BRICS tomarão a dianteira no combate à tuberculose?
Criou-se um vácuo preocupante após cortes no financiamento de programas da OMS para controle e tratamento da doença. Mas o bloco tem condições, por meio de suas redes, centros e institutos de pesquisa, de enfrentar a infecção que mais mata no mundo
Publicado 21/05/2025 às 08:06 - Atualizado 21/05/2025 às 13:35

Por Afrânio Kritski, Maria Claudia Vater e Ezio Tavora*
A tuberculose (TB) é a doença infecciosa que mais mata no mundo. Estima-se que cerca de um quarto da população mundial já tenha sido infectada pela bactéria causadora da TB. Em 2024 10,8 milhões de pessoas adoeceram de TB e mais de 400 mil desenvolveram formas resistentes aos antimicrobianos. Neste período, estima-se que 1,25 milhão de pessoas morreram em decorrência da TB, incluindo 161 mil pessoas vivendo com HIV.
Apesar destes números dramáticos, os países signatários dos compromissos de 2018 e 2023 não fizeram os aportes financeiros acordados. A situação atualmente foi agravada pelos novos cortes de financiamento da OMS com a retirada do financiamento dos Estados Unidos da liderança e do compromisso internacional de suporte a pesquisa, desenvolvimento tecnológico e pactuação de estratégia internacionais conjuntas para o enfrentamento e eliminação da tuberculose, atingindo diretamente o Programa Global de Tuberculose (GTB) da OMS.
Com os cortes orçamentários para o GTB em 2025, associados aos riscos de uma iminente fusão dos programas globais das doenças infecciosas na OMS e a possível transferência do mesmo Programa para uma das regiões das Nações Unidas, muito provavelmente retirará a tuberculose do centro das articulações políticas internacionais e reduzirá drasticamente sua agilidade, capacidade de resposta, inclusive as suas condições para alcançar os recursos necessários para o enfrentamento da doença.
O impacto dessa modificação logo se fará visível, obliterando a resposta efetiva à TB ocorrida após a II Guerra Mundial. Com o desenvolvimento de novos fármacos para a doença e adoção de esquemas terapêuticos eficazes na década de 60 do século passado, observou-se uma rápida queda da mortalidade.
Até o início da década de 80 havia se formado um consenso entre os formuladores de políticas públicas na área da saúde em países centrais/desenvolvidos que enfim a humanidade havia vencido a luta contra a tuberculose. E ao final da década de 70, em nível global, foram fechados os sanatórios, as organizações filantrópicas/não governamentais e deixou de ser prioridade para as Universidades, para as Sociedades Biomédicas, para a mídia e portanto, passou a ser percebida pela população leiga como “algo do passado”.
Entretanto, como ocorreu na Revolução Industrial no século XIX, houve um recrudescimento da tuberculose no final da década de 80, nos países periféricos (baixo e médio desenvolvimento econômico) agravado pela da crise econômica resultante da crescente adoção de políticas neoliberais, associada ao empobrecimento da população, más condições de moradia, insegurança alimentar e desemprego e nos países centrais pertencentes ao G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) um aumento da TB e TB droga resistente (TB-DR) associado à epidemia da infeção por HIV/aids. No início da década de 90, observou-se também um aumento da TB e TB-DR associada ao HIV em países periféricos, em sua grande maioria nos países africanos.
O BRICS+
Em 2024, durante a presidência do bloco pela Federação Russa, foi formalizada a inclusão de sete novos membros plenos: a Arábia Saudita, os Emirados Árabes, o Egito, a Etiópia, o Irã e recentemente a Indonésia, assim como novos membros parceiros: Bielorússia, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. No cenário global atual, os BRICS+ representam 40% da população global e 40% do PIB mundial (segundo o Banco Mundial) e passaram a ter maior projeção. Essa expansão do bloco visa fortalecer a cooperação entre países emergentes e em desenvolvimento, reestruturando a ordem internacional, buscando benefícios compartilhados, na direção de um mundo multipolar.
Desde 2008, sob um sistema de presidência rotativa, os BRICS têm reavaliado seu papel no cenário global ao final de cada ano, durante as reuniões anuais dos chefes de Estado, abordando diferentes temas de interesse comum.
No intuito de agilizar as atividades dos BRICS foram criadas quatro redes na área da Educação (BRICS Academic Forum em 2008; BRICS Network University-2015; BRICS Scientific and Educational Centers/ANEC BRICS-2015; BRICS+ Universities/BUA-2023) e três redes em Ciência Tecnologia Inovação e parceria empresarial (BRICS Working Group on Science, Technology, Innovation and Entrepreneurship Partnership/STIEP WG-2016; BRICS Institute of Future Networks-2018 e, BRICS Partnership on New Industrial Revolution Innovation Center/PNIR-2020).
