EUA temem nova diplomacia da saúde chinesa

Em sua onda de cortes, Trump pretende suspender fundos da Gavi, aliança internacional de distribuição de vacinas. Na política, não há vácuo: com suas fábricas, China está bem posicionada para assumir apoio à imunização em países do Sul Global

Foto: Brenda Goh
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Por Prashant Yadav e Chloe Searchinger, no Think Global Health | Tradução: Guilherme Arruda

O ensaio que se segue, publicado originalmente no portal Think Global Health, traça de maneira perspicaz os contornos do cenário que se abre na Saúde Global com a possível suspensão do financiamento norte-americano da Gavi. Esta é uma aliança multilateral que busca ampliar o acesso à imunização nos países mais pobres, distribuindo milhões de doses de vacinas. Por descrever com riqueza de dados o papel da Gavi e propor uma instigante hipótese – isto é, que a China, com sua robusta indústria farmacêutica, reúne condições políticas e técnicas para assumir o protagonismo no apoio à vacinação no Sul Global –, Outra Saúde optou por traduzi-lo, com o objetivo de informar seus leitores. No entanto, este boletim não coaduna com a linguagem de Guerra Fria – a China enquanto um “risco de segurança nacional” aos EUA – empregada para referir-se ao país asiático.

O governo Donald Trump planeja pôr fim ao apoio financeiro dos EUA à Gavi, uma iniciativa global para compra e distribuição de vacinas que imunizou mais de 1 bilhão de crianças desde seu lançamento em 2000.

Os Estados Unidos foram um dos seis países a oferecer as doações que fundaram a Gavi e atualmente são o terceiro maior contribuinte da iniciativa, fornecendo mais de 12% do financiamento. O governo norte-americano compromete esses fundos por meio de promessas plurianuais, que o Congresso então aprova em um cronograma anual. Se o governo levar o plano adiante, cortará uma doação americana de US$2,6 bilhões até 2030, mais da metade dos quais ainda não foram destinados à Gavi.

Embora o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, tenha anunciado em março que o governo havia finalizado sua revisão de projetos de ajuda externa, a decisão de descontinuar o financiamento da Gavi ainda pode mudar, à medida que as autoridades federais avançam em direção à implementação de suas medidas. Mas se o governo não mudar de rumo, a Gavi enfrentará desafios consideráveis ​​ao tentar esticar seu orçamento.

A perda do financiamento dos EUA pode deixar a Gavi com três opções para reduzir suas operações: interromper o financiamento do fornecimento de vacinas para alguns países beneficiários, reduzir o número de vacinas que a iniciativa apoia ou reduzir o financiamento para o desenvolvimento de vacinas e sistemas de saúde. Todas essas opções podem alterar significativamente a saúde e a expectativa de vida de quase 100 milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo.

Ao recuar em seus compromissos com a Gavi, os Estados Unidos abrem caminho para a China expandir sua influência no mercado global de vacinas por meio de seus empréstimos estrangeiros, programas de ajuda e fornecedores de vacinas. Essa abordagem pode refletir a diplomacia de vacinas da China durante a COVID-19, quando forneceu vacinas a muitos países de baixa ou média renda que enfrentavam barreiras de acesso.

Quais países podem ser afetados?

A Gavi direciona sua ajuda aos mais pobres do mundo, apoiando apenas países com renda nacional bruta per capita recente inferior ou igual a US$1.820. O modelo de financiamento da Gavi compra e adquire vacinas em parceria com países de baixa renda, aumentando seus níveis de cofinanciamento à medida que a renda nacional aumenta. Assim que uma nação se torna rica o suficiente para se tornar inelegível, ela entra em uma fase de transição acelerada, um período de cinco anos em que o país aumenta seus gastos com vacinas até se autofinanciar totalmente.

Dos 54 países elegíveis para o apoio da Gavi, 11 se qualificam para o programa de transição acelerada, e esse subconjunto enfrenta as maiores consequências com a decisão dos EUA de interromper o financiamento.

Se esses países de baixa e média renda perderem a capacidade de financiar múltiplas vacinas simultaneamente devido ao corte de financiamento da Gavi, uma alternativa viável seria recorrer à China — para empréstimos, ajuda externa e os preços altamente concessionais que seus fornecedores de vacinas poderiam oferecer. Desde 2000, a China forneceu mais de US$89 bilhões em assistência cumulativa ao desenvolvimento para essas nações, todas membros de sua Iniciativa Cinturão e Rota. Aproximadamente US$1 bilhão desse total — pouco mais de 1% — foi alocado para assistência à saúde. Esses países já estão no foco estratégico da estratégia de influência externa mais ampla da China, inclusive no setor da saúde.

Quais vacinas correm risco de desfinanciamento

Em seu lançamento, a Gavi financiava vacinas para seis doenças infecciosas, mas hoje esse número cresceu para vinte. Além das vacinas infantis de rotina contra tétano, hepatite e sarampo-rubéola, a Gavi também forneceu acesso à vacina contra o ebola em 2019 e à vacina contra a covid-19 em 2021. A iniciativa lançou duas novas vacinas contra a malária nos últimos dois anos, financiou a vacinação contra o papilomavírus humano (HPV) para prevenir o câncer cervical, expandiu a disponibilidade das vacinas contra a raiva e, mais recentemente, adquiriu e alocou centenas de milhares de vacinas contra a mpox durante o último surto na África Central e Ocidental.

