Como o Congresso boicota avanços na Indústria da Saúde

Nova diretora de Bio-Manguinhos fala sobre conquistas de alta tecnologia alcançadas pelo laboratório público de imunobiológicos da Fiocruz. Mas alerta: a fragmentação do orçamento, ampliada pelas emendas parlamentares, atrasa a continuidade de seus esforços

Créditos: Bernardo Portella e Peter Ilicciev/Bio-Manguinhos
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Rosane Cuber em entrevista a Gabriel Brito

Ofuscadas por fatos políticos que causaram grande comoção com a condenação de Bolsonaro, notícias importantes para a ciência e a indústria brasileira de saúde passaram ao largo do debate público. Talvez a principal delas seja o registro de patente da tecnologia de RNA mensageiro, feito alcançado pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos, da Fiocruz.

Não é a única novidade: o complexo farmacêutico também avança em projetos de terapia avançada, em especial com as células Car-T, tecnologia que faz modificação genética para expressar um receptor artificial (CAR) que reconhece células tumorais de portadores de doenças graves como câncer, para assim atingir uma possível cura.

Presente no Seminário SUS 35 anos, a biomédica Rosane Cuber Guimarães acabou de ser eleita diretora de Bio-Manguinhos e conversou com o Outra Saúde para tratar da economia da saúde, sob o ponto de vista de quem dirige um valioso aparato produtivo.

“Queremos consolidar a produção nacional, tornar a Bio-Manguinhos um player não só nacional, mas regional. Assim, poderemos exportar nossas vacinas, como já é o caso do imunizante de febre amarela, para a América Latina e outros países”, resumiu.

Em sua participação no seminário, fez uma detalhada exposição sobre os projetos de Bio-Manguinhos em andamento. A partir de financiamentos federais, a instituição coordena a construção de duas novas plantas fabris: uma delas no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro, e outra no Eusébio, região metropolitana de Fortaleza. Na capital cearense, investimentos de R$ 1 bilhão servirão para a construção Complexo Tecnológico em Insumos Estratégicos, ao lado da Biofábrica de Wolbachia, que cria mosquitos da dengue que não transmitem arboviroses.

“Outro grande projeto é dos Produtos de Terapia Avançada, que se divide em dois subprojetos. O primeiro é o CAR-T-Cells, que são células do próprio paciente manipuladas. Há também um projeto de terapia gênica para doenças raras, como doença de Krabbe, Atrofia Muscular Espinhal e distrofia leucopênica”, acrescentou Cuber, também doutora em vigilância especializada, dentre outras especializações.

Trata-se de avanços excepcionais não só para a saúde enquanto um direito, mas também como campo econômico. E aqui o país volta a se defrontar com o caráter escuso e mesquinho de uma classe política sabotadora, mais interessada em tomar de assalto fatias do orçamento que financiam projetos desta envergadura e se autoconceder impunidade irrestrita.

Neste sentido, Rosane é taxativa a respeito das emendas parlamentares. “Um dos maiores gastos do Ministério é com medicamentos de alto custo, complexos e de base biotecnológica cara, que levam muito tempo para ficarem prontos, diferentemente de medicamentos sintéticos. A perversidade é com o usuário do SUS. (…) O dinheiro da Saúde se destinar a emendas parlamentares é absolutamente tenebroso e desconstrói tudo o que a política construiu ao longo dos anos”.

Seu apelo tem relação direta com as necessidades estratégicas de uma nação que se pretende realmente soberana, para usar adjetivo novamente em alta no debate político. Projetos valiosos que podem levar a curas de doenças raras e criar estruturas geradoras de empregos, riqueza interna e inovação são desprestigiados em função de práticas que remetem ao coronelismo.

“Não se consegue dar continuidade a projetos porque às vezes um parlamentar dá uma emenda para começar uma pesquisa, mas no ano seguinte deixa de repassar os recursos. Fica um dinheiro ineficiente, porque não adianta receber uma parte do financiamento de um projeto se não é possível concluí-lo”, criticou Rosane Cuber.

Além disso, há o velho embate dos projetos de nação, que neste caso encontra oposição em setores neoliberais acomodados com o atual padrão de inserção econômica do país. Como explica Cuber, enxergam saúde como mero gasto e reduzem o acesso a insumos farmacêuticos à busca do menor preço, o que na prática inviabiliza a indústria nacional.

“A precificação dos laboratórios públicos precisa refletir os custos envolvidos na internalização de tecnologia, que vão além da manufatura. Quando as conhecidas Big Pharmas adotam preços agressivamente baixos, isso pode criar um ambiente de mercado desequilibrado. Tal dinâmica representa um risco para a competitividade e até para a viabilidade da cadeia produtiva nacional, impactando diretamente os laboratórios públicos e seus parceiros nas Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), fundamentais para a autonomia estratégica do país”, pontuou.

Leia a entrevista completa com Rosane Cuber.

Sobre a expansão produtiva de Bio-Manguinhos, já em andamento, quais serão os ganhos com as novas plantas em construção no Rio de Janeiro e Ceará?

Estamos em fase de modernização das nossas áreas produtivas, que passa por três áreas: a planta de produção de vacinas virais, com maior automatização e ganho de capacidade; modernização da nossa planta de vacinas bacterianas para absorver toda a tecnologia da vacina meningocócica tetravalente, a ACWY; e também uma ampliação da nossa capacidade de produção de reativos para diagnóstico. Tudo isso no campus de Manguinhos.

Mas também temos duas novas áreas em construção. Uma fica na Fiocruz do Ceará, onde iremos construir a nossa planta de produção de Insumos Farmacêuticos Ativos para medicamentos complexos, dos anticorpos monoclonais e da insulina glargina. Já em Santa Cruz, um bairro que está a 50 quilômetros do campus Manguinhos, começamos a construção de uma planta para fazer todo o processamento final de vacinas e biofármacos, o que vai quadruplicar nossa capacidade.

Dessa forma, queremos consolidar a produção nacional, tornar Bio-Manguinhos um player não só nacional, mas regional. Assim, poderemos exportar nossas vacinas, como já é o caso do imunizante de febre amarela, para a América Latina e outros países, via Nações Unidas, Organização Pan-Americana de Saúde ou Unicef, através da aliança global para a compra de vacinas, que podem ser distribuídas a países da África, Ásia, Oceania, América Latina.

Para entendermos mais claramente um aspecto técnico, é possível vender para outros estados nacionais ou deve se passar obrigatoriamente por organismos globais?

Como Bio-Manguinhos é uma fundação pública, não podemos fazer venda direta para Estados nacionais. Somos orçamentados pelo Ministério da Saúde, entregamos os nossos produtos para o SUS e o nosso excedente de produção pode ser ofertado às agências das Nações Unidas.

O que comenta sobre os projetos de tecnologia mais avançada já em andamento no complexo farmacêutico de Bio-Manguinhos, notadamente a tecnologia de RNA mensageiro?

Temos dois grandes projetos em Bio-Manguinhos: a plataforma de RNA mensageiro, uma plataforma 100% nacional, patente nossa. Essa plataforma permite o desenvolvimento de diferentes vacinas. Hoje, nossa principal vacina que vai entrar em estudo clínico é a de covid, mas já temos outros alvos, como as vacinas de tuberculose, leishmaniose, mpox, dentre outras. De toda forma, a vacina de covid já é concreta, financiada pelo Ministério da Saúde, BNDES e Opas/OMS.

Outro grande projeto é dos Produtos de Terapia Avançada, que se divide em dois subprojetos. O primeiro é o CAR-T-Cells, que são células do próprio paciente manipuladas, como se fosse uma medicina personalizada para pessoas que têm cânceres hematológicos, leucemias e linfomas que recidivam ou são refratários aos tratamentos. Por exemplo: a pessoa já fez uma transfusão de medula, mas não deu certo. Para tais casos em que não há mais cura é que se faz o tratamento pelas células CAR-T.

Há também um projeto de terapia gênica para doenças raras, como doença de Krabbe, Atrofia Muscular Espinhal e distrofia leucopênica. São doenças que exigem uma intervenção direta de cura, pois não são tratáveis com remédios. E a cura se daria através da injeção de uma sequência de DNA que a pessoa não tem, o que modifica suas células, trocando as doentes por saudáveis. 

Para tal projeto buscamos financiamento do estudo clínico, porque todos esses projetos estão na fase de desenvolvimento. Já temos orçamento para estudo clínico de fase 1, mas estamos em busca de orçamento para dar sequência, porque estudos clínicos são muito caros.

Já que falamos de orçamento, o que você pode comentar como representante de importante expressão da economia da saúde sobre o momento político nacional, em especial a questão orçamentária e das emendas parlamentares, que têm retirado valiosas fatias de dinheiro que poderiam ser diretamente aplicadas no SUS ou em projetos como estes que estamos aqui a debater?

