melhor hospital público do país. Agora, Tarcísio quer privatizar sua gestão. Risco é de queda na qualidade do atendimento, precarização do trabalho e perda das atividades de estágio e formação

Manifestação na porta da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo contra a privatização do Hospital Estadual Sumaré.
Foto: Guilherme Arruda/Outra Saúde
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Em 2022, o Hospital Estadual Sumaré, localizado na cidade homônima do interior de São Paulo, foi eleito o melhor hospital público do Brasil pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e outras entidades. Administrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) por meio de um convênio, o equipamento é considerado uma referência em atendimento de média complexidade, promove a formação de centenas de estudantes todos os anos e seus serviços de assistência são muito bem avaliados pelos municípios da região. Por isso, a população local recebeu com indignação o recente anúncio do governador paulista Tarcísio de Freitas de que pretende pôr fim ao convênio – e entregar a gestão do hospital para uma Organização Social da Saúde (OSS) por meio de um chamamento público.

Tarcísio pode ter comprado uma briga mais dura do que esperava. Desde o anúncio de que o contrato com a Unicamp não será renovado, tomou corpo uma onda de mobilização para que o HES se mantenha 100% público. Em março, trabalhadores do hospital lotaram uma audiência pública na Câmara Municipal de Campinas que debateu as possíveis consequências da privatização. Os estudantes de Medicina da universidade entraram em greve – seguidos, em 18 de junho, por mais 26 cursos. 

Naquela quarta-feira, uma delegação da região de Campinas promoveu um ato na porta da Secretaria de Estado da Saúde, na capital paulista, para denunciar a tentativa de privatização do Hospital Estadual Sumaré e exigir uma audiência. “A gente sabe que essas OSS vão precarizar o atendimento à saúde, mas também precarizar a situação dos trabalhadores e colocar em risco o nosso campo de estágio”, afirmou Sabrina Lamarão, estudante de Medicina da Unicamp e diretora do Centro Acadêmico Adolfo Lutz, a Outra Saúde

Nenhum dos riscos denunciados pelos manifestantes é desconhecido. Como vem discutindo este boletim, os efeitos negativos das OSS sobre a saúde pública são cada vez mais conhecidos por gestores e trabalhadores, e são alvo de diversas críticas. Por isso, a população apresentou três propostas de modelo de gestão que evitariam a privatização do Hospital Estadual Sumaré. Se bem sucedida, a mobilização tem um potencial notável: prova que é possível barrar a crescente tendência de infiltração de interesses privados no Sistema Único de Saúde (SUS).

Contrapropostas evitariam privatização

O chamamento público para que uma Organização Social da Saúde assuma a gestão do hospital já foi publicado pelo governo estadual de São Paulo. O prazo final para a entrega de um Plano Operacional pelas OSS que manifestaram interesse se encerrará no dia 21/7. Como o processo ainda não se concluiu, além de exigir o cancelamento do chamamento público, os estudantes propõem um cardápio de alternativas concretas que manterão um HES 100% SUS.

A primeira proposta consiste na transformação do Hospital Estadual Sumaré em um hospital-escola da Unicamp, como é o caso do Hospital de Clínicas (HC-Unicamp). A forma de seu financiamento seria alterada – deslocando-se do orçamento da Saúde para o da Educação – sem prejuízo de seu caráter público, como é o caso dos demais Hospitais Universitários (HUs) do país.

Outra fórmula envolveria a criação de um convênio permanente entre a Unicamp e o poder público para a gestão do hospital. Assim, se dispensaria a necessidade de renovar o acordo a cada cinco anos – processo que foi aproveitado pelo governo estadual para instalar a atual crise. De acordo com juristas que assessoram o movimento em defesa do HES público, esta alternativa exigiria a aprovação de uma lei complementar pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) para se viabilizar, mas é factível. Por fim, também seria possível manter o atual formato do convênio, bastando sua renovação pelo governador.

