Haverá um algoritmo para a eutanásia?

Aproxima-se um futuro em que máquinas podem decidir quem morre. Mas as visões de mundo por trás dessas decisões “científicas” estão atreladas a interesses financeiros e lógica de custo/benefício – que tratam o corpo como equipamento passível de ser “desligado”

Ilustração: Zack Rosebrugh/Quartz
.

O algoritmo se define por um conjunto de fatores pré-determinados que cruzarão informações consideradas relevantes para uma solução almejada. No caso da eutanásia, seria decidir se uma pessoa atende os pré-requisitos do pleito, que é abreviar sua própria vida. O projeto Exit International, criado pelo médico australiano Philip Nitschke, está trabalhando em um algoritmo que seja capaz de fazer um teste psiquiátrico de fácil interação através de um computador. Ele propõe que candidatos ao suicídio assistido respondam três perguntas através de um software: “Quem é você?”, “Onde você está?”, e “Você sabe o que irá acontecer quando você pressionar o botão?” Tais perguntas fazem parte de um algoritmo com o objetivo de auxiliar a decisão. Uma vez confirmada, um sarcófago se encherá de gás nitrogênio capaz de causar a morte por asfixia em menos de um minuto.

O primeiro ponto a ser considerado é que, antes de olharmos para estatísticas e probabilidades, os algoritmos são fruto de um tipo específico de raciocínio: uma racionalidade que calcula e orienta a tomada de decisões. Em questões bioéticas, pode-se argumentar que uma abordagem utilitarista ética pode ser aplicável, onde dilemas envolvem sacrifícios inevitáveis que, teoricamente, deveriam buscar o bem comum. Assim, se o acesso ao sistema de saúde é limitado e caro, a decisão de abreviar a vida torna-se uma alternativa para casos considerados difíceis dentro das abordagens indicadas pela prática da medicina ocidental moderna.

Outro ponto a se refletir é que a tradição humanista tem enfrentado profundas crises desde a ascensão do mundo industrial moderno, que propôs a substituição da religião pela razão na esfera pública. Isso revela contradições intrínsecas a um sistema fundamentado em lucro e “vantagens”, alcançados através da biopolítica no controle dos corpos – manipulando seu tempo e autonomia – e da necropolítica praticada durante os processos de colonização modernos.

A partir do século 20, essas contradições têm sido expostas e criticamente revisadas, demonstrando que as “regras para o parque humano” encapsulam o pensamento organizado de uma racionalidade que se assume soberana para além de seus proponentes originais. Originadas de uma tradição excludente e que instrumentaliza os corpos na condição de “vida nua” – vida desprotegida pelas instituições de poder –, tais ideias tendem a favorecer grupos específicos, apesar de no ideal humanista a proposta ser a de que todos se beneficiem igualmente dessa racionalidade e de seus pressupostos.

Na lógica utilitarista, a eutanásia pode ser justificada não apenas pelo respeito à autonomia individual, mas também pela avaliação do custo que um paciente representará ao longo da vida e dos investimentos em sua saúde quando enfrenta uma condição para a qual não há cura ou perspectiva de recuperação. Embora permitir que a própria pessoa decida viver ou morrer represente um avanço aparente no entendimento das liberdades individuais, os impactos sociais do uso dessas prerrogativas permanecem invisíveis e não são devidamente considerados dentro das perspectivas éticas humanistas. Neste contexto, o corpo pode ser comparado a uma máquina com “falhas” que pode ser “desligada” como um equipamento defeituoso, que um cálculo de custo/benefício determina se vale ou não a pena realizar reparos.

O paradigma de respeito à vida vem se dissolvendo, à medida que as contradições de um sistema que produz e lucra com desigualdades, comprometendo a dignidade humana e o bem-estar de todos os seres, apresentam-se como insolúveis.

Ao ler sobre o caso da holandesa que, aos 29 anos, teve seu pedido de eutanásia aceito, encontramos outro problema. Existe um histórico de depressão crônica e outros transtornos mentais para os quais a medicina ocidental moderna não conseguiu fornecer tratamentos efetivos que melhorem sua qualidade de vida, apesar do uso de muitos medicamentos e procedimentos. Casos como esse não são mais isolados: nos Países Baixos, em 2010, houve apenas dois casos de eutanásia relacionados a sofrimento mental, enquanto em 2023 foram 138, representando 1,5% das 9.068 mortes por eutanásia. Cabe-nos pensar sobre como a eutanásia tem se tornado uma solução melhor frente a outras abordagens de cuidado à saúde. Além disso, o que poderia ser visto como um direito do paciente de exercer sua autonomia em situações críticas de saúde, onde não há possibilidade de cuidar de si e viver com dignidade, agora se expande para a possibilidade de suicídio assistido.