As emendas parlamentares fragilizam as políticas públicas, porque fragmentam o orçamento. E a tomada de decisão sobre a alocação desses recursos de emenda muitas vezes está mais relacionada a questões políticas do que com benefícios para o SUS.

Esse formato também nos coloca desafios para a continuidade de projetos, porque podemos iniciar uma pesquisa com recurso de emenda e não ter garantia da mesma emenda para o ano seguinte. Fica um dinheiro ineficiente, porque não adianta receber uma parte do financiamento de um projeto se não se consegue concluí-lo. É dinheiro público gasto de forma ineficiente.

O ideal é que esse orçamento tenha uma racionalização, rubricas definidas para cada objetivo e para o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, ou seja, um orçamento para infraestrutura e inovação, um orçamento para as questões de saúde básica, um orçamento para o componentes especializados… Hoje, um dos maiores gastos do Ministério é com medicamentos de alto custo, complexos e de base biotecnológica cara, que levam muito tempo para ficarem prontos, diferentemente de medicamentos sintéticos.

Um dos maiores gastos dos componentes especializados farmacêuticos são esses medicamentos e, se não tem orçamento, no final das contas sofre quem está na ponta, o paciente. A perversidade é com o usuário do SUS, é com o paciente que não vai receber a vacina, ou que não vai receber o medicamento por conta dessas restrições orçamentárias e da fragmentação do orçamento.

Portanto, o dinheiro da saúde estar em emendas parlamentares é temerário e desconstrói tudo o que a política construiu ao longo dos anos.

Acha que está na hora de compreender a saúde não só como um direito social, mas também como um campo econômico valioso para a integração social?

Esse debate ainda é frágil, não chegou na população. Vejo dois campos opostos: as pessoas que entendem o orçamento como instrumento de fortalecimento da saúde como uma questão econômica, um investimento, e não um gasto. E tem o campo dos pensadores neoliberais, que enxergam-na como um gasto e que devemos apenas batalhar por preços menores. Mas não se interessam pela produção nacional. Se a produção não é nacional, podemos apenas brigar por preço.

A precificação dos laboratórios públicos precisa refletir os custos envolvidos na internalização de tecnologia, que vão além da manufatura. Quando as conhecidas Big Pharmas adotam preços agressivamente baixos, isso pode criar um ambiente de mercado desequilibrado. Tal dinâmica representa um risco para a competitividade e até para a viabilidade da cadeia produtiva nacional, impactando diretamente os laboratórios públicos e seus parceiros nas Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), fundamentais para a autonomia estratégica do país.

Neste cenário, um modelo tradicional de licitação e pregões permite que uma empresa farmacêutica, que não é um player do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, reduza o preço de uma maneira predatória e prejudique o ambiente de avanço tecnológico e produtivo nacional. Hoje, as PDP se apoiam em portaria. Não têm força de lei. Ou seja, temos uma fragilidade jurídica muito grande.

A atual política ainda tem oportunidades de melhorias, principalmente a questão da precificação da transferência de tecnologia. É fundamental desenvolver uma metodologia clara para essa precificação, a fim de que os órgãos de controle e demais partes interessadas possam compreender adequadamente que, além do custo do medicamento em si, é preciso considerar o valor inerente à transferência de tecnologia e ao conhecimento agregado.

Você foi eleita à direção de Bio-Manguinhos, fábrica de imunobiológicos da Fiocruz, cargo importante no que se chama Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileira, em mandato que se encerrará em 2029. O que espera deste período, que atravessará o próximo governo? Quais as expectativas e desafios que você enxerga para o seu período de gestão?

Minha plataforma de candidatura foi colaborativa e definimos alguns eixos para trabalhar nesses próximos quatro anos. Resumidamente, precisamos conformar toda a produção de Bio-Manguinhos e garantir uma sustentabilidade orçamentária. Estamos passando por um período muito difícil diante da questão do orçamento federal, comprometido pelas emendas parlamentares. É o nosso maior desafio.

Além de vencer a significativa restrição orçamentária, nossa expectativa é consolidar as transferências de tecnologia, a expansão da capacidade produtiva e terminar as obras de modernização do nosso complexo para ampliar sua capacidade.

Também devemos considerar as pessoas. Temos 2.200 colaboradores, alguns programas de valorização, olhar para a diversidade e acesso de todos às nossas políticas.

Consolidar as nossas capacidades produtivas, tratar a questão orçamentária com mais rigor e valorizar as pessoas são os três pilares da nossa gestão.

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