Efavirenz: que lição tirar de uma quebra de patente?

Em 2007, o Brasil garantiu um importante remédio para HIV/aids com esta medida. Ao contrário do que ameaçava a Big Pharma, não houve desabastecimento nem prejuízo à inovação – e sim economia, acesso e soberania. Por que não repetir essa história?

Créditos: Arquivo/Fiocruz
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Por Ana Beatriz Tavares, Erly Guedes e Susana van der Ploeg, para a coluna Saúde não é mercadoria

As sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos ao Brasil durante o governo Donald Trump abriram um novo capítulo no debate sobre saúde e soberania. A resposta brasileira pode vir de um instrumento previsto em lei: a suspensão de patentes de medicamentos e outras tecnologias estratégicas. Essa possibilidade, garantida pela Lei da Reciprocidade Econômica e pela Lei 12.270/2010, permite suspender temporariamente direitos de propriedade intelectual como contramedida a práticas comerciais injustas.

A ofensiva, porém, não se restringe ao uso de sanções comerciais por razões políticas. A recente decisão norte-americana de suspender os vistos de autoridades do Ministério da Saúde — entre elas Mozart Júlio Tabosa Sales, secretário de Atenção Especializada à Saúde, e Alberto Kleiman, coordenador brasileiro da COP-30 e ex-dirigente da OPAS — revela como a saúde pode ser usada como arma em disputas geopolíticas. Trata-se de um ataque que escancara a necessidade de o Brasil adotar medidas firmes de defesa da soberania e do SUS.

Na prática, a suspensão de patentes possibilita ao país poder usar tecnologias que hoje estão sob monopólio sem pedir autorização ou pagar royalties a empresas estrangeiras. Trata-se de uma medida legítima, que reforça a capacidade do Brasil de proteger sua população diante de pressões externas.

Leia todos os textos da coluna Saúde não é mercadoria, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), em Outra Saúde

O que significa quebrar uma patente?

Quebra de patente é o termo popular usado para se referir ao licenciamento compulsório, ou no caso, a suspensão de patente, em ambos os casos, a ideia central é a quebra do monopólio temporário concedido pela patente, permitindo que terceiros produzam o medicamento ou tecnologia. Ao contrário do que muitas vezes se argumenta, o Brasil não precisa da autorização dos EUA ou das grandes farmacêuticas para adotar medidas como a suspensão de patentes ou o licenciamento compulsório. Ambas são ferramentas legais, previstas no Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio (OMC) e na legislação nacional.

No caso do licenciamento compulsório, a patente permanece válida e o seu titular recebe os royalties advindos da produção e comercialização por terceiros. Já na suspensão das patentes, não há pagamento de compensação, o que amplia a margem para reduzir preços e garantir acesso rápido. A decisão depende de avaliação estratégica: identificar quais tecnologias são prioritárias para o SUS e mapear produtores nacionais ou internacionais capazes de oferecer alternativas.

Falar em “quebra de patentes” parece radical, mas não é. A licença compulsória é um mecanismo legítimo, reconhecido no direito internacional e na legislação brasileira, que já salvou vidas e protegeu o Sistema Único de Saúde. Resgatar essa história e trazer ao debate é urgente. A saúde pública não pode se subordinar a grandes farmacêuticas, nem a pressões externas dos Estados Unidos.

O precedente de 2007

Em 2007, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto de licenciamento compulsório do efavirenz, medicamento essencial no tratamento do HIV, então produzido pela farmacêutica norte-americana Merck Sharp & Dohme.

Na época, o governo brasileiro pagava US$ 1,59 por comprimido. Com a quebra da patente, passou a adquirir o mesmo medicamento de um laboratório indiano por US$ 0,44 — uma redução de cerca de 72% no preço. O Ministério da Saúde estimava que 75 mil pacientes utilizariam o efavirenz no Brasil naquele ano, e a economia gerada chegaria a US$ 30 milhões, reinvestidos no programa de DST/AIDS.

A decisão não gerou desabastecimento, tampouco comprometeu a inovação. Pelo contrário: fortaleceu o SUS e reafirmou que o país pode defender o direito à saúde mesmo diante da pressão das grandes farmacêuticas. À época, Lula foi direto: “Entre o nosso comércio e a nossa saúde, vamos cuidar da nossa saúde.

Esse precedente desmente todos os argumentos das associações e escritórios que defendem os interesses monopolísticos da Big Pharma no Brasil contra a quebra de patentes. É importante esclarecer que os maiores centros de pesquisas e desenvolvimento das corporações farmacêuticas norte-americanas não estão localizados no Brasil, também não há investimento produtivo local, o que há é extração de valor – o SUS é um grande e vantajoso mercado.

A licença compulsória do efavirenz foi resultado de uma longa trajetória de luta e organização social. As comunidades e redes de pessoas vivendo com HIV/AIDS, o Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI) e a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) construíram espaços de reflexão e expressão que deram densidade política à defesa do acesso a medicamentos, inclusive o caso em destaque é marcado pelo “Movimento pelo acesso a medicamentos” em resposta ao preço exorbitante do medicamento estipulado pela Merck. Em 2007, essa mobilização foi decisiva para que o governo adotasse a medida, desafiando o poder das multinacionais farmacêuticas. 

