Cracolândia: uma militarização desastrosa

Atuação violenta da GCM de São Paulo impede acesso de usuários a políticas públicas de saúde e assistência social. Nota técnica do CNDH denuncia violações e propõe: abordagem de “moradia primeiro” é chave para superação da vulnerabilidade e garantia de direitos

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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A região conhecida como Cracolândia, cena aberta de uso de drogas no centro de São Paulo, já foi objeto de muitas intervenções equivocadas de diferentes governantes – não por outro motivo, segue existindo, décadas após ter surgido. No entanto, no último período, um novo ator se tornou o protagonista das constantes violações aos direitos das pessoas naquele cenário: a Guarda Civil Metropolitana (GCM), orientada pela Prefeitura da capital paulista a cumprir um papel extremamente violento.

“A gente já fez diversas missões do CNDH naquele território. Dessa vez, nos assustou muito o grau de militarização – especialmente com a construção de um muro, que a Defensoria Pública definiu como um ‘curral humano’, onde a Guarda Civil Metropolitana monta toda uma estrutura em volta para controlar entradas e saídas e abordar as pessoas que estão ali fazendo uso abusivo de substâncias. A abordagem central com essas pessoas deveria ser de saúde, assistência social e acesso a direitos, para a superação da situação de vulnerabilidade em que elas se encontram”, afirmou Léo Pinho, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e consultor do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

Participante de uma missão do CNDH na Cracolândia, ele é um dos autores de uma nota técnica recentemente lançada a partir das conclusões da visita, que apontam que a GCM “viola sistematicamente direitos fundamentais, extrapola suas atribuições constitucionais e obstaculiza iniciativas sociais e culturais” no território. Nesta segunda-feira (5/5), em entrevista a Outra Manhã, o programa matinal de Outras Palavras, ele apresentou em detalhes as denúncias colhidas de graves violações da Política Nacional para a População de Rua e de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

A nota técnica, no entanto, não se resume à análise crítica da atual situação na Cracolândia. Na conversa, Pinho também discorreu sobre as recomendações do documento para uma nova política na região, baseadas em abordagens nacionais e internacionais de êxito – concentradas, antes de tudo, em propostas como o housing first (“moradia primeiro”) e a intersetorialidade entre políticas de saúde pública, assistência social e outras áreas.

As violações da GCM

A missão do CNDH em que se baseou o conteúdo da nota técnica – redigida por Pinho em parceria com Darcy da Silva Costa, liderança do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e também consultor do Conselho – se deu no último mês de março, em parceria com o Conselho Municipal de Políticas de Drogas (COMUDA) da capital paulista. A ela, somou-se o acompanhamento de uma visita da Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, Marta Machado, à Cracolândia em abril. Além da observação do território e da análise de documentos entregues a ambas as missões, Pinho conta que os autores também colheram depoimentos de várias partes envolvidas na região, como grupos que atuam entre os usuários e associações de moradores e comerciantes.

No documento, as violações cometidas pela Guarda Civil Metropolitana são agrupadas em três eixos. O primeiro deles é a militarização e a abordagem repressiva adotadas pela força – como apontam os relatos, que recorrentemente chegam também ao grande público, de grande violência contra pessoas em situação de uso abusivo de drogas ou mesmo profissionais que atuam na região. O “uso desproporcional da força, destruição de pertences pessoais e obstrução do acesso a serviços sociais e de saúde” são alguns dos problemas mais recorrentes associados a essa atuação, que não está em alinhamento com o papel das guardas municipais previsto pela Constituição Federal.

“A GCM não pode ter uma atuação que mimetiza a Polícia Civil ou a Polícia Militar. Operações de dispersão de aglomeração não podem e não devem, inclusive segundo uma decisão recente do STF, ser atribuição dela. O papel central da Guarda deveria ser o de garantir a segurança dos órgãos públicos – do Sistema Único de Saúde, da Assistência Social – para promover políticas públicas no território. E o que nós estamos assistindo é a Guarda Civil Metropolitana dificultando o acesso às políticas públicas”, explica.

O segundo eixo é o da coleta de dados e desrespeito à privacidade, por meio da “implementação do chamado Smart Sampa, que trata todo mundo que entra ou sai daquele território como potencial suspeito”, explica Pinho. O programa da Prefeitura utiliza drones e programas de Inteligência Artificial para promover o monitoramento e a identificação das pessoas na região. A nota técnica argumenta tratar-se de uma grave violação da Lei Geral de Proteção de Dados e da Resolução nº40/2020 do CNDH, que prevêem o “consentimento livre e informado” para a coleta de dados.

Por fim, no que o sociólogo acredita ser o “mais nocivo” dessa fase de militarização, a GCM tem dificultado a atuação de projetos sociais, culturais e de saúde na Cracolândia que promovem redução de danos, acesso à alimentação e inclusão social e produtiva. Chega-se ao ponto de um paradoxo. “Entidades que recebem verba pública para atuar, seja por meio de emendas parlamentares ou editais públicos, têm seu trabalho impedido”, aponta. Na prática, além de violar direitos, ao impedir o êxito de projetos financiados pelo poder público, a Guarda ainda promove o desperdício de recursos da população.

“Essa forma viola a Resolução 40 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, viola todas as diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e viola o pacto federativo. Enfim, viola todas as orientações de cuidado e promoção de direitos a pessoas que fazem uso abusivo de álcool e drogas”, aponta o vice-presidente da Abrasme.

A nível institucional, Pinho também aponta que as ações da GCM de São Paulo também estão violando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 976 (ADPF 976), em que o Supremo Tribunal Federal determinou que as esferas do poder público adotem uma série de providências para atender à população de rua. Na tabela a seguir, os autores da nota técnica compilaram os detalhes das violações:

Determinação LegalIndicador de Cumprimento
5) No âmbito das zeladorias urbanas:5.1) Divulguem previamente o dia, o horário e o local das ações de zeladoria urbana nos seus respectivos sites, nosabrigos, e outros meios em atendimento ao princípio da transparência dos atos da administração pública permitindo assim que a pessoa em situação de rua recolha seus pertences e que haja a limpeza do espaço sem conflitos;Não Cumprido
(Não só não avisam, como impedem ações de apoio e acesso a direitos desenvolvidos pela sociedade civil)
5.2) Prestem informações claras sobre a destinação de bens porventura apreendidos, o local de armazenamento dos itens e o procedimento de recuperação do bem;Não Cumprido (Os usuários e profissionais relataram na missão que não existe nenhum tipo de informação sobre onde vai e ou registro dos pertences recolhidos)
5.3) Promovam a capacitação dos agentes com vistas aotratamento digno da população em situação de rua, informando-os sobre as instâncias de responsabilização penal e administrativa;Cumprido Parcialmente(A Prefeitura não está no Projeto Gente (SENAD/Fiocruz), que tem um conteúdo voltado ao público de população de rua e usuários de álcool e outras drogas. A Prefeitura de São Paulo, no entanto, desenvolve o Estágio Operacional para os Guardas-Civis Metropolitanos um complemento aos treinamentos que os futuros guardas recebem na Academia de Formação em Segurança Urbana (AFSU))
5.4) Garantam a existência de bagageiros para as pessoas em situação de rua guardarem seus pertences;Não Cumprido
5.5) Determinem a participação de agentes de serviço social e saúde em ações de grande porte;Cumprido Parcialmente (as equipes de saúde e assistência social estão presentes no território, no entanto, estão subordinadas a soberania da abordagem da GCM e sua prática militarizada)
5.6) Disponibilizem bebedouros, banheiros públicos e lavanderias sociais de fácil acesso para população em situação de rua;Não Cumprido (No território existe uma iniciativa da sociedade civil que realiza esses serviços – saiba mais) .Denunciaram as ações da Prefeitura em evento na Câmara Municipal de São Paulo “Solidariedade Não é Crime”
5.7) Realizem de inspeção periódica dos centros de acolhimento para garantir, entre outros, sua salubridade e sua segurança;Cumprido Parcialmente (A Prefeitura de São Paulo realiza inspeções através de seus órgãos decontrole e inspeção. Recentemente, “a Covisa apontou sérios problemas de higiene e manutenção na unidade (CAPS AD Redenção)” – saiba mais
6) Realização periódica de mutirões da cidadania para a regularização de documentação, inscrição em cadastros governamentais e inclusão em políticas públicas existentes;Cumprido Parcialmente (A Prefeitura realiza mutirões para promoção de acesso às políticas públicas, mas em periodicidade muito aquém da necessidade. Quem realiza de forma continuada e recebe de forma crescente denúncias de violações de Direitos Humanos é o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública)
7) Criação de um programa de enfrentamento e prevenção à violência que atinge a população em situação de rua;Cumprido Parcialmente (Não existe um programa consistente e permanente de atuação no território voltado ao combate da violência institucional e de instrução dos usuários sobre seus direitos e deveres. No entanto, a Prefeitura tem um programa importante que promove a inclusão social e a formação para a cidadania o POT PopRua (Programa Operação Trabalho), que deveria ser ampliado no território)
8) Formulação de um protocolo intersetorial de atendimento na rede pública de saúde para a população em situação de rua.Não Cumprido
Fonte: Elaborado pelos autores da nota técnica com base na Missão do CNDH, da visita da SENAD/MJSP e das demandas dos coletivos (2025).

