Fila de espera por cirurgias, um problema global

Além do aumento de doenças crônicas e dos reflexos da pandemia, a crise é agravada pela lógica da busca de procedimentos de média e alta complexidade no lugar da Atenção Básica. Como fazer uma reestruturação do atendimento para desafogar os hospitais?

Em uma sala de cirurgia com paredes verdes, um profissional de saúde paramentado com touca, máscara, óculos e avental verde realiza um procedimento em um paciente coberto por campos cirúrgicos azuis, utilizando um microscópio cirúrgico. Ao fundo, outra profissional de saúde, também paramentada, auxilia.
“A necessária reestruturação produtiva na saúde pode começar promovendo uma desospitalização através da implantação de dispositivos de cuidado, mesmo os especializados, em ambiente não-hospitalar, mais ágeis, de menor custo.” Créditos: Elza Fiúza/Agência Brasil
.

São centenas de milhares de pessoas que esperam na fila do SUS por cirurgia ou algum procedimento especializado. Geralmente são doenças graves ou agravadas pela espera. Principal agenda do SUS neste momento, o problema não se encerra no Brasil. Há uma crise global de oferta de procedimentos especializados na saúde, em razão do alto volume da demanda.

O problema afeta países com sistemas universais de saúde. Por exemplo, no Canadá antes da pandemia em 2019, mais de 60% dos usuários permaneciam em lista de espera para cirurgia de catarata durante mais de três meses. O número médio de dias que uma pessoa esperou foi de quase um ano na Polônia (336 dias), e mais de 100 dias na Costa Rica, Eslovênia e Irlanda. Esta situação piorou quando se iniciou a pandemia em 20201.

O agravamento da crise pela retenção de demanda de cirurgias eletivas durante a pandemia é um fator que atingiu a todos os países. Adicionalmente percebemos um aumento da incidência de doenças crônicas na população provenientes de sequelas deixadas pela doença de covid-19. Pode-se incluir também, nas causas, a baixa resolutividade na Atenção Básica, que aumenta os encaminhamentos para atendimentos especializados.

O que quase não se discute é que parte expressiva da demanda poderia ser evitada se houvesse uma aposta em sistemas de saúde com Redes Básicas robustas, equipadas, motivadas, operando em redes colaborativas. O mercado, após o grande desenvolvimento tecnológico conhecido na segunda metade do século XX, induziu ao consumo exacerbado destes recursos. Trabalhadores e usuários buscam obsessivamente procedimentos de alta e média complexidade, que passaram a substituir a velha e boa clínica. Ao invés de apoio diagnóstico, o traçado e imagem dos exames passaram a ser o centro de atenção da maioria dos médicos. Produziu-se o conhecido fenômeno de “produção imaginária da demanda”2, que significa a imagem distorcida do exame, associada à ideia de que ele cuida das pessoas.

A resultante deste processo tem sido a altíssima pressão de demanda para os serviços de saúde, se tornando extremamente caros e em choque com o sempre insuficiente financiamento dos sistemas de saúde. As respostas dos governos têm sido insuficientes porque em geral atuam apenas no componente da oferta, ou seja, aumentando a oferta de serviços, a um alto custo financeiro.

Raramente se pensa atuar sobre a gestão da demanda, organizando processos produtivos usando de tecnologias relacionais e o conhecimento acumulado da clínica e cuidado. Seria necessária uma reestruturação produtiva, que alterasse os processos de trabalho ao nível do “chão de fábrica” dos serviços de saúde, o lugar de encontro entre o trabalhador e o usuário. A ideia geral de humanização dos serviços de saúde cai bem para ilustrar esta necessária mudança.

A título de ilustração, na Inglaterra antes da pandemia, as listas de espera vinham aumentando mês a mês desde abril de 2012, e o Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) não cumpria a sua norma operacional que estipulava a meta de 92% dos usuários receberem tratamento no prazo de 18 semanas após o encaminhamento para o serviço especializado, desde novembro de 20153. O Sistema Nacional de Saúde possui um programa, o Getting It Right First Time (GIRFT), que é o maior programa de melhoria da qualidade dos cuidados em saúde do Reino Unido, que opera em 42 especialidades clínicas4. Neste momento começam a pensar em estratégias para a melhoria da qualidade, e otimização de recursos, com vistas a inverter a atual lógica de produção do cuidado.

Por exemplo, o NHS tem a meta de reduzir a 20% os procedimentos eletivos que necessitam de internação, ficando 80% deles a serem realizados ambulatorialmente ou em Hospital-Dia. “No futuro dos cuidados eletivos, 80% a 85% de toda a cirurgia eletiva deverá ser realizada em regime de ambulatório. Há potencial para aumentar o número de procedimentos efetuados em regime de Hospital-Dia em muitas especialidades. Isto ajudará a melhorar a experiência do usuário, a reduzir a falta devido à pressão sobre os leitos em momentos de maior procura (por exemplo, estação de inverno) e a aumentar a disponibilidade de leitos para procedimentos mais complexos”.

A necessária reestruturação produtiva na saúde pode começar por este ponto, promovendo uma desospitalização através da implantação de dispositivos de cuidado, mesmo os especializados, em ambiente não-hospitalar, mais ágeis, de menor custo. Isto qualifica o hospital e reserva seus recursos para aqueles casos que necessitam exclusivamente de tecnologia hospitalar.

Niterói, 03.06.2025


1 Saúde num ápice 7 de novembro de 2023. Acessível em https://www.oecd.org/en/publications/health-at-a-glance-2023_7a7afb35-en/full-report/waiting-times-for-elective-surgery_68501edc.html

2 Franco, T.B. & Merhy, E.E., Produção Imaginária da Demanda in Pinheiro, R. & Mattos, R.A. (orgs.) “Construção Social da Demanda”; IMS/UERJ-CEPESC-ABRASCO, Rio de Janeiro, 2005.

3 Future Healthc J . 2022 Jul;9(2):144-149. Acesso no link do doi: 10.7861/fhj.2022-0053

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também: