Como desmorona um sistema de saúde

No Sudão, a guerra civil leva a saúde pública ao precipício – fome, cólera e HIV afetam duramente a população. Mas ativistas locais denunciam: os equipamentos de saúde não estariam tão frágeis sem décadas de políticas neoliberais orientadas pelo FMI

Foto: Eduardo Soteras Jalil/ACNUR
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Pelo People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda

Desde o início da guerra civil no Sudão, o povo sudanês enfrenta grandes desafios para receber cuidados adequados. “A saúde pública já estava fragilizada desde 1979, quando o então presidente Jaafar Nimeiri adotou as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI), que diziam que o governo devia abrir mão de oferecer serviços de Saúde e Educação para melhorar as contas”, explica Ihssane Fagiri, que atua em seu país no Sindicato dos Médicos, na Iniciativa de Combate à Opressão das Mulheres, na União de Mulheres Sudanesas e na Seção de Médicos do Partido Comunista local.

As considerações de Fagiri foram feitas em uma coletiva de imprensa sobre a guerra civil do Sudão de uma perspectiva crítica, promovida pela Assembleia Internacional dos Povos (AIP), o People’s Dispatch e a revista sudanesa Madaar. Ativistas de organizações do próprio Sudão, que estão na linha de frente das dificuldades, foram convidados a falar no evento.

“De acordo com as instruções do FMI, os hospitais deveriam ser administrados pelas autoridades locais. Como as cidades do Sudão eram muito pobres, o processo de “devolução”, como foi chamado, resultou na deterioração do sistema de saúde”, avaliou a médica.

Fagiri culpa os movimentos religiosos radicais [que estiveram no poder durante os trinta anos da presidência de Omar al-Bashir, de 1989 a 2019], que teriam implementado o que ela chama de “capitalismo parasita”, pela destruição do país e da saúde pública, particularmente por terem acelerado a implementação dos planos do FMI.

Quando o conflito irrompeu, as condições dos equipamentos de saúde ficaram piores do que nunca. Nas primeiras semanas de combate, hospitais, clínicas e postos de saúde se tornaram alvo da milícia Janjaweed [que se opõe ao governo na guerra civil] e das Forças Armadas Sudanesas. Como resultado, 70% dos equipamentos deixaram de funcionar, e a maioria dos sudaneses que sofriam de problemas renais graves faleceram. Outros muitos foram obrigados a se deslocar para outras regiões do país em busca de cuidados, que estão seriamente afetados em pelo menos nove estados.

A vacinação foi interrompida, porque os centros voltados para essa finalidade foram bombardeados. Os pacientes oncológicos, renais e hematológicos foram os mais afetados, particularmente nos estados de Al Jazeera e Madani. A invasão do estado de Al Jazeera desencadeou a maior catástrofe de saúde dos últimos tempos no Sudão.

A guerra também causou problemas sanitários e ambientais, visto que os corpos dos mortos estão sendo jogados nas ruas em grande quantidade – e sendo atacados por cachorros. O cenário resulta na disseminação de doenças: 9 mil pessoas já foram diagnosticadas com cólera, das quais 300 morreram.

A fome afeta principalmente as crianças. De acordo com dados da ONU e da OMS, a desnutrição infantil no Sudão está em níveis de emergência. Em áreas como o campo de refugiados ZamZam, mais de 30% das crianças de até 5 anos sofrem de desnutrição aguda. Segundo o Programa Alimentar Mundial, 25,6 milhões de sudaneses enfrentam uma insegurança alimentar grave.

Além disso, o alastramento de casos de violência sexual também tem afetado duramente a saúde psicológica e mental das vítimas e seus familiares. A médica Fagiri relatou o trauma profundo de muitas mulheres que testemunharam suas filhas serem mortas nas ruas após serem sujeitas a estupros. Um dos grandes obstáculos que a saúde pública enfrentará será o trauma psicológico. “Isso não será possível sem o fim da guerra”, ela diz.

Em termos dos impactos físicos da violência sexual, em alguns casos se pôde oferecer tratamento de HIV às vítimas. Contudo, não foi possível fazer o mesmo outras condições crônicas de saúde que podem se desenvolver após o estupro.

A proibição da entrada de ajuda humanitária também significou a impossibilidade de garantir tratamento para várias doenças crônicas no país. Ainda que muitos médicos estejam prontos para oferecer cuidados de saúde e apoio psiquiátrico para os refugiados nos campos, não há clínicas e equipamentos para tornar isso possível.

Ainda que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tenha estabelecido campos para os deslocados, suas instalações não conseguem atender às necessidades diárias mais básicas das pessoas, como sanitários, água potável, camas e lençois. Não há nem mesmo absorvente para as mulheres.

A médica Ihssane Fagiri defende que um apelo propondo o estabelecimento de novas clínicas no Sudão deve ser enviado às organizações humanitárias com o apoio dos veículos de mídia internacionais. Ela também pediu o estabelecimentos de campos de refugiados que respeitem a dignidade humana do povo sudanês, que está vivendo em tendas em meio a condições climáticas duras, sem água potável e nem abrigo para protegê-los dos elementos naturais.

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