Clara Mattei: “A saúde não deve ser monetizável”

No XVIII Congresso da Alames, economista italiana defende: universalizar o acesso à saúde é a questão central de nosso tempo. Na mesma mesa, sanitarista da UFBA reforça que não é possível conciliar esta tarefa com o fortalecimento da medicina de negócios

Fonte: FISAC/CGIL
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A universalização do direito à saúde só será alcançada se a ganância dos ultrarricos e da medicina de negócios for combatida sem meias medidas, avaliaram os participantes do quarto dia de atividades do XVIII Congresso Latino-americano de Medicina Social e Saúde Coletiva.

Nesta quinta-feira (7), na mesa Conquista da universalização do direito à saúde: desafios políticos e econômicos, a economista italiana Clara Mattei afirmou que é preciso fazer análises precisas que identifiquem os “impedimentos sistêmicos ao desenvolvimento do direito à saúde numa economia capitalista”. (Leia, em Outras Palavras, a crítica de Mattei à austeridade brasileira e uma resenha de seu livro mais recente.)

Em sua fala para o encontro da Alames (a gravação está disponível aqui), a economista destacou que “a mercantilização da saúde é uma característica definidora do capitalismo avançado não apenas no Sul Global, como também no Norte”. No entanto, ela aponta, “a saúde não deveria ser entendida como algo que pode ser monetizável”.

Esta disputa possui um papel político de primeira importância em uma conjuntura onde Trump pretende retirar a cobertura de 16 milhões de estadunidenses – e outros milhões de palestinos têm seu direito à vida ameaçado por um genocídio lucrativo para grandes empresas. “É na batalha pela saúde que poderemos nos emancipar dessa suposta lógica universal do lucro. Universalizar o acesso à saúde é a questão do nosso tempo”, definiu Mattei.

Na mesma mesa, o sanitarista brasileiro Luis Eugenio de Souza, presidente da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública, lembrou que o Banco Mundial foi o principal promotor da proposta de “focalização” das políticas públicas, uma alternativa neoliberal à universalização de direitos como saúde e educação que chegou a ter forte aceitação entre governos. No mesmo sentido, as instituições do financismo agora defendem a suposta “Cobertura Universal de Saúde”, mais uma proposta enganosa que busca substituir a defesa do acesso universal à saúde pela compra de serviços no mercado privado.

O sanitarista reforça que é possível reverter eventuais derrotas neste campo. Originalmente, o Programa de Saúde da Família (PSF) correu o risco de ser uma política focalizada, mas a luta do movimento sanitário e de outros atores sociais acabou transformando-o na Estratégia de Saúde da Família (ESF), uma das maiores expansões da atenção primária de que se tem notícia. Ele também acredita que é possível construir pontes com os defensores de conceitos como “Saúde Única” e “Determinantes Sociais de Saúde” (em vez da determinação social da saúde) em lutas específicas, ainda que estas não sejam categorias consideradas corretas pelo campo latino-americano da Saúde Coletiva.

Souza, que também é professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), chamou atenção para alguns desafios que a América Latina e o Caribe enfrentam no pós-pandemia. O sobrepeso e o envelhecimento da população são alguns destes, provocando uma “rápida transição epidemiológica para doenças não-transmissíveis”. No âmbito dos sistemas de saúde, o atendimento sofreu uma forte perda de qualidade e há graves faltas de pessoal em muitos países. Além disso, os gastos com saúde em relação ao PIB seguem baixos e dependentes do gasto privado – reforçando as desigualdades no continente.

Nesse sentido, o sanitarista concluiu sua fala propondo cinco estratégias para a universalização do direito à saúde. Entre elas, estão “reorientar o modelo de atenção à saúde e superar o modelo biomédico e mercantilista, [superando] a dualidade político-institucional que assume ser possível conciliar a construção de um sistema universal e igualitário com o desenvolvimento do mercado da saúde”. Além disso, ele aponta, segue indispensável “assegurar o financiamento adequado” para as políticas sociais – ampliando o investimento público, reduzindo os subsídios aos planos privados e diminuindo o gasto das famílias.

“Inserir a saúde em um projeto de desenvolvimento soberano, inclusivo e sustentável” é outra das estratégias, por meio da inovação na estrutura produtiva e tecnológica, promovendo emprego e combatendo a desigualdade de renda. “Defender a democracia” e “melhorar a eficiência dos sistemas de serviços de saúde”, profissionalizando e publicizando a gestão, completam o pacote de orientações.

Na esfera política e social, “há que se trabalhar para a formação de um amplo bloco histórico democrático e popular em prol da soberania nacional, da superação das iniquidades sociais, do desenvolvimento sustentável e do direito universal à saúde”, concluiu o sanitarista.

Por sua vez, a enfermeira uruguaia Pilar González, ex-coordenadora do programa de Saúde Rural do Ministério da Saúde do Uruguai e assessora de saúde do partido Frente Ampla, explicou em sua fala alguns limites do Sistema Nacional Integrado de Saúde (SNIS) de seu país, que não é totalmente gratuito e nem 100% público. Ela defendeu a unificação das pautas sanitárias com a bandeira do Bem Viver para reforçar o cuidado com a população dos países da América Latina.

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