É possível uma guinada na ciência brasileira?

Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação é realizada, após 14 anos de hiato. Evento é marcado por anúncios de investimentos e debates sobre colonialismo, soberania e ambiente. Pesquisadora analisa se avanços são possíveis na área

Créditos: Agência Estadual de Notícias do Paraná
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Elen Nas em entrevista a Gabriel Brito

Terminou na última semana a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, evento oficial do Estado brasileiro que reúne pesquisadores, cientistas e ativistas e servirá como referência de elaboração política para o setor nos próximos anos. O evento foi realizado após um longo hiato de 14 anos, o que por si só é revelador de como o campo científico ainda é coadjuvante no projeto nacional.

No entanto, o lema “A ciência voltou” é um dos principais motes levantados pelo governo Lula após sua eleição e foi largamente utilizado como propaganda diferenciadora dos anos anteriores. Não parece exagero, inclusive, considerar que o caráter anticientífico e até sabotador do conhecimento do governo Bolsonaro foram aspectos fundamentais de sua derrota eleitoral.

De todo modo, resta saber até que ponto “a ciência voltou” e o Brasil investirá em pesquisa e inovação a fim de calibrar um padrão de desenvolvimento de acordo com os desafios do século 21. “O painel que mais me chamou atenção foi o de ‘Tecnologias Sociais e Economia Solidária’ onde se pensou a inovação não apenas dentro da perspectiva da indústria, para gerar lucros concentrados, mas como saber coletivo, distribuído, capaz de impactar positivamente as vidas e facilitar soluções de sustentabilidade, em favor do meio ambiente e das populações mais impactadas pela desigualdade social e pelos efeitos do colonialismo euromoderno”, analisou Elen Nas, doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva e pesquisadora de Inteligência Artificial.

Ao Outra Saúde, Elen faz uma análise positiva da conferência e da própria orientação do ministério comandado por Luciana Santos, que aproveitou a ocasião para anunciar o ambicioso Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que visa gerar até R$ 23 bilhões em investimentos nos próximos anos, tanto públicos como privados.

Em sua visão, tal projeto coloca possibilidades alentadoras, mas também se trata de um campo com disputas estratégicas, num contexto onde a IA ainda está orientada ao modo capitalista de exploração da natureza.

“Cabe-nos examinar como esse processo será possível na prática, já que ter o Brasil entre as maiores nações do mundo em termos de infraestrutura não parece factível. A começar, menciono a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), que vem como uma vertente importante para garantir nossa soberania, mas está estabelecendo contratos com a Google e a Microsoft para os serviços de nuvem”, alertou Elen, autora dos livros Arte Eletrônica: Elo Perdido e Bioethics of Non-Presence: Body, Philosophy and Machines.

Como enfatiza na entrevista, investimentos tecnológicos não são necessariamente caros e complexos, de maneira que cabe à sociedade brasileira direcionar tais esforços no rumo da sustentabilidade e do próprio compartilhamento social de tais conhecimentos. Isto é, não basta usar a ciência em prol da propalada ideia de soberania nacional, mas deve-se criar uma sociedade que seja soberana também em relação a uma economia cada vez mais informacional e digital.

“É preciso pensar não em ter soberania sobre a IA, mas como ter soberania apesar da própria IA, pois é uma invenção que faz parte de um percurso de pensamento social presente no Norte Global, mais especificamente no Vale do Silício. Ao meu ver devemos pensar em como compartilhar infraestruturas com países vizinhos, pensar em como adaptar as tecnologias utilizando menos recursos, e nas interações com a IA e suas infraestruturas em escala global, estabelecer limites regulatórios de modo que as empresas internacionais não sejam donas de tudo sem precisar prestar contas”, sintetizou a pesquisadora, que faz parte da Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), um movimento social do campo da ciência e inovação.

Sob o lema “Para um Brasil justo, sustentável e desenvolvido”, a conferência realizou mais de 100 mesas, nas quais neoindustrialização e ecologia foram alguns dos principais temas. No meio disso, a Saúde também teve seu espaço. Presente ao evento, a ministra Nísia Trindade anunciou alguns investimentos do ministério em pesquisas relacionadas ao campo da saúde e sua economia. Além disso, o governo acabou de lançar o programa Meu SUS Digital, que visa finalmente concretizar um cadastro único de todos os brasileiros no sistema de saúde, além de avançar na telemedicina.  

“No caso dos planos para a Saúde, se os recursos técnicos são acoplados ao SUS eles poderão ficar disponíveis para toda população, e não apenas para os grupos que podem pagar. Entretanto, é preciso averiguar se todos os sistemas que se propõe implementar são de interesse da população, se eles serão auditados antes de disponibilizados, e se são de código aberto, de modo que possam ser readaptados ao perfil da população. Em poucos casos as aplicações podem ser adaptadas universalmente. Isso precisa ser bem avaliado”, analisou Elen Nas.

Confira a seguir a íntegra da entrevista ao Outra Saúde.

Terminou a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada após 14 anos e sob o lema “Para um Brasil justo, sustentável e desenvolvido”. Como avalia o evento, diante de suas propostas, motes e perfil de debates realizados?

Em relação à 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, o painel que mais me chamou atenção foi o de “Tecnologias Sociais e Economia Solidária” onde se pensou a inovação não apenas dentro da perspectiva da indústria, para gerar lucros concentrados, mas como saber coletivo, distribuído, capaz de impactar positivamente as vidas e facilitar soluções de sustentabilidade, em favor do meio ambiente e das populações mais impactadas pela desigualdade social e pelos efeitos do colonialismo euromoderno.

O evento também foi palco de anúncios de investimentos públicos em políticas de pesquisa e desenvolvimento científico, com destaque para o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Como avalia tais investimentos no campo científico? Acredita que o governo federal esteja fazendo jus à suas afirmações de que “a ciência voltou”, enfatizadas para se diferenciar do período Bolsonaro?

Acredito que o plano (PBIA) já se diferencia do governo anterior por partir de um processo participativo e inclusivo, envolvendo diversos setores da sociedade. Nesse aspecto podemos pensar sim que a ciência voltada aos interesses da sociedade, para o bem comum e com responsabilidade sobre seus impactos, sim, está de volta.

O que pensa do PBIA? O que pensa dos objetivos e delineamentos expressados no projeto, que prevê investimentos de até R$ 23 bilhões?

O PBIA se apresenta como um plano aberto a contribuições e ao debate, isso é um grande passo. Ele me parece pensar em cenários ideais, onde a regulamentação e implementação da IA caminham juntas. Cabe-nos examinar como esse processo será possível na prática, já que ter o Brasil entre as maiores nações do mundo em termos de infraestrutura não parece factível. A começar, menciona a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), que vem como uma vertente importante para garantir nossa soberania, mas está estabelecendo contratos com a Google e a Microsoft para os serviços de nuvem.

Portanto, possivelmente é o caso de pensarmos como estabeleceremos nossa soberania apesar de algumas dependências de infraestruturas que estão fora do território brasileiro. Por exemplo, qual a relação com a Google, a Microsoft e a Amazon? Se é uma parceria ou contratação de serviços, é preciso estabelecer regras sobre quem detém os direitos sobre os dados, quem faz a administração desses dados, e que partes do sistema devem ficar abertos para que os desenvolvedores possam adaptar o sistema para os interesses e realidade no Brasil.

Em relação aos investimentos, estariam distribuídos ao longo de 4 anos e são provenientes de diversas fontes, como parte do orçamento de pastas específicas do setor público, assim como também do setor privado.

No âmbito relativo à saúde, também tivemos anúncios de investimentos em pesquisa e produção do setor. Além disso, o ministério anunciou o Meu SUS Digital, que visa criar um cadastro único de todos os usuários do sistema de forma associada a um salto tecnológico na produção de serviços de saúde. De que forma você avalia essa combinação de acontecimentos?

No caso dos planos para a Saúde, se os recursos técnicos são acoplados ao SUS eles poderão ficar disponíveis para toda população, e não apenas para os grupos que podem pagar. Entretanto, é preciso averiguar se todos os sistemas que se propõe implementar são de interesse da população, se eles serão auditados antes de disponibilizados, e se são de código aberto, de modo que possam ser readaptados ao perfil da população. Em poucos casos as aplicações podem ser adaptadas universalmente. Isso precisa ser bem avaliado.

Outro aspecto bastante presente na conferência foi a transição ecológica e o atual estágio de caos climático. Como observou este aspecto? Sinaliza uma atuação governamental à altura dos desafios que estão colocados para o Brasil e o mundo?

Tecnologias sociais e ambientais não necessariamente precisam fazer uso de tecnologia de ponta. Podem ser soluções criativas com base em inovação científica voltada para a sustentabilidade. Um dos problemas da IA, do aprendizado de máquina e todas as tecnologias emergentes é estarem baseadas no velho modelo de exploração colonial, um modelo de desenvolvimento que quer continuar extraindo minérios da terra. Este e outros fatores tornam impossível que todos no mundo queiram ter infraestruturas próprias e capazes de competir no mesmo patamar que os grandes “jogadores”.

Por isso é preciso pensar não em ter soberania sobre a IA, mas como ter soberania apesar da própria IA, pois é uma invenção que faz parte de um percurso de pensamento social presente no Norte Global, mais especificamente no Vale do Silício. Ao meu ver devemos pensar em como compartilhar infraestruturas com países vizinhos, pensar em como adaptar as tecnologias utilizando menos recursos, e nas interações com a IA e suas infraestruturas em escala global, estabelecer limites regulatórios de modo que as empresas internacionais não sejam donas de tudo sem precisar prestar contas.

Como avalia o ministério comandado por Luciana Santos em sua atuação geral? Quais méritos e deficiências você atribuiria a esta pasta?

Pelo que posso perceber o Ministério está buscando envolver cientistas e diversos setores para pensar junto as soluções necessárias. Neste sentido este é um grande valor com capacidade de quebrar paradigmas sobre alguns vícios históricos das instituições públicas brasileiras.

O que gostaria de ver como prioridades no campo científico brasileiro nos próximos anos, a partir dos poderes públicos?

Ampliar a metodologia participativa, de consulta pública, em especial integrar campos interdisciplinares, estimular programas interdisciplinares e mudanças de currículos de modo que cientistas das mais diversas áreas tenham uma vivência de produção de pensamento crítico para melhores entendimentos sobre o que representa pensar a decolonialidade para a ciência. Do mesmo modo, também as humanidades necessitam de maior estímulo a interdisciplinaridades, já que os desafios da IA, sempre foram, desde o começo – há mais de meio século – interdisciplinares.

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