Como resultado, “o que eu ouvi de associações de moradores e comerciantes é que essa atuação militarizada tem um efeito de pulverização de mini-Cracolândias em todo o Centro de São Paulo. Não tem um impacto só de violações do usuário ou das organizações, entidades e políticas públicas que atuam ali no que a gente chama de Cracolândia. Essa estratégia tem pulverizado e impactado outros territórios”, ele lamenta.

“A face mais nociva desse processo de militarização daquele território é que ela impede as pessoas de acessar direitos e de buscar a superação daquela situação”, resume o consultor do CNDH.

Como reconstruir uma política para a Cracolândia

Em tom propositivo, a nota técnica do Conselho Nacional de Direitos Humanos também indica uma série de adequações necessárias para o alinhamento da atuação da GCM com as decisões do STF, resoluções do CNDH e também as boas práticas nacionais e internacionais.

Na entrevista, Pinho destacou que não é preciso “reinventar a roda” para realizar uma abordagem que garanta os direitos da população de rua – e que ações do próprio poder municipal paulistano podem ser a semente de uma virada. “Tem uma política pública da Prefeitura de São Paulo que foi muito elogiada [pelas pessoas ouvidas na missão], que é o Programa Operação Trabalho (POT). É um recurso para a pessoa fazer qualificação profissional e atividades produtivas. Todas as entidades falaram da importância do POT para desenvolver projetos terapêuticos singulares de superação da vulnerabilidade e estratégias de redução de danos”, ele lembra.

Além disso, diz Pinho, a própria ADPF do Supremo Tribunal Federal “afirma a necessidade de desenvolver no Brasil programas de Moradia Primeiro, ou housing first, algo que já foi feito em países do Sul Global, em Nova Iorque, em Portugal e em vários outros lugares do mundo”. Em nosso país, experiências iniciais em cidades como Franca e Curitiba recebem apoio dos ministérios das Cidades e dos Direitos Humanos. Aliás, a criação de uma estratégia integrada entre autoridades federais, estaduais e municipais com foco em políticas intersetoriais – isto é, que reúnam ações de saúde, segurança pública, assistência social, moradia, etc. – também devem estar na ordem do dia, aponta o documento recentemente divulgado.

Outro apelo da nota técnica, ele frisa, é que o território precisa de continuidade nas políticas. Pinho conta que na 68ª sessão da CND, a Comissão de Drogas e Entorpecentes da ONU, a delegação brasileira constatou que a estabilidade de médio e longo prazo nas ações – e também nos profissionais que nelas atuam – é essencial para o sucesso. “Quando você tem essa militarização exacerbada, essas barreiras de acesso, esse impedimento de projetos sociais que atuam no território, o que a GCM está operando é a quebra de vínculos, a quebra de laços de confiança no território”.

“Os índices que é preciso buscar são os de superação da situação de rua e superação do uso abusivo de álcool e drogas, não índices de militarização do território. É esse paradigma que nós precisamos voltar a ter para afirmar o real direito à cidade previsto na Constituição. Isso faz bem para os usuários, para os trabalhadores que atuam ali, mas também para os comerciantes e as famílias que moram naquele território, que não aguentam mais essa situação permanente de uma guerra naquela região”, completou o consultor do CNDH.

A seguir, confira as recomendações da nota técnica para a transformação das políticas na Cracolândia.

