Envelhecimento: quando o cuidador também é idoso
Pesquisa ouviu pessoas com mais de 60 anos que precisam cuidar de familiares mais velhos. Quais seus medos e frustrações? Por que coube a elas essa função? Como políticas públicas poderiam auxiliar nesse trabalho invisível? Plano “Brasil que Cuida” conseguirá escutá-los?
Publicado 28/05/2025 às 08:07 - Atualizado 28/05/2025 às 08:09

A população de idosos no Brasil cresce em ritmo acelerado: quase dobrou entre 2010 e 2022, segundo o Censo. Estima-se que pessoas com mais de 60 anos serão a maior fatia populacional no país já em 2046. Essa situação precisa ser encarada por diversos ângulos – previdência, acesso a medicamentos, saúde mental –, mas há um pouco explorado: brasileiros idosos que, por sua vez, precisam cuidar de outros idosos, em geral seus cônjuges, mas também pais e irmãos.
Um estudo qualitativo da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp de Botucatu) buscou entender quem são essas pessoas e como se sentem com o trabalho de cuidado que lhes coube assumir. Os pesquisadores registraram suas descobertas no artigo “Significados atribuídos ao cuidar de uma pessoa idosa na família”, publicado na última edição da revista Ciência & Saúde Coletiva, ligada à Abrasco.
Os pesquisadores entrevistaram pessoas com mais de 60 anos no Centro de Saúde Escola (CSE) e no Centro de Convivência dos Idosos (CCI) de uma cidade de médio porte em São Paulo. Todos faziam o cuidado não-remunerado de um membro de sua família. Os entrevistados tinham entre 60 e 80 anos e eram, em sua maioria, mulheres – como se observa de maneira geral no trabalho reprodutivo. As pessoas cuidadas tinham entre 66 e 96 anos e a demência e o AVC eram os principais fatores a torná-las dependentes.
Essas cuidadoras foram questionadas a respeito de como enxergam sua função na vida dos mais velhos, o que pensam sobre si mesmas nesse processo e como isso alterou suas vidas. Foram avaliados aspectos da qualidade de vida da cuidadora, sua subjetividade, seus sentimentos, emoções e autoestima. Há alguns sintomas em comum: embora sentissem carinho e gratidão por desempenhar aquele papel, aquelas pessoas muitas vezes mostravam-se “autoexigentes, frustradas, culpadas, com raiva e insatisfeitas”.
Há relatos de idosos que não se sentiam preparados para assumir os cuidados ou que não tinham o conhecimento necessário, de aumento nas dores do corpo e nos problemas de saúde, falta de auxílio de outros familiares e até aqueles que cuidavam de outros dois senhores ao mesmo tempo. Existem também aspectos positivos: cuidadoras que sentem satisfação, retribuição, companhia – o que demonstra como é complexa a questão de um trabalho que é feito também por amor e familiaridade. A religiosidade foi observada como fator importante para que a busca de conforto em aceitar esse papel.
Sobrecarga e perda do tempo livre
Os trechos de relatos registrados no artigo ajudam a compreender como a pessoa é impactada quando recebe a função – que, na maioria das vezes, não escolheram. Em um dos mais marcantes, a cuidadora afirma: “Cuidar da minha mãe, cuidar de uma pessoa com Alzheimer, muda muito a vida da gente […], você não consegue ter uma vida normal, tem que ter uma dedicação maior para ela do que para os outros da casa, […] e eu ainda tô tentando manter algumas coisas para que eu também não adoeça”.
De forma ampla, a vida das pessoas que cuidam parece sofrer uma mudança bastante importante, ao passarem a tomar conta de outro idoso. E isso aparece, nas entrevistas, muitas vezes como um fardo, que toma boa parte da vida das cuidadoras, como mostra o trecho acima.
“Pode-se dizer que o processo que transforma um cônjuge ou um filho adulto em cuidador é doloroso, a começar por razões práticas: o cuidador passa a usar o tempo que dedicaria nos projetos e investimentos pessoais para cuidar do idoso”, descrevem os pesquisadores. Disso, decorrem sentimentos de tristeza, desânimo, estresse, pessimismo e oscilação da paciência.
O artigo comenta sobre a “dupla vulnerabilidade” em que essas cuidadoras se encontram. Com o próprio envelhecimento, elas precisam dar conta de problemas de sua saúde além da daqueles sob seus cuidados. Observa-se um risco de aumento de dores, insônia, preocupações e até transtornos psíquicos – as mulheres que precisam cuidar de seus maridos dependentes por mais de 40 horas semanais têm mais chance de ter depressão e fazem uma má autoavaliação de sua própria saúde.
Em geral, foi possível observar nas entrevistas um fator patriarcal culturalmente arraigado: a impressão na família de que as mulheres são mais afeitas ao cuidado e, por isso, ele recai sobre seus ombros de forma desproporcional. A sobrecarga é algo notado em muitos dos relatos, e afeta a qualidade de vida dessas mulheres.
O artigo descreve, ainda, escassez de informações e estrutura das entrevistadas: “Há relatos da frequente falta de orientação aos cuidadores familiares, que precisariam de uma rede de apoio e de proteção, bem como de tempo para si e de se enxergarem no mundo”. Falta suporte e serviços de auxílio aos idosos que cuidam.
Plano Nacional de Cuidados trará respostas?
Segundo o IBGE, a função de cuidado vem ganhando mais importância: o número de familiares que cuidam de pessoas de 60 anos ou mais saltou de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em 2019. Esse é, em larga escala, um trabalho não remunerado, executado por pessoas da família em 78,8% dos casos. E há ainda 10,9% de idosos com limitação funcional que não recebem nenhum apoio. Hoje, o país tem uma população de mais de 32 milhões de pessoas na terceira idade.
Corrigindo uma falha histórica no Brasil – estávamos atrás inclusive de outros países da América Latina –, o governo Lula se empenhou em construir a Política Nacional de Cuidados, construída em um esforço interministerial e sancionada em dezembro de 2024. Outra Saúde vem acompanhando o tema nos últimos dois anos, em uma série de matérias e entrevistas (1, 2, 3, 4). Mas a Política representa, por enquanto, apenas de um marco normativo: a delineação de ações concretas foi delegada a um futuro Plano Nacional de Cuidados.
O economista Jorge Félix, autor do livro Economia da Longevidade e estudioso da economia dos cuidados, reforçou a importância do tema em entrevista a este boletim: “O país passa por uma transição epidemiológica, o que trará um aumento das doenças crônicas, que em grande parte não serão hospitalizáveis, pois os pacientes têm de viver em casa, seja com Alzheimer, com Parkinson, com outros tipos de demência, sequelas de AVC. Todas essas condições que aumentam na população se refletirão em mais necessidades de cuidado domiciliar”.
Segundo uma matéria de pouco mais de uma semana atrás do site Metrópoles, o governo apressa-se em lançar esse plano, que será nomeado Brasil que Cuida. A iniciativa já estaria pronta e “na mesa de Lula”. Segundo informações iniciais divulgadas na Agência Brasil, terá cinco eixos:
- Garantia de direitos e promoção de políticas para quem necessita de cuidados e para quem cuida de forma não remunerada;
- Promoção da compatibilização entre o trabalho remunerado, a educação e as necessidades familiares de cuidados;
- Promoção do trabalho decente para trabalhadoras domésticas e do cuidado remunerado;
- Políticas para reconhecimento e valorização do trabalho de cuidado e das diferentes formas culturais de sua expressão, bem como para transformação cultural rumo a uma divisão social, racial e de gênero mais justa dos cuidados;
- Governança e gestão do plano.
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