Os pedidos de eutanásia por sofrimento mental considerado incurável se multiplicam, como no caso de uma mulher de 40 anos, casada e com dois filhos, que declarou: “não é que eu queira morrer, mas não quero viver mais esta vida”. Isso nos leva a questionar onde está o mundo de opções infinitas prometido por uma sociedade de mercado globalmente interconectada, cheia de fantasias e sonhos possíveis, propagadas em murais, pôsteres gigantes e painéis eletrônicos. Será que as praticamente infinitas possibilidades de acessar conteúdos de todos os tipos em dispositivos eletrônicos estão se tornando mais uma obstrução do que uma solução?

Casos como esses aumentaram de 68 em 2019 para 138 em 2023, segundo o Comitê Europeu de Revisão de Casos de Eutanásia. Este ano, cerca de dois terços da população do Reino Unido se manifestaram a favor de uma nova legislação que amplie os direitos à eutanásia.

Esses casos ocorrem na Europa, berço do conhecimento científico que herdamos e base de nossas instituições e formas de organização política e social, consideradas mais avançadas em termos de civilidade e ética – por isso, precisamos refletir sobre como essa influência chega até nós. Trata-se de como a crise do humanismo afeta seu próprio território e se teremos a coragem de dar espaço para outras formas de conhecer, pensar e cuidar da saúde, considerando perspectivas territoriais, decoloniais, integradas, experimentais e que valorizam afetos como modos de cura, conexões, ética da hospitalidade e respeito a todos os seres. A percepção de escassez é forjada; a natureza é abundante. E onde as soluções não se apresentam, existem caminhos não trilhados a serem descobertos. A ciência é essa busca que reflete o que somos capazes de conhecer de acordo com os pensamentos e crenças de um dado momento histórico. No entanto, tratar os pressupostos da ciência como dogmas tem sido um obstáculo para novas buscas de readequação do conhecimento aos desafios que as revoluções tecnológicas impõem sobre as formas de viver e sobre a própria vida.

O mundo está em crise, e as tecnologias emergentes oferecem transformações que ainda não foram totalmente assimiladas pelo corpo social. Assim como muitos medicamentos, essas tecnologias resolvem problemas, mas também criam novos. Isso ocorre porque envolvem um pensamento e um modo de ver e fazer que resiste a questionamentos e mudanças.

O mundo, em muitos aspectos, está em crise. Há um grande temor sobre o negacionismo da ciência, confundindo-se a produção e circulação de notícias falsas, criadas dentro da sociedade do espetáculo por indivíduos que buscam atenção com afirmações inconsequentes, com questionamentos fundamentados de estudiosos e conhecedores de outros saberes que não se alinham com a mentalidade focada na doença. Assim, defensores da ciência tendem a ignorar ou atacar perspectivas distintas, classificando-as como erro ou falta de conhecimento e informação. A pandemia de 2020, assim como as crescentes polarizações forjadas por estratégias ladinas de marketing político, tem revivido modos de pensamento medievais, nos quais crenças, sejam científicas ou outras, não podem ser discutidas de modo a assimilar questionamentos capazes de modificar os modos de ver iniciais.

Desse modo, também nos algoritmos, exceções são ignoradas, tornando respostas que supostamente deveriam ser fidedignas em resultados parciais. A ausência de informações pode super-representar erroneamente atributos que, no contexto dos fatos, teriam menor impacto. A digitalização total da vida tem impactos ainda desconhecidos e, fundamentalmente, é um simulacro muito distante da própria vida.

Ainda assim, com a pandemia, a esperança de obter respostas através de algoritmos se intensificou. Hospitais em todo o mundo adquiriram novos sistemas de IA (inteligência artificial) para auxiliar nas triagens e buscaram meios de utilizar a tecnologia para compensar a impossibilidade de contato físico. Foi justamente durante a pandemia que o Brasil registrou um aumento preocupante no número de suicídios, agravando os efeitos da crise sanitária, especialmente nos grupos mais vulneráveis. Um estudo recente mostrou que, de 2011 a 2022, houve 720.480 casos de autolesões, resultando em 104.408 hospitalizações e 104.458 suicídios, indicando um aumento de 43% em relação ao período pré-pandemia, com taxas persistentes e crescentes de 2020 a 2022.