Não à toa, dez anos depois, esses atores celebraram a conquista como um marco de soberania e de direitos humanos: em debates nacionais e internacionais, reafirmaram que a licença compulsória não foi apenas um ato administrativo, mas fruto da persistência da sociedade civil em denunciar abusos, disputar narrativas e propor caminhos. Foi essa articulação que transformou um tema aparentemente técnico de propriedade intelectual em uma bandeira política e social, capaz de garantir a vida de milhares de pessoas.

Não é apenas o Brasil que recorre a medidas “não voluntárias” de flexibilização de patentes. Os próprios Estados Unidos são, historicamente, o país que mais utiliza esse tipo de mecanismo, seja na área farmacêutica ou em outras tecnologias, sempre sob o argumento da defesa nacional. Durante a pandemia de COVID-19, essas medidas foram amplamente empregadas, reforçando que se trata de um recurso legítimo e necessário em momentos críticos.

Produção nacional e prazos

Uma das principais preocupações quando se fala em quebra de patentes é o tempo de resposta. Se já existir produção nacional preparada, a oferta de genéricos pode começar em poucos meses. Para medicamentos mais complexos, como os biológicos, o prazo pode variar a depender da capacidade produtiva instalada e de aprovações regulatórias. Entretanto, para alguns medicamentos, o país pode recorrer à importação de versões genéricas disponíveis no exterior, evitando desabastecimento.

Este é o caso do dolutegravir, usado no tratamento do HIV/AIDS, que já contou com produção nacional de genéricos via PDP entre a Blanver e o Lafepe. Atualmente, cerca de 700 mil pessoas no Brasil utilizam o dolutegravir cotidianamente, através do SUS, este é o principal esquema antirretroviral no Brasil. O problema central é o preço: enquanto o SUS paga em torno de R$ 125,40 por frasco com 30 comprimidos (cerca de R$ 4,18 por comprimido em 2024) segundo dados obtidos através da Lei de acesso à Informação, o Fundo Estratégico da OPAS oferta o mesmo medicamento a US$ 0,89 – 1,21, por 30 comprimidos, na cotação atual R$ 5,30 ~R$ 4,71-6,41 por frasco — ou seja, o valor pago pelo Brasil por um único comprimido equivale a quase o custo de um mês de tratamento via OPAS. Essa diferença significou, apenas em 2024, um gasto adicional estimado em mais de R$ 800 milhões para os cofres públicos, quando foram compradas mais 211 milhões de unidades do medicamento. 

Esse sobrepreço se explica pela patente PI0610030-9, vigente até abril de 2026, que mantém o monopólio da ViiV/GSK no país. Apesar do contrato de  Aliança Estratégica para transferência de tecnologia firmado entre Farmanguinhos e ViiV em 2020, com vigência até dezembro de 2029. Até hoje não houve a produção de um único comprimido no país. A Farmanguinhos/Fiocruz detém apenas o registro de importação, enquanto todo o processo produtivo segue sendo realizado no exterior. Além disso, não há qualquer perspectiva de produção nacional do insumo farmacêutico ativo (IFA), o que mantém a dependência direta da ViiV/GSK. Na prática, trata-se de uma extensão do monopólio garantida por um acordo secreto, antieconômico e abusivo 

Outro caso é o lenacapavir, medicamento injetável semestral para prevenção do HIV. Apesar da realização de pesquisas clínicas no Brasil, o país foi excluído do licenciamento voluntário da Gilead, e o acesso a versões genéricas só ocorrerá após 2037 — uma década depois da previsão internacional, em 2027. Enquanto isso, o custo nos EUA ultrapassa 27 mil dólares por pessoa ao ano, embora estudos indiquem que poderia ser produzido por cerca de 30 dólares. A diferença evidencia como os monopólios farmacêuticos impactam diretamente o acesso das pessoas aos medicamentos.

Saúde, soberania e democracia

As recentes tarifas impostas pelos EUA recolocam na pauta a relação entre comércio internacional, saúde e soberania. A defesa do SUS passa por enfrentar práticas abusivas que restringem o acesso a medicamentos e sobrecarregam o orçamento público. Suspender patentes e emitir licenças compulsórias não são medidas extremas, mas ferramentas previstas em lei para proteger a população.

A experiência de 2007 mostra que o Brasil pode agir sem temer ameaças. Mais do que nunca, é hora de colocar a saúde da população acima dos interesses de mercado. Afinal, como já afirmou o presidente Lula à época da licença compulsória do efavirenz: “Hoje é o efavirenz, mas amanhã pode ser qualquer outro comprimido, ou seja, se não tiver com os preços que são justos, não apenas para nós, mas para todo ser humano no Planeta que está infectado, nós temos que tomar essa decisão. Afinal de contas, entre o nosso comércio e a nossa saúde, vamos cuidar da nossa saúde. Como tenho uma tese em que eu acho que toda descoberta de interesse da humanidade deveria ser fixada como patrimônio da humanidade, o inventor, o criador, poderia ter os seus benefícios, ganhar o seu dinheiro, mas isso deveria ser da humanidade. Não é possível alguém ficar rico com a desgraça dos outros.”

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