Na área da saúde, em 2017 estabeleceu-se a Rede de Pesquisa em Tuberculose (TB), em 2019 foi firmado um Memorando entre Autoridades Reguladoras de Produtos Médicos dos BRICS; em 2022 foi criado o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas dos BRICS e recentemente foram iniciadas articulações entre os Institutos Nacionais de Saúde Pública dos BRICS.
Neste ano de 2025, o governo brasileiro assumiu a presidência rotativa anual dos BRICS, e definiu para julho a reunião dos Chefes de Estado, na cidade do Rio de Janeiro. Na semana passada, nos dias 14 a 15 de maio foi realizada em Brasília a 18ª Reunião da Rede de Pesquisa em Tuberculose dos BRICS quando foram estabelecidas importantes discussões em Brasília para acelerar a eliminação da TB por meio da Inovação, desenvolvimento, produção e avaliação de insumos e equipamentos de saúde, como: vacinas, medicamentos e plataformas diagnósticas, além de fortalecer novas estratégias que aumentem a efetividades das ações de prevenção, diagnóstico e tratamento nos sistemas de saúde dos BRICS.
A OMS já declarou que o investimento no combate à tuberculose representa um retorno econômico para a sociedade como um todo de US$ 43 para cada dólar investido na prevenção, diagnóstico e tratamento. Todavia, nesta mesma reunião, a Diretora do Programa Global para a Tuberculose (GTB) da Organização Mundial da Saúde (OMS), Dra Tereza Kasaeva, relatou a grave situação que o GTB/OMS está enfrentando, devido à recente retirada do aporte financeiro de instituições do Governo dos EUA (USAID/CDC). Representava 65% do orçamento geral do Programa, na ordem de U$ 10 milhões/ano, e sua retirada inviabiliza as ações de condução e promoção das ações e políticas globais de enfrentamento à doença, caso não haja o aporte financeiro para cobrir os custos ainda em 2025.
Conforme destacado pela dra. Kasaeva, O GTB/OMS tem a missão de estabelecer as diretrizes globais e responder às emergências neste campo da saúde. O Programa teve importante papel durante a pandemia de covid-19 ao monitorar e identificar ações rápidas para manter minimamente as atividades assistenciais e de pesquisa em tuberculose. No período de 2020 a 2021, houve interrupção de 70% dos serviços relacionados a prevenção, diagnóstico e tratamento da TB em todo o mundo, em função da alocação de recursos humanos e financeiros para combater a pandemia.
Nas últimas duas décadas, sob a coordenação do GTB/OMS, ações de prevenção, diagnóstico e tratamento de TB e TB-DR (TB com cepas resistentes aos antimicrobianos) salvaram cerca de 80 milhões de pessoas. Desta forma, têm desempenhando um papel singular no estabelecimento como liderança global estratégica na luta contra a doença, coordenando todos os principais interessados, sejam entidades públicas ou não governamentais, desenvolvendo diretrizes baseadas em evidências para promoção dos cuidados em TB, bem como colaborando com um importante suporte técnico aos países na sua implementação, com monitoramento e avaliação da epidemia global por meio de relatórios globais anuais de 200 países e relatórios mensais de 100 países.
A retirada do financiamento do GTB coloca em risco todo o esforço da OMS para redução da carga global da tuberculose, ameaçando uma regressão dos avanços obtidos nos últimos 20 anos sendo que a maior parte dos casos TB ocorre em países de baixa e média renda — sendo cerca de 50% registrados nos países do BRICS+.
Apesar das Reuniões de Alto Nível de 2018 e 2023 consolidaram o compromisso dos Estados-membros com o aumento expressivo dos investimentos no enfrentamento da TB, a conjuntura atual de retração no financiamento internacional e do risco iminente de colapso da liderança técnica global contra a doença, em si, já exige, por parte dos mandatários dos países do BRICS+, uma demonstração de capacidade de resposta rápida de alocação de recursos, diante do desmonte de estruturas importantes e estratégicas para o combate de emergências globais em saúde como já é o caso da tuberculose.
Diante deste desafio atual, os países reunidos em torno ao BRICS+ parecem ter as condições técnicas e financeiras para ocuparem o vazio deixado na área da saúde internacional e assumirem a liderança e o compromisso ético e moral com a saúde das nações.
* Publicado originalmente no boletim do Observatório Internacional do Século XXI
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