Comunidades Terapêuticas: vanguarda da Contrarreforma Psiquiátrica

Crescem entidades religiosas que perpetuam violência e abusos contra vulneráveis. São versão moderna dos manicômios – agora, privatizados. Falta de recursos para os CAPS contribuiu para se proliferarem. Para combatê-las, retomar a radicalidade de Basaglia

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A cena marcou o 14º Abrascão. No domingo passado (30/11), um membro do Movimento Nacional de Vítimas de Comunidades Terapêuticas (MNVCT) entregou ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha, uma carta que pede a exclusão dessas entidades da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Mas o que são elas?

Vendendo-se como uma alternativa para o tratamento do uso abusivo de álcool e outras drogas, as chamadas “comunidades terapêuticas” se espalharam aos milhares pelos municípios de todo o Brasil. Em 2023, passaram inclusive a contar com guarida da estrutura do Governo Federal, ao ser fundado o Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (Depad), que as abriga no organograma do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), pasta encabeçada por Wellington Dias (PT-PI).

No entanto, publicado neste ano, o relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas mostra que a realidade dessas instituições é muito diferente da propaganda. Nas visitas realizadas pelo Ministério Público de Trabalho, “foram constatadas diversas violações de direitos humanos nesses espaços”, a exemplo de “pessoas contidas pela força ou por meio de medicamentos, ausência de comunicação externa, alojamento em condições precárias em lugares distantes que dificultavam a interação com seus familiares e a sociedade”. São recorrentes os casos de espancamento, tortura e morte.

No mês de outubro, uma exitosa Campanha Nacional contra as Comunidades Terapêuticas chamou atenção para a importância de enfrentar a disseminação dessas entidades por todo o Brasil. “Hoje em dia, as comunidades terapêuticas são o carro-chefe de um projeto de atualização dos manicômios na política de saúde mental”, avalia Pedro Henrique Antunes Costa, professor da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista ao Outra Saúde.

Costa é autor de Franco Basaglia e a crítica das “Comunidades Terapêuticas” no Brasil, livro recém-lançado pela Hucitec Editora como parte da Coleção Comemorativa 100 anos de Franco Basaglia. A este boletim, o professor destacou a importância do psiquiatra marxista italiano, cujas realizações teóricas e práticas inspiraram o fechamento dos manicômios no Brasil, na luta contra “novos manicômios” como as CTs.

O que são as comunidades terapêuticas

Entidades privadas, muitas vezes de cunho religioso, as comunidades terapêuticas prometem “curar” o uso abusivo de álcool e outras drogas através da laborterapia (tratamento do sofrimento psíquico pelo trabalho) e da conversão à fé. Seus “acolhidos”, em geral, não são autorizados a sair de suas dependências, para evitar que sejam “tentados” pelo mundo exterior.

No entanto, indícios do que efetivamente ocorre no interior das instituições estão em dois casos de ampla repercussão neste segundo semestre. 

No mês de agosto, um incêndio levou a seis mortes na Comunidade Terapêutica Liberte-se, em Brasília (DF). A unidade funcionava sem alvará e “os internos passavam a noite trancados nos quartos da clínica”, cujas janelas possuíam “grades de ferro”, segundo o Correio Braziliense. Ainda de acordo com o jornal, “após a repercussão do caso, famílias que tinham parentes na clínica denunciaram maus-tratos, trabalho forçado, castigos físicos e abuso psicológico”.

Em tais casos, os crimes costumam ser associados à falta de alvará das CTs envolvidas. Mas o argumento é frágil. Naquele mesmo mês de agosto, na cidade de Marechal Deodoro (AL), a esteticista Cláudia Pollyanne foi morta em uma comunidade terapêutica com autorização legal para funcionar. Sua morte foi decorrente de “agressões e intoxicação medicamentosa”, diz o laudo do Instituto Médico Legal (IML). Assim como Cláudia foi vítima, apuram-se “denúncias de maus-tratos contra outros internos, como agressões físicas, uso inadequado de medicamentos para sedação e restrição de contato com familiares” na instituição, que foi fechada.

Pela ampla violência que as caracteriza, o professor Pedro Costa opina que as comunidades terapêuticas sintetizam quatro instituições que vê como “fundantes do capitalismo dependente brasileiro de origem colonial”: manicômios, prisões, igrejas e senzalas.

“A analogia com os manicômios e prisões é bem nítida. Além disso, o que elas de fato fazem é operar uma retórica da espiritualidade para assentar e concretizar a violência religiosa. No que se refere às senzalas, ainda que existam mecanismos de ocultação dessa realidade, é muito nítido que a maioria das pessoas depositadas nas comunidades terapêuticas é negra e pobre. Na retórica, o que se apresenta como laborterapia concretamente tem sido trabalho forçado, trabalho não pago, trabalho em condições degradantes e trabalho análogo a escravidão”, critica.

Por tudo isso, a prática das comunidades terapêuticas é considerada amplamente contrária aos princípios da Reforma Psiquiátrica. Este processo, iniciado nas décadas de 1970 e 1980 no Brasil, levou o país a progressivamente fechar seus manicômios e substituí-los por serviços de cuidado em liberdade, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Na visão do pesquisador, as características acima citadas das comunidades terapêuticas as tornam o “carro-chefe da Contrarreforma Psiquiátrica”. Ele desenvolve o conceito: “Essa contrarreforma tem três pilares constitutivos. Como temos o Sistema Único de Saúde (SUS), para que ela seja efetivada, não basta a remanicomialização. Também carece de um processo vertiginoso de privatização e mercantilização das políticas de saúde.”

A transferência de fundos públicos para instituições privadas e manicomiais, em especial as comunidades terapêuticas, chama a atenção do pesquisador. Há mais de uma década, esse processo ocorre em nível municipal e estadual – são muitas as prefeituras e governos que contratam essas entidades para “acolher” pessoas que usam crack, por exemplo. O processo foi gradual. Em 2011, uma portaria as integrou à Rede de Atenção Psicossocial. Outra, em 2016, as autorizou a possuir registro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

No entanto, desde que o Ministério do Desenvolvimento Social criou o Depad, um departamento com a finalidade exclusiva de credenciar e contratar essas entidades, o cenário se tornou ainda mais grave a nível federal. Um edital aberto pela pasta em setembro, ainda em vigor, oferece R$119 milhões do orçamento nacional para as comunidades terapêuticas.

“Ao drenar fatias cada vez maiores dos recursos públicos, as comunidades terapêuticas impedem que os recursos sejam destinados a serviços que são verdadeiramente assistenciais, públicos e substitutivos ao manicômio, como os CAPS-AD e as Unidades de Acolhimento”, critica Costa.

O que não são as comunidades terapêuticas

Em recente audiência pública na Câmara dos Deputados, um servidor do departamento que abriga as comunidades terapêuticas no Ministério do Desenvolvimento Social, Diego Mantovaneli do Monte, alegou não entender por que o movimento antimanicomial critica e luta contra essas entidades. 

Afinal, ele diria, uma liderança histórica da Reforma Psiquiátrica como o psiquiatra e pesquisador da Fiocruz Paulo Amarante já teria abordado a importância histórica das CTs em sua obra Loucos Pela Vida, muito presente na bibliografia de cursos de formação no campo da saúde mental. A afirmação do funcionário do MDS era enganosa. Em carta publicada em Outra Saúde, Amarante esclareceu que a fala do funcionário do MDS “descontextualiza o teor e a situação histórica e política do conteúdo” de seu livro, pedindo também sua retratação pública.  

Na visão de Pedro Costa, incidentes como esse não são inocentes: “Essa é uma confusão proposital que busca ocultar e mistificar o que de fato são as comunidades terapêuticas no Brasil hoje”.

A confusão se baseia no fato de que, em meados do século XX, algumas das primeiras propostas de serviços alternativos aos hospitais psiquiátricos tradicionais também se denominaram “comunidades terapêuticas”. Elas foram idealizadas por nomes como os psiquiatras Maxwell Jones, Ronald D. Laing e David Cooper, de origem sul-africana e britânica.

Contrapondo-se às práticas de aprisionamento e eletrochoques típicas dos manicômios que as antecederam, as comunidades terapêuticas desses pioneiros da “antipsiquiatria” propunham uma terapia baseada em discussões, apresentações artísticas e trabalhos manuais. No entanto, os usuários do serviço ainda eram restritos por algum nível de confinamento dentro da instituição, não estando integrados à comunidade. “Mesmo com esse modelo de CT proposto por Laing e Cooper se mostrando limitado, podemos dizer com muita tranquilidade que as comunidades terapêuticas no Brasil são a sua negação”, ressalta Costa.

O professor da UnB explica que o modelo de comunidade terapêutica que hoje se espalha pelo Brasil tem origem nos Estados Unidos, na década de 1960. Ali, o conceito surgido do outro lado do Oceano Atlântico se misturou a concepções moralistas e fundamentalistas religiosas sobre o uso de drogas, além de estratégias como os “Doze Passos”, surgida na organização Alcoólicos Anônimos e sua proposta baseada na abstinência. Chegando em nosso país, a variante conservadora das CTs se amalgamou com as matizes nacionais de reacionarismo e charlatanismo religioso, além das desigualdades sociais.

“Na sua gênese histórica, a comunidade terapêutica é uma proposta de alternativa ao manicômio tradicional. No caso do Brasil de hoje, elas são uma tentativa de sofisticar e atualizar o manicômio, mas é uma modernização que, dialeticamente, traz o arcaico consigo – não por acaso, uma de suas características centrais é o trabalho escravo disfarçado de laborterapia. O que tem de novo no trabalho escravo no Brasil?”, completa.