Os argumentos do Executivo estadual para encerrar o convênio são frágeis. O governo Tarcísio alega que há problemas jurídicos com o modelo vigente, e por isso seria necessário fazer um chamamento baseado na lei estadual das OSS, permitindo a concorrência de entes privados. No entanto, a imprecisão deste argumento foi refutada pela advogada Lenir Santos, doutora em Saúde Pública e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, em entrevista ao PatoLógico, o jornal dos estudantes de Medicina da Unicamp.

“Uma coisa são os convênios entre entes públicos, que devem cooperar entre si; outra o governo decidir que pretende fazer parcerias com o setor privado, como OSS. No SUS, a integração das ações e serviços de saúde é a regra (art. 198 da CF), sendo exceção o regime da complementaridade do privado do SUS. Estão tratando como coisas iguais, entendendo que a Unicamp, como entidade pública, obrigada a integrar o SUS, deve concorrer com entidades privadas qualificadas como OSS”, afirmou Lenir.

Um raciocínio similar foi exposto por Claudio Saddy Rodrigues Coy, diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em março: “Quando se faz um edital por OS é porque o Estado não tem condições de assumir aquela estrutura. No caso do Sumaré, isso não se aplica, pois o hospital está funcionando bem. A Lei Orgânica da Saúde prioriza o público sobre o privado”, afirmou em março.

Firmando-se nessa base constitucional e legal, o movimento pelo HES 100% público levanta suas bandeiras. “Nós estamos fazendo esse ato hoje porque a gente quer sentar com a Secretaria de Saúde e perguntar por que eles não consideram essas outras opções, por que eles querem tirar o HES da Unicamp, por que querem correr o risco de tirar do povo um direito tão precioso que é a saúde pública de qualidade. A privatização seria um ataque tremendo à saúde e à educação e tem várias saídas jurídicas para não ser assim”, argumenta Eduarda Castro, acadêmica da Unicamp e membro do Quilombo Ubuntu, coletivo de estudantes negros do curso de Medicina.

Manobra arriscada

Dobrando-se à proposta do governo estadual, a Unicamp decidiu alterar o estatuto Fundação para o Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp), seu braço que gere o HES, para permitir que ela atue como uma Organização Social da Saúde. Assim, a Funcamp passou a estar apta a participar do chamamento público. Com isso, no último sábado (28/6), Tarcísio de Freitas disse que “tudo caminha” para que a Unicamp mantenha a gestão do hospital. No entanto, apesar de suas declarações, não há confirmação formal de que a Funcamp tenha sido a única OSS a se inscrever no processo e não se pode prever que vá ganhá-lo.

Os manifestantes presentes no ato de junho deixaram claro que têm fortes críticas a esse caminho. Mesmo que o HES “se mantenha com a Unicamp” por meio da transformação da Funcamp em uma OSS, esta alternativa ainda significa a terceirização da gestão e vínculos trabalhistas mais frágeis para os funcionários do hospital. Além disso, daqui a cinco anos, um novo chamamento público ainda pode ser perdido para outra Organização Social da Saúde.

Conciliar com a introdução da gestão por OSS também arrisca abrir margem para consequências mais amplas. Em entrevista ao G1, o responsável pela Diretoria Executiva da Área de Saúde (Deas), setor da Unicamp responsável pela gestão de hospitais, alerta para um “efeito dominó” em que as demais unidades mantidas pela instituição podem ser os próximos alvos da ofensiva privatista do governo estadual. Além do equipamento em Sumaré, a universidade administra por convênio o Hospital Regional de Piracicaba e Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs) em sete cidades do interior paulista.

A importância do HES e o risco da entrega às OSS

Os números da atividade do Hospital Estadual Sumaré são significativos – e ajudam a explicar a força da movimentação em sua defesa. Mensalmente, de acordo com dados próprios, o equipamento realiza em média 25 mil exames laboratoriais, 6,5 mil consultas especializadas, 4 mil exames de imagem, 1,2 mil internações, 1.050 cirurgias e 250 partos. Por ano, chega-se a 62 mil consultas ambulatoriais. O HES é o hospital de referência para a população de cidades importantes da Região Metropolitana de Campinas como Americana, Hortolândia, Monte Mor, Nova Odessa, Santa Bárbara d’Oeste e Sumaré, que somam uma população de 1,2 milhão de pessoas.

