Eólicas em Pernambuco: uma breve vitória

Comunidades sofrem com a transição energética comandada pelo capital especulativo. Após uma ocupação, conseguiram o desligamento das turbinas para conter danos. Durou apenas alguns dias. Por que esses conflitos estão ligados com a luta pela terra e pela saúde?

Imagem do documentário “Vento Agreste“, do Brasil de Fato, que mostra denúncias de agricultores e agricultoras que sofrem com a instalação de usinas eólicas em Pernambuco. Créditos: Divulgação
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No dia 18 de fevereiro, um fato incomum foi pouco notado: o governo de Pernambuco ordenou a paralisação dos parques eólicos dos municípios de Caetés e Venturosa, no agreste nordestino, após os indígenas Kapinawá ocuparem por dois dias a Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (Adepe).

Mas não durou. Poucos dias depois, as coisas parecem ter voltado ao normal, isto é, os interesses das grandes corporações voltaram a ser postos acima de tudo, e o desembargador Antenor Cardoso Soares Júnior, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), deu liminar que permitiu o religamento das turbinas eólicas. Como de hábito, as justificativas falam em interesse social e coletivo. No entanto, não é o que pensam as comunidades afetadas.

“Nunca ninguém da empresa veio saber se minha mãe precisava de alguma coisa. É triste quando a gente escuta o pessoal fazendo a propaganda bonita da energia eólica, dizendo que é limpa, barata e renovável, que tem cuidado com o social, com as famílias, que presta assistência…”, contou ao Outra Saúde o agricultor José Salgado da Silva Sobrinho, que vive em Caetés no sítio Pau de Ferros, um dos vários locais do município afetados pelo Complexo Eólico Ventos de São Clemente.

O empreendimento pertence à Echo Energia. É uma subsidiária do grupo Equatorial, formado por grandes fundos de investimento, entre eles a Black Rock, multinacional sediada em Nova York, considerada o maior fundo de investimento do mundo. Já a Equatorial, é uma das campeãs da privatização do setor elétrico brasileiro e evidencia como a suposta transição energética e ecológica está dominada pelos grandes responsáveis pela crise climática.

Apesar de a ocupação do prédio público ter sido protagonizada pelos indígenas, as comunidades tradicionais e movimentos sociais, como a Comissão Pastoral da Terra, também têm papel ativo na luta contra os impactos das fontes renováveis de energia e seus projetos propagandeados como limpos e sustentáveis.

“Já faz 16 anos que esses parques foram implementados, enquanto as lutas da comunidade contra seus efeitos têm 10 anos. Enfrentamos insônia, ansiedade, depressão, enfim, uma série de coisas. A população vem denunciando, mas o governo não toma nenhuma posição. Com muita pressão, suspenderam [as atividades das eólicas] por uns 4, 5 dias, mas os desembargadores liberaram. Não estão preocupados com a saúde da população, estão muito mais ligados aos empresários, que pensam no lucro”, disse Eurenice Silva, moradora do sítio Sobradinho e membro da Comissão Pastoral da Terra em Garanhuns, município vizinho.

Em linhas gerais, as denúncias das comunidades afetadas seguem um padrão: não há estudos rigorosos de impactos ambiental, as populações locais não têm assegurado seu direito de consulta e as empresas se utilizam de artifícios para vender ilusões sobre a sustentabilidade de um “novo tipo” de progresso econômico.

“Enquanto as pessoas estavam esperando vir uma proposta indenizatória, recebemos a notícia de que a Casa dos Ventos não era mais proprietária do Parque Eólico São Clemente. Foi substituída pela Echo Energia. A Echo mandou um pessoal aqui nas comunidades e se comprometeram a indenizar as famílias. Fizeram os levantamentos das propriedades, tiraram fotos, fizeram anotações, mandaram as pessoas esperarem de 30 a 40 dias que viria a proposta da indenização. As famílias confiaram e, quando a gente estava no aguardo, a empresa disse, simplesmente, ‘não vamos indenizar ninguém’”, criticou José Sobrinho.

Em meio a isso, há ainda um processo conturbado de convencimento das comunidades, onde mais um padrão se repete: as empresas e seus emissários usam táticas para gerar conflitos entre os moradores a partir de promessas e negociações individualizadas. A omissão do Estado, cuja burocracia parece presa fácil ao discurso da sustentabilidade, completa o quadro que opõe forças políticas, sociais e econômicas profundamente desiguais.

