Em dois hospitais, marcas da precarização do SUS em SP

Hospital Municipal da Bela Vista fechou após apenas quatro anos de funcionamento. Já Hospital Japonês Santa Cruz, ligado ao estado, demitiu 15% de seus trabalhadores. Ambos geridos por OSs. Vale lembrar: orçamentos municipal e estadual batem recordes…

Créditos: Portal Nippon Já
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Estado mais rico da federação, São Paulo lida com recentes más notícias no sistema de saúde de sua capital: o fechamento do Hospital Municipal da Bela Vista, no centro, após apenas 4 anos de operação, e as demissões de cerca de 200 funcionários do Hospital Japonês Santa Cruz, na Vila Mariana, zona sul. O estabelecimento da região central foi interditado pela vigilância sanitária e o Cremesp reiteradas vezes até a prefeitura desistir de mantê-lo aberto, em outubro. Já o hospital administrado pela Sociedade Brasileira e Japonesa de Beneficência Santa Cruz (SBJBSC) dispensou cerca de 15% de sua força de trabalho no início de fevereiro, sob alegação de insuficiência financeira.

No primeiro caso, o fechamento do hospital administrado pela Associação Filantrópica Nova Esperança (AFNE), Organização Social ligada ao Pastor Everaldo, gerou cerca de 450 demissões. No dia 21, uma audiência pública de conciliação deve ocorrer no Ministério Público do Trabalho.

“Era o único hospital do centro que conseguia absorver, entre aspas, as pessoas em vulnerabilidade social. Principalmente os pacientes de tuberculose, cujo tratamento é longo; começam, mas abandonam e criam uma resistência. O hospital tinha um bom índice de cura, acompanhamento e adesão ao tratamento desses pacientes. Fora outros serviços, como exames de imagem e de diagnóstico”, contou Ana Firmino, representante do Sindicato das Enfermeiras do Estado de São Paulo.  

Ao Outra Saúde, Firmino contou que a prefeitura sequer deu as caras nas duas primeiras tentativas de encontro entre as partes. Já a AFNE, alega incapacidade de absorção de toda a força de trabalho demitida em outros equipamentos sob sua gestão. Ciente das frequentes interdições por insalubridade do prédio do Hospital da Bela Vista, a prefeitura já cogitava transferir seus serviços para o Hospital da Santa Cecília, que encerrou suas atividades em 2022 após o fim dos hospitais de campanha criados no combate à covid-19.

“O Hospital da Bela Vista era um prédio alugado, dizem que pertence a um médico e vem de herança, tem algumas pendências jurídicas, não sabemos. No final das contas, não tem previsão para esse novo hospital – que seria o da Santa Cecília, antes de virar Prevent Senior”, afirma Firmino, lembrando que os hospitais centrais são fundamentais para a atenção especializada da população em situação de rua da região.

Por tabela, esses fatos revelam uma estranha transação entre prefeitura e setor privado. Isso porque a Secretaria de Saúde acaba de sair de prédio na Praça da República e mudar-se para a Liberdade, em imóvel pertencente à Uninove. O novo local foi usado como hospital de campanha na covid-19 e Ana Firmino afirma que se trata de uma espécie de permuta para abater dívidas da instituição privada com o município.

Demissões em massa mesmo em orçamentos recordes

Neste ano, tanto município como o estado de São Paulo anunciaram os “maiores orçamentos da história”. Ainda que no caso da prefeitura de Ricardo Nunes o aumento de 1,8% dos investimentos públicos não cubra a inflação do período, Jaime Torrez, que acompanhas as demissões no Hospital Japonês em nome do Sindicato dos Médicos, pensa que o problema não é apenas o propalado subfinanciamento do SUS.

“Com a correção da Tabela SUS pelo governo estadual, muitas entidades começaram a observar como se apropriar melhor do dinheiro público através do direcionamento de procedimentos. Por exemplo, a Santa Casa de São Paulo experimentou um aumento das receitas pela correção da tabela SUS. Mas usou esse dinheiro para enxugar a folha, demitir funcionários experientes e focar em procedimentos da Tabela SUS que pagam mais”, explica ele.

De outro lado, Edson Rogatti, diretor-presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo (Fehosp), afirma que o mero reajuste da Tabela SUS não é suficiente. “Trouxe alívio, mas grande parte das instituições têm dívidas passivas históricas de mais de 15 anos de defasagem, com altos juros. Sofremos ainda com glosas e pressão das operadoras, a defasagem do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual e o aumento significativo dos insumos”, disse à Folha. Quando eleito, o governador Tarcísio Gomes de Freitas acenou com repasses às filantrópicas como socorro à crise estrutural, mas pouco parece ter mudado.

Torrez, que é anestesista e participou dos protestos de profissionais da saúde por readmissão, denuncia a gestão do hospital, que atende tanto o SUS como seguros privados, por não anunciar seus planos previamente aos trabalhadores e refletir a adoção de uma lógica administrativa corporativa, mesmo em equipamentos que se dizem filantrópicos.

Segundo Torrez, a Santa Casa fechou 164 ambulatórios e seus 30 mil atendimentos mensais foram reduzidos a 16 mil. Entre outras coisas, porque trocou o atendimento no SUS por convênios privados. Para ele, suas gestões emulam o sentido colocado pelas Organizações Sociais, entidades privadas supostamente sem fins lucrativos, que operam a gestão de unidades básicas, ambulatórios e hospitais em São Paulo.

“As OSs operam pela ótica do lucro, corporativa, contratam empresas de ‘modernização da gestão’. Nós acreditamos que isso acontece no Hospital Santa Cruz e a demissão em massa foi uma orientação de uma assessoria administrativa”, criticou Torrez, que também citou o convênio do Instituto do Coração com a Fundação Zerbini na Faculdade de Medicina da USP. “Na época da pandemia, por exemplo, muitas instituições admitiram mais pacientes particulares.”

Além da precarização do atendimento à população e dos próprios empregos, tanto Jaime Torrez como Ana Firmino destacam o desperdício de recursos públicos causado pelo modelo de gestão, uma vez que no caso da Bela Vista é a prefeitura que deve assumir os custos das demissões, dada a incapacidade financeira da AFNE. Enquanto isso, pairam dúvidas a respeito do que as OSs fazem com os repasses do Estado em sua totalidade.

“Há várias massas falidas de Organizações Sociais que somem, desaparecem.  Acreditamos que 50% das verbas repassadas para as OS são ‘verbas extraordinárias’, além daquilo que já está estabelecido. É óbvio que existe dinheiro acumulado”, atacou Torrez. Assim, fica a dúvida a respeito da opção por leitos provisórios durante a pandemia enquanto equipamentos de referência como o Hospital Emilio Ribas esperam há 10 anos pelo cumprimento de promessas de expansão em sua capacidade de atendimento.

Os dois sindicalistas resumem para quem fica a conta do prejuízo. “A população experimenta má assistência e desassistência. E o trabalhador da saúde recebe calote, demissão, precarização. Passa por escalas de trabalho abusivas, banco de horas, tudo sem poder negociar”, disse Jaime. “Quem perde é a população, principalmente a mais carente, os pacientes de vulnerabilidade social, pessoal que está na rua, na Cracolândia, o pessoal do Projeto Esperança, do Projeto Redenção. Novamente, o município toma uma atitude que prejudica os dois lados”, completou Ana Firmino.

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