“Em 2000, quando Sumaré era atendida principalmente pelo Hospital Imaculada Conceição [equipamento público fechado após uma crise na virada do século], os índices de morte neonatal eram altíssimos. Hoje, a população vai no HES porque confia e diz: ‘lá meu filho vai ser bem tratado, não vou sair com encaminhamentos que não resolvem nada e nem com uma dívida enorme’. O que a Unicamp fez, por meio de gestão pública, com investimento e responsabilidade com o SUS, foi realmente salvar milhares de vidas”, argumenta Sabrina.

A comunidade universitária de Campinas também se soma aos que avaliam positivamente o HES. “O convênio garante aos estudantes da Unicamp uma formação de qualidade. Além de oferecer estágio para os graduandos de Medicina, Farmácia, Enfermagem, Nutrição e vários outros cursos, o hospital abriga várias residências e projetos de pesquisa e de extensão”, explica a estudante Eduarda.

Atividades contrárias à privatização têm se intensificado nas cidades atendidas pelo Hospital Estadual Sumaré. Antes da manifestação na Secretaria de Estado da Saúde, os sindicatos, movimentos populares de saúde e a própria população da região promoveram uma série de atos na porta do equipamento, no centro das cidades, além de audiências públicas nas câmaras municipais de Campinas e Sumaré. Foi criada uma Frente Parlamentar em Defesa do Vínculo entre Unicamp e o HES. O jornal PatoLógico também deu destaque ao assunto em duas edições recentes (disponíveis aqui e aqui), assim como outros veículos populares. A greve dos estudantes da Medicina seguiu até o dia 23 de junho, quando se encerrou.

Nesse processo, um dos argumentos mais fortes contra a entrega do HES às OSS tem sido a má experiência da população com arranjos públicos-privados na Saúde. É como explica Vitória Beatriz, estudante de Biologia e diretora do DCE Unicamp: “Em Campinas, existe o Hospital Mário Gatti, em que até a enfermagem foi terceirizada, e a própria comunidade já sente o resultado. As funcionárias sofrem com a escassez de itens de higiene básica, precisam racionar álcool em gel e luvas, têm que trazer produtos de limpeza de casa. Isso ocasiona vários tipos de infecção, e a maternidade é particularmente afetada”. Há anos, a Rede Municipal Mário Gatti, que também gere o Hospital Ouro Verde e a Unidade Pediátrica Mário Gattinho, não realiza concursos – apenas contratações de terceirizados.

O mesmo ocorre com o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, um antigo manicômio que hoje funciona como uma Organização Social da Saúde e gere os equipamentos de saúde mental da cidade, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Movimentos sociais alegam haver denúncias de violência sexual nas unidades administrados pelo serviço. Ontem (3/7), os trabalhadores do Cândido Ferreira iniciaram uma greve denunciando a piora das condições de trabalho e a falta de recursos, o que ilustra os problemas do modelo.

Estudantes, trabalhadores e usuários do Hospital Estadual Sumaré temem que a mesma precarização e perda de qualidade no atendimento ocorram com a entrega do equipamento a uma OSS.

“Essas tentativas de privatização de hospitais universitários já estão acontecendo há algum tempo em São Paulo. Mas é importante lembrar que elas já foram derrotadas, como foi possível no caso do HU da USP em 2017. Os estudantes têm que continuar a luta, porque a gente sabe que a privatização significa fazer o equipamento de saúde servir para o lucro, e não como espaço de cuidado e formação”, afirmou a este boletim Luana Alves (PSOL/SP), trabalhadora da saúde e vereadora de São Paulo que esteve presente na manifestação do dia 18/6.

Na ocasião, a parlamentar buscou marcar uma audiência dos estudantes em greve com a Secretaria de Estado da Saúde. No entanto, não obteve sucesso. Naquela véspera de feriado em que a manifestação ocorreu, o titular e a secretária-executiva da pasta se encontravam no interior paulista. Por sua vez, os servidores comissionados que estavam responsáveis pelo prédio no dia haviam encerrado o expediente mais cedo e não estavam mais presentes naquela tarde.

O espaço está aberto para manifestação das autoridades citadas.

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