Brasil será um país de cobaias?
Com aval do governo, a Conep, órgão de regulação de estudos clínicos sofisticado e regido pela participação popular, foi trocado por sistema que abre espaço à indústria farmacêutica. Mudança se dá após forte lobby no Congresso e no Executivo. SBB judicializa a questão
Publicado 22/10/2025 às 12:44 - Atualizado 22/10/2025 às 13:09

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Por Marisa Palácios, Marcia Bandini e Reinaldo Guimarães
Os fatores que tornam o Brasil especialmente rico para testes de novos medicamentos – a diversidade populacional, a variação genética e a existência de um SUS sob controle social múltiplo – podem ser neutralizados em breve, para prejuízo da sociedade e alegria da Big Pharma. Isso ocorre após a mudança num órgão pouco conhecido pela população mas de enorme importância: a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, Conep. Diante da ameaça, 26 de seus membros renunciaram, há pouco mais de uma semana. A história merece ser conhecida em mais detalhes.
Constituída em 1996, a Conep consolidou-se desde então como núcleo de um sistema robusto de avaliação dos aspectos éticos das pesquisas feitas com seres humanos. Ela atua por meio de seus 912 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs). Protege, como órgão que representa a população, todo participante de ensaio clínico no Brasil. Está diretamente ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS). Devido a estas características, tende a sofrer menos interferência de governos e, principalmente, da indústria.
Ou ao menos era assim que o sistema CEPs/Conep funcionava. A comissão superior, da forma como foi concebida, não existe mais. Foi derrubada com a instituição, pelo Congresso Nacional, de um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, aprovado na Lei 14.874/2024, após dez anos de tramitação. A mudança é considerada uma grave derrota em muitos termos – para as pessoas que se envolvem em estudos, para a produção científica e, mais amplamente, para a participação social.
A lei foi sancionada – com vetos da presidência da República – em maio de 2024. Os vetos foram derrubados no Congresso em junho de 2025. Mais recentemente, um decreto de Lula regulamentou o novo sistema, e foi então que se deu a renúncia de 26 integrantes da Conep. “Nós não podemos compactuar com isso. Não podemos ter nosso nome implicado nessa tomada de decisões”, exclamou Heleno Rodrigues Corrêa Filho, um dos conselheiros que também é epidemiologista, pesquisador da ESCS/UnDF e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), ao Outra Saúde.
“Essa renúncia tem um simbolismo”, avalia Elda Bussinger, livre docente pela Universidade do Rio de Janeiro (UniRio) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), “que retrata a insatisfação e a inconformidade com a forma como o processo se deu, e o esvaziamento absoluto da Conep”. Elda esteve à frente da defesa do sistema CEP/Conep no Congresso Nacional e contra o lobby da indústria ao longo de sua presidência na SBB.
De acordo com o decreto publicado em 8 de outubro, o Ministério da Saúde não outorgará à comissão nem mesmo um lugar à mesa de decisões na nova Instância Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (Inaep), que será subordinada à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Sectics/MS). À Conep restará o papel de instância de recurso dos CEPs, em questões em que haja desentendimento.
Conep, bioética e participação popular
Até as mudanças promovidas pela lei 14.874/24, o controle das pesquisas científicas com seres humanos realizadas no Brasil era feito dentro do Conselho Nacional de Saúde. A Conep elaborava e atualizava as diretrizes e normas para a proteção dos participantes de pesquisa, além de fazer a coordenação dos CEPs – que estão presentes em todos os estados do Brasil, e são ligados a universidades, hospitais e instituições de saúde.
A Conep é composta por coordenadores ligados ao CNS e ao Ministério da Saúde, e seu pleno se constitui por membros titulares eleitos, provenientes e indicados pelos Comitês de Ética em Pesquisa. Para essa composição, além da análise de seu currículo e experiência, há uma obrigatoriedade de distribuição por gênero, racial, por área de conhecimento e por localização geográfica. Isso permite que a população brasileira esteja representada por membros que têm experiência e competência para analisar a ética em pesquisas.