“Não tem lucro para a comunidade, apenas para os fazendeiros que arrendaram terras – a empresa paga por gerador dentro da área. Quando o proprietário tem oito, dez aerogeradores na terra, recebe muito. Mas quem tem um, dois, nem tanto. Fora que nem sabe quanto gera de energia. A empresa nunca se preocupou com nosso bem estar”, desabafa Eurenice.

Danos à saúde

Considerada a melhor região do mundo para usinas eólicas, o Nordeste já conta com centenas de parques geradores, com milhares de turbinas espalhadas por diversos estados. Tal fonte de energia já se afirma como fundamental na região. Mas só recentemente a sociedade começa a se dar conta de que as fontes renováveis de energia também causam impactos ambientais e sociais.

No caso das comunidades, os danos à saúde são indisfarçáveis. O barulho das turbinas, instaladas a poucos metros do local de moradia e trabalho de tais pessoas, é fonte de transtornos mentais, depressão, insônia, hipertensão, que se generalizam por toda a comunidade.

“Lutamos para que a empresa ofereça assistência médica e assuma os danos causados à saúde, tanto das famílias quanto da produção dos animais, dos prejuízos que vem causando esses anos. As populações de Sobradinho e Parque Santa Brígida são as mais adoentadas. Muito sofridas, muito adoecidas. Muitos não acreditam em mudança e preferem sair”, contou Eurenice.

Tanto ela como Sobrinho destacam o valor irrisório das indenizações ou arrendamentos, ainda mais diante da alta lucratividade dos empreendimentos. Citada no início da matéria, a mãe do agricultor José Sobrinho desistiu de receber uma resposta satisfatória e se mudou da comunidade. Já sua filha, frequenta psicólogo desde o início da adolescência. Ao Outra Saúde, ambos lamentam o despreparo do SUS em lidar com as diversas consequências na saúde da população.

“É um colapso. Porque nunca ninguém na área da saúde veio dar uma assistência às famílias. Demora três, quatro meses para conseguir uma consulta. Quando o médico passa um exame, demora ainda mais pra fazer. É assim que somos tratados. Ninguém pode chegar aqui na comunidade para dizer que, devido aos efeitos dos problemas trazidos pelas energias eólicas, receberemos um olhar diferenciado por parte do SUS”, explicou José Sobrinho.

“Não tem acolhimento, uma focalização na ação em relação a uma comunidade que vive afetada, mais suscetível a certos problemas. O negócio é esperar, esperar. O atendimento do SUS pelo município é terrível. Às vezes não tem médico. A medicação às vezes é dipirona e muitas vezes nem isso. Muitas famílias fazem empréstimo para pagar uma consulta particular. Situação muito caótica”, complementa Eurenice.

Como sempre, a questão da terra

A despeito da propaganda sobre “economia verde” e responsabilidade ambiental, as práticas históricas do capitalismo predatório se repetem. Assim como suas motivações. No final das contas, as terras habitadas por tais comunidades também são fonte de enorme interesse das multinacionais cujos donos são protagonistas centrais de todo um modo de produção e consumo responsável pela crise que alegam mitigar.

No dia 24/2, o The Intercept publicou reportagem com denúncias de comunidades baianas a respeito de grilagem de terras por intermediadores dos interesses da Enel, mais uma empresa que usa do capital acumulado em empreendimentos tradicionais de geração de energia para entrar no ramo das renováveis.

“O que a empresa de fato quer é a terra. É um novo latifúndio que está se apresentando. É a guerra que vivemos”, corrobora Eurenice. Com animais de criação também prejudicados pelos efeitos das turbinas, o estratagema empresarial fica ainda mais facilitado. No entanto, como atesta José Sobrinho, a população, no geral, segue determinada a resistir, inclusive ao discurso pusilânime das empresas.

“Quem aceitou o acordo está sofrendo, porque a reforma feita pelas empresas é um forro acústico que só resolve a questão do ruído um pouquinho dentro de casa. Quem não aceitou, foi chamado de invejoso, de ganancioso, a própria empresa se encarregou de colocar as pessoas na comunidade umas contra as outras. Nascemos e nos criamos no campo, a gente sai para o terreiro e o curral para cuidar dos animais às quatro horas da manhã e muitas vezes às oito horas da noite ainda estamos na luta. E o ruído ali, zunindo 24 horas por dia…”, relatou ele.

A sociedade passa a tomar conhecimento de um novo tipo de conflito social e ambiental. Pela primeira vez, um parque eólico foi paralisado após protestos. De outro lado, como evidencia o texto do despacho do desembargador, o Estado ainda age quase como advogado do interesse privado. Os conflitos em torno das eólicas certamente se intensificarão e os debates a respeito da sustentabilidade real dos empreendimentos de energia renováveis apenas começaram.


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