Haverá especialistas para o SUS?
Ligia Bahia reflete sobre o novo programa Agora Tem Especialistas. Relação com o setor privado é delicada: país precisa recorrer a ele neste momento de urgência, mas há poucos recursos para ampliar a capacidade pública. Investimento nos profissionais é essencial
Publicado 16/06/2025 às 09:20 - Atualizado 16/06/2025 às 09:21
Sob holofotes e discursos efusivos de integrantes destacados do governo Lula, o Ministério da Saúde inaugurou o programa Agora Tem Especialistas, certamente o principal esforço na área. O foco é acabar com a fila de espera por cirurgias do SUS.
“O SUS é uma política social, então a ideia de fazer com que haja mais acesso no Brasil, especialmente acesso para tratamento, diagnóstico e tratamento dos cânceres, é fundamental. Essa é uma prioridade mundial, e o Brasil entrar nessa agenda é super importante. Eu diria que o programa como um todo é muito interessante, tem ótimas ideias.” Assim iniciou sua análise Ligia Bahia, médica e coordenadora do Grupo de Pesquisa de Empresariamento da Saúde da UFRJ, em entrevista para a série SUS 35 anos.
Os números revelados dão conta da complexidade do cenário. Em 2024, o SUS bateu recorde de cirurgias eletivas (desconsideradas as de emergência), com 12,3 milhões de procedimentos, alta de 10,8% frente a 2023. De outro lado, a fila continua a crescer e, segundo matéria de O Globo, o tempo de espera por consultas com especialistas e cirurgias também bate recordes.
Por sua vez, até por dificuldade em sistematizar dados que dependem da organização das secretarias estaduais, o governo não expõe o número preciso de brasileiros na fila. Quanto à alta da demanda, caberia uma análise de fôlego a respeito de suas razões, que podem estar associadas a fenômenos diversos. Mas, como deixa claro o programa, não se trata só de ofertar serviços na última ponta, mas também facilitar consultas com especialistas que não estão na atenção primária.
“Seria muito recomendável ampliar a capacidade instalada pública. Porque nós temos uma capacidade deteriorada, que já foi de excelência e não é mais, e está muito vinculada à pesquisa. E para construir 900 centros cirúrgicos nos hospitais públicos, como planejado, a verba apresentada (R$ 4,4 bi anuais) é muito pequena”, analisa Ligia.
Mas a pesquisadora também problematiza as dificuldades em torno do programa: “As políticas sociais no Brasil costumam dar com os burros na água. Entretanto, nós estamos num momento de crise internacional do setor privado, e alguns elementos contextuais podem empurrar para frente um projeto ‘publicizante’, ou seja, na direção de desprivatização”.
Ou seja, o objetivo não é simples e nem se recomenda otimismo total com uma meta tão ambiciosa. Mas o entusiasmo do ministro Alexandre Padilha em apresentar o programa e sempre sublinhar a importância conferida por Lula condizem com a importância do assunto.
Ligia toca num ponto central da fila: a concentração no setor privado dos serviços de atenção hospitalar. Num país onde apenas 25% da população tem planos de saúde, fica fácil notar a desigualdade no acesso à atenção de alta complexidade.
Mais que isso, fica explícita a inconsistência prática da aposta do país no mercado como mediador privilegiado das necessidades sociais. Ainda mais no setor de saúde, onde o SUS sustenta tal setor, inclusive com o processo de especialização dos profissionais agora procurados pelo governo.
“O programa acerta ao propor mais 3 mil vagas de residência, inclusive debatendo quais são os especialistas a serem formados. O ímpeto de fazer com que haja mais acesso no Brasil para tratamento, diagnóstico e tratamento dos cânceres é fundamental, até pela mudança de perfil epidemiológico da população”, afirmou Ligia.
Sua visão corrobora entrevista de Mario Scheffer ao Outra Saúde, à luz também da Demografia Médica, vasto estudo – do qual Ligia também participou – cujos dados oferecem amplo panorama tanto do acesso a especialistas como também de sua desigual distribuição entre o setor público e privado. Tal desigualdade, na visão de ambos, justifica a engenharia financeira tentada pelo governo federal de atrelar a aceleração de cirurgias ao pagamento da histórica dívida dos seguros de saúde com o SUS.
“Corretamente, o programa reconhece que uma parte importante da capacidade instalada para resolver problemas de saúde está localizada no privado. Há vários sistemas de saúde que contratam privado. O problema não é da propriedade, o problema é do acesso, se é universal e não há desigualdade na utilização”, resumiu Bahia.
No entanto, o governo federal tem a chance de ir além. Não só a favor dos brasileiros que estão na fila de espera por procedimentos que melhorem sua condição de saúde, e os libere para a retomada de uma vida plena, como também dos profissionais de saúde.
Em suma, se o SUS forma a maioria dos especialistas, é mais do que hora de absorvê-los, o que seria uma maneira de atacar a “fila da cirurgia estrutural”. Para isso, é necessário derrubar o muro das eternas austeridades fiscais, que no fim das contas não passam de uma manipulação política com vistas a forçar a criação de condições que levem as pessoas a buscar soluções no mercado.
“Temos uma maior formação de profissionais de saúde que não necessariamente será contratada pelo público. E se as operadoras privadas pagam a dívida, o programa acaba? O governo também fala em nova tabela SUS… Mas e se isso der certo, as pessoas vão querer pagar plano de saúde? Isso seria uma mudança estrutural, o governo passaria a regular peço, o que também é uma característica de sistema universal, onde governos são o único comprador de serviços de saúde”, finalizou Ligia Bahia.
Créditos da imagem: EBC
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