Como fazer o SUS chegar aos quilombos
Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola pode significar novo passo nos cuidados de comunidades historicamente marginalizadas. Conquistada pela luta popular, promove territórios sustentáveis e valorização de saberes tradicionais
Publicado 10/04/2025 às 09:14 - Atualizado 10/04/2025 às 13:54

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O termo Quilombolas ou comunidades remanescentes de quilombos é utilizado no Brasil, desde o final dos anos 80, para se referir a territórios ancestrais que congregaram povos africanos e seus descendentes, além de indígenas e outros, que resistiram ao processo de escravização e genocídio. Embora o direito tenha positivado a identidade política e social destas comunidades, a partir do seu reconhecimento como portadoras de direitos específicos, conforme assegura a Constituição Federal da República do Brasil de 1988, estas seguem em um tortuoso contexto de incompletude da sua cidadania, invisibilidade, exclusão social e vulnerabilização, aprofundado pela marca do racismo estruturante da sociedade brasileira.
Importante destacar que o governo anterior, demarcado por uma ideologia de extrema-direita, implementou uma política de ataque às comunidades e aos povos tradicionais, sobretudo aos remanescentes de quilombos e povos indígenas. Entre os diferentes mecanismos utilizados para institucionalizar a negligência, a qual se aprofundou numa espécie de necropolítica do terror, como afirma o camaronês Achille Mbembe, estavam as paralisações das demarcações territoriais, negação das políticas públicas, ruptura com o controle social, revogação de políticas e leis importantes e criminalização dos sujeitos e movimentos sociais.
Entre os distintos setores, destacamos a saúde como um dos principais alvos de ataque do governo anterior a estas comunidades e povos tradicionais, como pôde-se vislumbrar durante o período da pandemia de Covid-19, entre 2020 e 2022. As condições precarizadas de acesso aos serviços de saúde por parte dessas populações e o histórico processo de vulnerabilização e marginalização, refletiu-se nos altíssimos índices de infecção, agravo e morte por Covid-19.
Assim, diante do quadro que se apresentou nos últimos anos, de acirramento e enfrentamento à sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais, os movimentos sociais intensificaram a luta e as discussões por direito em saúde, reconhecendo que o complexo tripé – saúde, doença e cuidado – envolve, para além dos determinantes biológicos, um processo de determinação social que engloba as condições econômicas, sociais, culturais, políticas, religiosas e ambientais. E, quando analisamos as condições específicas da população quilombola, não podemos deixar de lado que a maioria destas comunidades vivem em condições de pobreza que não lhes permitem o acesso a bens essenciais e aos serviços básicos que permitam garantir saúde e bem-estar.
Os movimentos, coletivos e grupos sociais quilombolas e negros passaram a intensificar a discussão sobre a saúde quilombola, pautando o seu espaço na arena pública. Um dos momentos importantes a serem mencionados foi a realização da 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde Quilombola, ocorrida em 2023, organizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) contando com a parceria do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a qual teve a participação efetiva de mais de 1.200 quilombolas de todo o país.
As discussões centraram-se na defesa do SUS, da democracia e da garantia de direitos quilombolas em torno do acesso à terra e da equidade em saúde, visando a valorização dos saberes e práticas de cuidado e cura tradicionais e ancestrais. É deste contexto que resulta a Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ), a qual esteve em regime de consulta pública entre os dias 14/2 a 31/3 no site oficial do Ministério da Saúde. A PNASQ, que conforme veiculado pelo MS, terá investimentos na ordem de R$ 173 milhões de reais, ainda com a previsão de lançamento para este ano, propõe ações de vigilância em saúde, formação de profissionais, atenção integral à saúde etc.
A Política para a saúde quilombola, contempla eixos que discutem profundamente a promoção de territórios saudáveis e sustentáveis; a garantia da participação social; a valorização dos saberes e práticas das medicinas quilombolas, vigilância em saúde, trabalho e educação; pesquisa e desenvolvimento, preservação da sociobiodiversidade e enfrentamento das emergências climáticas em saúde e a atenção integral à saúde quilombola.
Mas, é preciso observar a existência histórica de um antecedente que se deu entre os anos 2002 e 2003, ou seja, na virada do governo Fernando Henrique Cardoso para o primeiro mandato do governo de Luís Inácio Lula da Silva. No governo FHC, a política apresentava a intencionalidade de mitigar os efeitos nefastos das desigualdades sociais e raciais, nomeando e reconhecendo a existência do racismo. Já no Governo Lula, houve uma efetivação das políticas, haja vista a transformação do debate político com foco no enfrentamento às desigualdades étnico-raciais, trouxe um novo patamar para a luta política étnico-racial da população negra, quilombola e indígena, bem como para a formulação das políticas públicas sociais. O salto qualitativo observado no período em destaque foi a implementação de uma política de enfrentamento ao racismo, no período do Governo Lula, que congregava a luta de promoção da igualdade racial.
A garantia do acesso integral à saúde da população quilombola, atende a uma demanda cujas especificidades históricas estão sedimentadas na persistência histórica dos efeitos da escravidão. Sua perspectiva para mitigar os efeitos das desigualdades observadas neste segmento social, exige para além da formulação e implantação da política, uma profunda revisão sobre os pilares que sustentam as desigualdades para além das questões baseadas nas especificidades étnicas, culturais e territoriais. A dimensão do binômio racismo e desigualdades tão bem assentadas nos efeitos intertemporais das desigualdades contemporâneas, estruturaram no país um padrão de políticas que, não obstante as observâncias ao texto constitucional, invariavelmente atende aos preceitos da política pública, dentro dos limites da ação governamental.
Em termos do financiamento e da administração da política, bem como em termos dos resultados esperados, a dimensão estruturante de uma política cujas expectativas buscam atender a uma população específica necessita, para sua efetiva consolidação e sucesso, considerar a complexidade das relações intergovernamentais, com os/as gestores/as federais, estaduais e municipais atuando com diferentes graus de autonomia nas diferentes áreas sociais. Estes grupos tradicionais reivindicam não apenas uma política residual e focalizada, pois é preciso efetivamente compreender que a noção de desenvolvimento social só enfrentará as desigualdades se for possível reconhecer o verdadeiro impacto do processo de escravização e genocídio nas populações negras e indígenas, contemplado a implementação de uma política pública que reestruture o sistema de desigualdades sociais e étnico-raciais e das iniquidades em saúde.
O que se quer, portanto, são políticas efetivas que não se extingam por decurso de prazo, quando houver mudanças nos vetores universais da política, quando se troca a gestão, mas que modifiquem, efetivamente, a postura das relações e instituições sociais. A questão central reside na efetiva implementação da PNASQ sem que as intempéries e oscilações do foco na macro política interfiram na manutenção e continuidade desta.
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