A Gavi escolhe quais vacinas financiar com base em um processo rigoroso e sistemático. A cada cinco anos, os parceiros públicos e privados da organização avaliam o cenário atual de vacinas para determinar quais vacinas subutilizadas ou novas teriam o maior impacto nos países elegíveis, considerando custo, resultados de saúde e viabilidade programática. A implementação dessa prática em ciclos de cinco anos permite à Gavi criar previsões estratégicas que proporcionam maior visibilidade da demanda e oferta futuras para os países implementadores, financiadores e fabricantes de vacinas, que devem planejar a expansão do mercado.

De particular risco devido aos cortes de financiamento, podem estar as vacinas contra a malária recentemente implementadas, bem como as vacinas contra o HPV, a encefalite japonesa e as que enfrentam emergências de saúde.

Apoio da Gavi aos sistemas de saúde

A Gavi auxilia os países na implementação de seus programas, para garantir a melhor distribuição de vacinas possível. Esses esforços consistem em apoio à infraestrutura dos sistemas de saúde, equipamentos da cadeia de frio e investimentos em inovações que melhoram a eficácia do programa de vacinação e impulsionam a eficiência.

Por exemplo, a estratégia prioritária de inovação em vacinas da Gavi ajuda a acelerar o uso de novos dispositivos de administração, como adesivos de microarray, para substituir seringas. A estratégia também prioriza vacinas de cadeia de temperatura controlada e termoestáveis, que requerem menos refrigeração, e inovou um roteiro para códigos de barras de vacinas, para que seu impacto possa ser rastreado com clareza.

Cortes nesses programas de apoio desacelerariam o ritmo da inovação e criariam incerteza para os fabricantes de vacinas, especialmente aqueles que visam doenças infecciosas sem mercados de alta renda, como a malária.

A China e os mercados estratégicos de vacinas

O cancelamento de fundos dos EUA para a Gavi também representa um risco à segurança nacional, pois a China terá a oportunidade de desempenhar um papel maior no mercado global de vacinas.

A participação da China na biotecnologia global está crescendo rapidamente, e seus líderes têm buscado investimentos governamentais em larga escala em pesquisa e desenvolvimento, investimento direto em fabricantes de vacinas e treinamento para sua força de trabalho na área de produtos biológicos.

Empresas chinesas já fornecem algumas imunizações para doenças preveníveis por vacinas a países considerados estratégicos na África, Ásia Central, Ásia Meridional e Pacífico Ocidental. Em outros casos, essas empresas ainda não penetraram em um mercado financiado pela Gavi, mas estão prontas para tirar vantagem, pois possuem uma grande capacidade de fabricação para abastecer o mercado interno chinês. Esses fabricantes também têm um pipeline de novas vacinas em desenvolvimento — vacinas que os países beneficiários da Gavi poderão comprar no futuro.

Vários desenvolvedores baseados na China receberam o status de aprovação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para vacinas selecionadas pela Gavi nos últimos anos, superando um obstáculo fundamental para a distribuição aos países de baixa e média renda. Desenvolvedores menores incluem a Xiamen Innovax Biotech e sua vacina contra o HPV, o Instituto de Produtos Biológicos de Pequim e sua vacina contra a poliomielite, assim como o Chengdu Pharmaceutical Group e sua vacina contra a encefalite japonesa. A Sinovac, principal desenvolvedora de vacinas da China, já desenvolve vacinas contra poliomielite e hepatite A com o selo de aprovação de segurança da OMS, e a principal fabricante Zhifei está trabalhando em conjunto com a multinacional GSK para comercializar uma vacina contra o vírus sincicial respiratório e, simultaneamente, desenvolver uma nova vacina pneumocócica.

A diplomacia de vacinas da China em meio ao desfinanciamento da Gavi

O uso de vacinas pela China como ferramenta de diplomacia estratégica não seria uma novidade nem uma ideia abstrata.

Distribuir vacinas para reforçar a influência regional e a posição global foi uma tática chinesa durante a pandemia de covid-19, visando nações dentro e fora da Iniciativa Cinturão e Rota, mas destinando suas doações a países ou regiões específicas. As doações da Sinovac, principal fabricante chinesa de vacinas contra a covid-19, superaram muitas outras durante as fases iniciais da pandemia, e mais de 70% das doações de vacinas chinesas foram para o Sul e Leste da Ásia no primeiro ano de sua disponibilidade, apesar de essas regiões apresentarem menor incidência de casos do que a África Subsaariana e a América Latina.

Reduzir ou interromper as contribuições dos EUA para a Gavi pode prejudicara cobertura vacinal das crianças mais vulneráveis ​​do mundo, impedindo que até 75 milhões de crianças sejam vacinadas e permitindo a ocorrência de 1 milhão de mortes que poderiam ser evitadas. A decisão desacelerará o desenvolvimento de vacinas e dispositivos de aplicação, diluindo o interesse dos fabricantes em permanecer no mercado global de vacinas.

Embora esses sejam motivos suficientes para manter o apoio financeiro à Gavi, o governo dos EUA deve se lembrar do peso estratégico que os cortes de financiamento terão no mercado global de vacinas e das consequências geopolíticas de perder para a China em uma competição de diplomacia de vacinas.

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