Basaglia: forte inspiração para enfrentá-las

A despeito do avanço das comunidades terapêuticas, argumenta Costa, o Brasil pode contar com uma importante inspiração ao formular o caminho para enfrentá-las: a própria experiência de Franco Basaglia.

O psiquiatra italiano chegou à decisão de propor a radical desinstitucionalização do cuidado em saúde mental após tentar implementar os princípios das comunidades terapêuticas – aquelas propostas por Ronald Laing e David Cooper, cuja história foi contada acima, e não as fundamentalistas, é claro – no trabalho do hospital psiquiátrico de Gorizia. A experiência não foi bem sucedida.

“A conclusão a que Basaglia e outros chegaram é que não se pode reformar o irreformável. O manicômio reformado continua sendo um manicômio”, explica o professor da UnB. Os aprendizados desse processo estão sintetizados em A Instituição Negada (1968), obra clássica do médico italiano.

Para ir além das instituições asilares que aprisionam os pacientes, propôs Basaglia, o caminho poderia ser a criação de novos serviços, integrados à comunidade e que se afastassem do “especialismo” – a ideia de que apenas equipamentos que acolhem exclusivamente pacientes psiquiátricos podem ofertar cuidados de saúde mental. É o que faria sua equipe na década seguinte à experiência de Gorizia. Na cidade italiana de Trieste, o grupo fecharia o Hospital Psiquiátrico San Giovanni. Em seu lugar, surgiriam centros comunitários – e uma ala psiquiátrica dentro do hospital geral local. Hoje, onde ficava o antigo manicômio, há o Parque San Giovanni, aberto à população.

Ao fechar seus próprios manicômios, o Brasil também buscou criar novos instrumentos de promoção de cuidado. Desses esforços surgiram, por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial. Hoje, a principal instituição manicomial que se alastra pelo território brasileiro já não são os hospícios, mas as comunidades terapêuticas – e o país poderia recorrer ao mesmo espírito de criatividade para propor alternativas que as esvaziem, sugere Costa.

CTs cresceram no limite dos CAPS?

Frisando a necessidade de que essa discussão seja conduzida com muita responsabilidade, o professor da UnB avalia que as comunidades terapêuticas também ganharam espaço ao explorar limites que surgiram na avançada experiência brasileira dos CAPS.

Os Centros de Atenção Psicossocial, assim como outros serviços da RAPS, são considerados uma experiência bem-sucedida de oferta de cuidados em saúde mental. Desde sua criação nos anos 1980, nacionalizaram-se e hoje mais de 3 mil equipamentos do tipo atendem a população – alguns deles voltados especificamente para o público infanto-juvenil ou usuários de álcool e drogas. Mesmo assim, em especial neste último caso, ainda é necessária a construção e o credenciamento de inúmeras unidades a mais, tendo em vista que as atualmente existentes sofrem com sobrecarga ligada à alta demanda.

“Existe uma lacuna assistencial para álcool e outras drogas, uma questão que acabou ocupando uma posição marginal dentro do guarda-chuva da saúde mental. As comunidades terapêuticas se aproveitam disso. E esse é um movimento que a gente deve inclusive analisar dentro de um contexto geopolítico bem claro, de expansão imperialista dos Estados Unidos e de seu discurso de guerra às drogas”, avalia Costa.

Além disso, defende o professor da UnB, a integração entre a RAPS e os demais serviços do SUS segue precisando melhorar. “É muito difícil fazer os serviços não especializados entenderem que o cuidado em saúde mental também é responsabilidade deles. Se chega alguém em sofrimento psíquico na UBS, a primeira coisa que se faz é encaminhar para o CAPS. Assim, ele vai se tornando uma espécie de monopolista, proprietário privado dessa perspectiva de assistência e tratamento, e não devia ser bem assim”, pondera.

Nesse sentido, Costa defende que uma parte do processo de enfrentar as comunidades terapêuticas passa por impulsionar os serviços de cuidado em liberdade – a exemplo dos CAPS e Unidades de Acolhimento – e assegurar a ampliação de seu financiamento, constantemente ameaçado por políticas econômicas neoliberais. 

Outra parte, no espírito basagliano, vai além das políticas setoriais. É fortalecer a garantia de direitos e o atendimento das necessidades mais elementares da população – alimentação, emprego, moradia. Para isso, é indispensável convocar a mobilização social, como também fez o psiquiatra italiano: “As propostas de mudança assistenciais nas políticas que o Basaglia fez estavam subordinadas, submetidas à sua práxis política militante, inclusive anticapitalista. A dimensão técnica, sozinha, não vai conseguir resolver nossas contradições.”

E conclui: “Devemos fortalecer os centros sociais e comunitários, precisamos de lazer, esporte, cultura. O que fortalece o tecido social é o que vai dizer da nossa condição social de produzir relações uns com os outros”.

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