Embora estejamos em um momento histórico transitório, ainda com dificuldades de mensurar os impactos das tecnologias emergentes em todos os aspectos da vida, é frágil acreditar piamente que a vida se reduz ao que se vê em telas planas através de algoritmos invisíveis que abreviam a vida enquanto ela ainda acontece. Os modelos algorítmicos e matemáticos, assim como as possibilidades do sistema digital binário, forçam adaptações e criam tensões psíquicas que se manifestam no corpo social por meio de modelos de gestão, modelos de impacto, modelos de excelência, modelos de eficiência, assim como modelos de pessoa, de beleza, entre outros.

Enquanto os algoritmos e a inteligência artificial tomam conta da cena e se expandem em aplicações para todos os setores da vida, não há consenso sobre o uso de algoritmos para auxiliar ou tomar decisões com impacto moral, ético e social. Apesar disso, eles estão operando e aumentando dissidências e conflitos tanto no plano individual quanto no coletivo, sem que seja possível auditá-los, discuti-los e, assim, orientar suas ações de maneira diferente.

O futuro distópico de uma “eutanásia para todos” é a consequência de uma epistemologia que não se responsabiliza por como e de que modos os epistemicídios ocorrem. Isso torna difícil confrontar os problemas causados e seus impactos, além de abrir novos caminhos para que o conhecimento científico represente a sociedade de maneira que torne o mundo um lugar que valha a pena viver.

Enquanto tais dilemas morais não se resolvem, podemos acreditar que o “pacote” da racionalidade, que vê o corpo como uma máquina feita de peças intercambiáveis, somado a um “altruísmo efetivo” dentro de uma lógica utilitarista, está pronto para ser entregue. A legalização do suicídio assistido poderá aumentar as perspectivas de quem quer viver mais. Campanhas de doação de órgãos em vida esperam por adesões. Nesse caso, seria interessante que o doador especificasse alguns pré-requisitos sobre a pessoa que teria direito aos seus órgãos, por exemplo, alguém de baixa renda filiado a um partido operário. Isso talvez não levasse a uma sociedade mais humana, mas poderia ampliar a consciência de classe, facilitando conquistas sociais em prol da maioria. No entanto, não devemos nos enganar, já que a luta pelo poder não contempla perspectivas éticas em sua totalidade, e tudo o que acontece a nível macro se reflete nas relações sociais, interpessoais e nos algoritmos.


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Humanitas, 2010.

ALVES, Flávia Jôse Oliveira et al. The rising trends of self-harm in Brazil: an ecological analysis of notifications, hospitalizations, and mortality between 2011 and 2022. The Lancet Regional Health–Americas, v. 31, 2024.

BUCHANAN, A. Why the Dutch are euthanizing physically healthy young adults – and could the UK be next? The Telegraph, 2024. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/2024/06/08/dutch-euthanasia-healthy-children/

Fiocruz Amazônia. Fiocruz avalia excesso de suicídios no Brasil na primeira onda de Covid-19. Portal Fiocruz, 2022. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-avalia-excesso-de-suicidios-no-brasil-na-primeira-onda-de-covid-19

HEAVEN, Will Douglas. The messy morality of letting AI make life-and-death decisions. MIT Technology Review. 2022. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2022/10/13/1060945/artificial-intelligence-life-death-decisions-hard-choices/

MARTIN, D. MPs to debate assisted dying amid major push for law change. The Telegraph, 2024. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/2024/03/14/mps-to-debate-assisted-dying-major-push-law-change/

NAS, Elen et al. O uso de robôs e a pandemia de Covid-19: questões bioéticas. Portal Fiocruz. 2020. Disponível em https://portal.fiocruz.br/documento/ensaio-o-uso-de-robos-e-pandemia-de-covid-19-questoes-bioeticas

NAS, Elen; SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo. Construção do saber médico: crítica ético-política. Revista Bioética, v. 29, p. 251-256, 2021.

NICOLINI, Marie E.; GASTMANS, Chris; KIM, Scott YH. Psychiatric euthanasia, suicide and the role of gender. The British Journal of Psychiatry, v. 220, n. 1, p. 10-13, 2022.

PASTOR, Luis Miguel. Nota del editor: eutanasia y bioética. Cuadernos de Bioética, v. 30, n. 98, p. 11-17, 2019.

SHERWOOD, H. Dutch woman, 29, granted euthanasia approval on grounds of mental suffering. The Guardian, 2024. Disponível em: https://www.theguardian.com/society/article/2024/may/16/dutch-woman-euthanasia-approval-grounds-of-mental-suffering

SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

Leia Também: