Gripe aviária: o preço a pagar pela inação dos EUA

Para epidemiologista, modelo predatório da agropecuária e descaso de governo e empresas estadunidenses, mais efeitos das mudanças climáticas, estão por trás do fracasso do país em controlar a epidemia de H5N1 – que, de lá, ameaça todo o mundo…

Foto: Shiraaz Mohammed
.

A morte de um homem nos Estados Unidos por gripe aviária, anunciada pelas autoridades sanitárias locais no último dia 6/1, vem sendo entendida como marco de um novo momento para a epidemia da doença. Trata-se do primeiro óbito ligado ao subtipo H5N1 do vírus, o mais associado ao atual surto, no país que se tornou o epicentro dos novos casos. Em pronunciamento, a Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA) avaliou que “a situação ressaltou a importância de que o risco seja enfrentado” e que se impeça o vírus de “circular entre aves, porcos, vacas e animais silvestres”, pois é “aí que uma mutação do vírus pode ocorrer e potencialmente criar uma pandemia”.

Entrevistada por Outra Saúde, a epidemiologista Ligia Kerr, que é professora titular da UFC (Universidade Federal do Ceará) e ex-vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), explica que não é possível estimar quando essa temida mutação poderia acontecer. No entanto, ela destaca que o fracasso das autoridades sanitárias estadunidenses em interromper – ou pelo menos mitigar – a circulação do agente patogênico aumenta a probabilidade de que ele ganhe a capacidade de passar de humano para humano. Dado esse salto, o número de casos e óbitos tenderia a aumentar vertiginosamente.

Paralisia dos EUA piorou a situação

É nesse sentido mais abrangente que a epidemiologista – reconhecida por sua contribuição à resposta do Brasil a uma série de doenças transmissíveis, como hanseníase, HIV/aids, zika e, mais recentemente, a covid-19 – aponta os fatores que levaram os Estados Unidos a se tornar, neste momento, um país com um número discrepante de casos da doença.

Os EUA estão tendo muita dificuldade de fazer o controle das questões do clima, principalmente porque não fazem nenhum esforço real”, ela alerta. No mais populoso país da América, que possui um forte setor agropecuário, o vírus “pulou” muitas vezes das aves silvestres para as aves de criação. Dados disponibilizados no último dia 6/1 pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em um painel interativo sobre a situação da H5N1 nas Américas revelam a extensão do problema: dos 67 casos em humanos desde 1º de janeiro de 2024 no continente, 66 foram nos EUA; dos 1.300 surtos entre animais, cerca de 1.100 também foram naquele país.

Circulando praticamente sem controle nos EUA, o agente patogênico sofreu numerosas mutações. Em março de 2024, como explica um estudo no New England Journal of Medicine, foi identificado o primeiro caso de transmissão da H5N1 de uma vaca para um humano. Na sequência, cresceu entre os especialistas o temor do surgimento de uma nova variante, capaz de transmitir o vírus de pessoa para pessoa. “Não dá para dizer exatamente quando vai ocorrer essa mutação, porque não é assim que elas funcionam, mas vale notar que o vírus agora está sendo transmitido a partir de mamíferos, que são animais mais próximos de nós. Ou seja, a chance está aumentando”, esclarece Ligia Kerr.

O homem recentemente falecido no estado de Louisiana estava infectado com um vírus do clado associado à infecção de aves, e não mamíferos. Ele contraiu a doença após ser exposto a uma criação de galinhas em que havia animais infectados, disseram as autoridades locais. O fato aponta para o segundo fator fundamental, além das mudanças climáticas, a agravar a crise da H5N1 nos Estados Unidos: a hegemonia de um modelo econômico predatório na pecuária.

A maneira como se está produzindo carne e outros produtos derivados de galinhas e vacas é um problema. Se concentra um número gigantesco de animais em condições sujas, estressantes, com pouco espaço. Eles ficam muito mais vulneráveis a essas doenças e, por consequência, nós também ficamos”, aponta a epidemiologista.

Como o Brasil encara o problema

No Brasil, esclarece Ligia, os casos da gripe aviária nos últimos anos se restringiram basicamente a aves silvestres e a atuação das autoridades tem sido eficaz – pequenos surtos em criações de subsistência foram rapidamente identificados e contidos com o apoio do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), por exemplo. Em outubro, foi renovado o estado de “emergência zoosanitária” em todo o território nacional para manter a vigilância contra o vírus. No ano passado, o Ministério da Saúde (MS) publicou um Plano de Contingência do Setor Saúde para Influenza Aviária e um Guia de vigilância da influenza aviária em humanos.

Complexo, o cenário também envolve uma questão de classe. A maior parte dos casos humanos de H5N1 notificados pelos EUA envolvem trabalhadores que têm contato com animais em seu dia a dia – como aqueles que são funcionários de granjas e fazendas de gado. O fato é de particular interesse para nosso país, em que a criação e o abate de animais tem importante peso econômico e numerosa mão de obra.

Além do papel do Mapa, o MS já vem preparando ações e equipes para a vigilância e situações de emergência. Mas penso que deve haver ainda mais integração, envolvendo também o Ministério do Trabalho”, adiciona a epidemiologista, referindo-se ao risco maior que correm os funcionários de estabelecimentos que manipulam animais vivos e mortos no seu dia a dia. Não são poucos os brasileiros que trabalham em granjas, fazendas de criação de gado, açougues e abatedouros – e é comum que suas condições de trabalho estejam bem aquém do que seria digno.

Além disso, está em gestação no país uma vacina contra a gripe aviária. Em agosto do ano passado, o Instituto Butantan submeteu à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) uma solicitação para dar início às pesquisas clínicas do imunizante. “O Butantan incluiu vacinas com a cepa H5N1 nos ensaios pré-clínicos, por também se tratar de uma variante altamente patogênica, permitindo uma mudança de cepa caso essa variante se espalhe”, diz comunicado da instituição à época. Uma nota de dezembro da Agência Gov indica que o estudo está na fase 2, e que a vacina poderá ser “fornecida ao SUS no futuro”.

Contudo, frisa Lígia, é preciso ter em mente que não haverá solução sem uma intervenção mais sistêmica: “É claro que você tem que ter vacina e ações de emergência para impedir que o vírus se alastre, já que ele está chegando mais perto da transmissão entre humanos. Mas também é preciso destacar que, sem ações mais estruturais para enfrentar a crise climática, haverá novas situações assim”.

A despeito da situação estável no Brasil, ela reforça que as ações de vigilância epidemiológica não bastam. Mudanças estruturais no setor agropecuário são a melhor chance para impedir que o enorme surto da H5N1 nos EUA se desdobre em um evento pandêmico. Além disso, medidas ambientais e climáticas de fundo são essenciais para evitar a disseminação global de outros vírus altamente patogênicos, que possam gerar novas pandemias.

Grande parte dos eventos pandêmicos e epidêmicos recentes, inclusive a covid-19, têm ligação com a destruição do habitat de animais silvestres. Nós temos que parar de tratar a natureza desse jeito. Não tem por onde escapar, se não mudarmos, vamos ter outras epidemias e pandemias”, conclui a epidemiologista.

Leia Também: