Como o setor privado quer desunificar o SUS

Pesquisador traça a história de uma cisão interesseira. O SUS foi criado para ser único – e a saúde “suplementar” deveria subordinar-se a ele. Mas a medicina de negócios serve-se da ideologia neoliberal para separar os sistemas e ficar com a parte do leão

Manifestantes protestam contra as graves denúncias feitas à CPI da Covid, em 2021, de que a operadora Prevent Senior tentava maximizar os lucros em plena pandemia. Médicos que denunciaram a empresa relataram ouvir que “óbito também é alta
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A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a favor das operadoras de planos de saúde, quando definiu que elas só precisam prestar serviços contidos no “rol” elaborado pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), foi objeto de um texto reflexivo importante escrito e publicado hoje no Outra Saúde por Paulo Capel Narvai, professor de Saúde Pública na USP e autor do livro SUS: Uma reforma revolucionária

Seu argumento central diz respeito ao que chama de “mito dos dois sistemas”. Ele explica que a ideologia ultraneoliberal busca fazer crer que existe o SUS e, paralelamente, um suposto sistema privado de saúde. Mas o Sistema Único não se chama assim por acaso, e a saúde suplementar e complementar devem estar submetidas a ele.

“Não é de hoje, mas também não é por acaso, que se sucedem ilegalidades relacionadas com o SUS”, denuncia Narvai, referindo-se às contínuas investidas para separar a saúde privada como sistema próprio, favorecendo-a. “As ilegalidades convergem, quase sempre, para servir aos propósitos do projeto político neoliberal que, também no Brasil, extermina direitos, aprofunda desigualdades e concentra ainda mais a renda.”  

Como parte integrante do sistema de saúde brasileiro, as empresas que prestam serviços e vendem apólices deveriam estar submetidas ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), segundo a Constituição de 1988. O CNS é composto por representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários, e tem a missão de planejar e controlar as políticas de saúde.

Mas desde os anos 1990, amplos ataques vêm tirando a autoridade do CNS, explica Narvai. Já em 1998, foi criado – inconstitucionalmente, para o autor – o Conselho de Saúde Suplementar (CONSU), e três anos depois uma medida provisória atribuiu a ele competência para “estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar”. Tudo isso em desacordo com a Constituição, para Narvai. “Cabe ao SUS, operando como sistema, fazer com que essas partes ou setores, não estatais, operem como um todo para atingir um objetivo definido.”

A contraposição entre SUS e saúde privada, para Narvai, “cai como uma luva ao propósito neoliberal de reduzir ao máximo o Estado”. Mas serve perfeitamente também com a visão bolsonarista, que, segundo o autor, é “de rejeição visceral a qualquer ideia de conectar proteção social ao papel do Estado Democrático de Direito”. Narvai faz uma analogia com a segurança pública: as leis permitem que haja segurança privada, mas todas as empresas do setor devem se submeter ao controle do Estado. Talvez Bolsonaro discorde…

Por isso, decisões como aquela a favor do “rol taxativo”, pelo STJ, deturpam o sistema de saúde brasileiro – que tem como objetivo oferecer saúde à população, e não meramente vender procedimentos médicos. “Com sua decisão, inconstitucional reitero, o STJ contribuiu, infelizmente, para golpear o direito social à saúde”, lamenta Narval, “e criar impedimentos adicionais para que o SUS cumpra a sua missão institucional de principal instrumento do Estado Democrático de Direito para assegurar a todos o exercício do direito à saúde”.

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