RecomendaçãoBase LegalIndicadores de Avaliação
Fortalecimento da estrutura para o funcionamento do CIAMP Rua/SP e o COMUDA (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas)Art. 5o da Resolução CNDH no 40/2020; Art. 9o do Decreto no 7.053/20091. Secretaria Executiva em funcionamento;2. Estrutura para Fiscalização pelos Conselheiras (carro, diárias e garantia de segurança institucional);3. Página Eletrônica com todas as missões, atas, notas, recomendações e resoluções do Conselho;4. Presidência e ou Rotatividade na presidência exercida pela sociedade civil;5. Garantia de paridade ou maioria no conselho por parte da sociedade civil.
Implementação obrigatória de câmeras corporais para todos os agentes da GCM que atuam na CracolândiaArt. 62 da Resolução CNDHno 40/2020; Art. 5o, XXXIII da CF/881. Dados progressivos de uso de câmeras corporais em todos os agentes da GCM;2. Transparência de acesso e dados a órgãos de controle e conselhos.
Adoção do modelo “MoradiaPrimeiro” (Housing First), com acesso imediato a moradias dispersas e de Iniciativas de Acesso a DireitosArt. 29 da Resolução CNDHno 40/2020; Art. 6o da CF/881. Adesão do município ao Plano Ruas Visíveis (cumprimento da ADPF População de Rua/STF);2. Implementação do Programa MunicipalMoradia Primeiro; 3. Contratação de entidades com experiências exitosas de Moradia Primeiro;4. Integração do Moradia Primeiro com estratégias de geração de trabalho, renda, economia solidária e emprego.5. Implementação de 1 CAIS – Centros de Acesso à Direitos e Inclusão Social – CAIS na região da LUZ(Cracolândia) integrado aimplementação de CAIS, nas regiões da Sé/Liberdade/SãoJoaquim/ Santa Cecília e Barra Funda;6. Fortalecimento, incentivo e fomento às atividades desenvolvidas pela sociedade civil no território.
Criação de protocolo intersetorial de abordagem, com participação paritária da sociedade civil, da saúde, assistência social e segurança. Com acompanhamento da Comissão de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo e da Promotoria de Saúde do Ministério Público do Estado de São Paulo.Arts. 35 a 37 da Resolução CNDH no 40/20201. Dados progressivos de Redução de conflitos, mortes, violência durante abordagens;2. Implementação de protocolos de registro, acompanhamento e resolutividade de usuários registrados em abordagens pela GCM.

PropostaDispositivo LegalEstratégia de Implementação
Formação permanente em direitos humanos para os agentes da GCMArt. 12 da Resolução CNDH no 40/20201. Implementação do Projeto Gente: no Centro da Política sobre Drogas – SENAD/MJSP;2. Parceria com universidades e organizações de direitos humanos;3. Oferecimento de Cursos de Graduação e Pós Graduação voltado a formação permanente das GCM’s.
Proibição de remoções forçadas sem garantia de moradia adequadaArt. 32 da Resolução CNDH no 40/2020; ADPF 976/20231. Elaboração de normativa municipal específica;2. Desenvolvimento de estratégias de “Moradia Primeiro” no território.
Integração com a rede socioassistencial e de saúde com ênfase na intersetorialidadeArts. 35 a 37 da Resolução CNDH no 40/20201. Produção de Normativa Institucional de Atuação Integrada entre a GCM e o SUS, SUAS e demais políticas públicas;2. Garantia permanente de atuação de entidades e equipes do SUS e SUAS no território;3. Medida administrativa de Vedação de Ações de Impedimento de atuação no território;4. Criar editais de apoio e fomento de atividades voltadas à produção de cuidado, acesso a direitos sociais e econômicos e promoção da dignidade.
Implementação de mecanismos de denúncia acessíveis e independentesArt. 63 da Resolução CNDH no 40/20201. Garantir acesso a informação aos usuários e usuárias da região da Luz e Centro Expandido os canais para denúncias de violação de direitos humanos;2. Garantir acesso aos canais para solicitação de serviços públicos de saúde, assistência social e demais políticas públicas
Fonte: Elaborado pelos autores com base na Missão do CNDH, da visita da SENAD/MJSP
e das demandas dos coletivos (2025).

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