Há, em todo o mundo, exemplos históricos de abuso de populações vulneráveis, sob o pretexto de avanço da medicina. Um deles é o macabro caso Tuskegee, nos Estados Unidos, entre 1932 e 1972, no qual homens negros com sífilis foram deliberadamente deixados sem tratamento para observar a progressão natural da doença, sem seu conhecimento ou consentimento. Este experimento representou uma grave violação dos direitos humanos e dos princípios éticos médicos, tornando-se um símbolo de racismo e abuso na pesquisa científica.
Durante seus quase 30 anos de atuação, a Conep tem garantido que os estudos conduzidos com a população brasileira não ultrapassem os limites da ética e, sobretudo, do interesse dos participantes. Não é permitido, por exemplo, que se ofereça contrapartida financeira para o envolvimento em estudos. O princípio é garantir que a decisão de participar seja voluntária, baseada na compreensão dos riscos e benefícios da pesquisa, e não na necessidade financeira. Pagamentos elevados poderiam levar indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica a aceitar riscos que normalmente não aceitariam, ferindo o princípio ético da autonomia.
A importância da Conep também está em garantir um padrão para todo o território nacional. Se um estudo propõe acompanhar cidadãos brasileiros em mais de um estado, por exemplo, deve-se consultar a Conep para que seja aprovado e não dependa apenas da confirmação individual de cada CEP, evitando conflitos.
A indústria contra a Conep
“Dizem que esse processo atrasa a ciência. A gente acredita que ele atrasa o lucro”, afirma Heleno Corrêa, quando questionado sobre por que a indústria se sente incomodada com esse sistema, e se esforça para desmontá-lo. O epidemiologista explica que houve um processo de empresariamento, nos últimos anos, “dos centros de pesquisa ditos independentes da academia. Então começaram a pipocar no Brasil centros de pesquisa clínica em seres humanos, com financiamento industrial”.
Segundo Heleno, um dos momentos em que a Conep se destacou foi durante a pandemia de covid-19. Naquele momento, a comissão chegou a interromper estudos que causavam a morte de seus participantes. Um dos casos aconteceu no Amazonas, patrocinado pela rede de hospitais privada Samel, e causou a morte de 200 pessoas. O pesquisador experimentava o uso de proxalutamida para o tratamento da doença. A Conep registrou uma série de irregularidades e concluiu que os responsáveis pela pesquisa desrespeitaram quase todo o protocolo.
A interferência da indústria deu-se desde o início da tramitação do projeto de lei. Ele tramitou entre o Senado e a Câmara e foi sancionado com alguns vetos – menos que o desejável – pelo presidente Lula em maio de 2024. Um deles dizia respeito ao fornecimento do medicamento aos pacientes estudados, quando esses fármacos fossem aprovados. Era um ponto chave: se o usuário tem uma doença rara e contribui com a ciência para a descoberta de um novo remédio, deveria ser seu direito recebê-lo dali em diante. O Congresso definiu que a indústria só precisa garantir esse medicamento por 5 anos – a partir de então, o paciente precisa recorrer ao sistema de saúde para recebê-lo. Esse é um dos artigos que o presidente vetou, mas a Câmara derrubou esse e outros vetos, em junho, deixando a lei como foi aprovada originalmente.
“A lei saiu da forma que o mercado gostaria”, criticou Elda Bussinger. “Ela atende todos os requisitos, o lobby da indústria foi vencedor nessa disputa. O campo que defende os direitos humanos fundamentais perdeu, os participantes de pesquisas perderam, o controle social perdeu.”
Um decreto presidencial que não minimiza os danos
Desde a sanção da lei, em 2024, a SBB e outras entidades de bioética e de defesa dos direitos humanos buscaram um diálogo com o Ministério da Saúde para garantir um equilíbrio maior entre as forças da indústria e os interesses dos participantes de pesquisas. A derrubada dos vetos de Lula foi mais uma derrota, mas havia uma esperança final no decreto que regulamentaria a lei.
Membros da Conep organizaram-se para exigir que a comissão ao menos fosse representada dentro da nova Instância Nacional de Ética em Pesquisa (Inaep). Tratava-se de um “remédio amargo”, nas palavras de Heleno Corrêa, mas que poderia minimizar os danos. Houve várias tentativas de diálogo com a Sectics do Ministério da Saúde, secretaria onde a Inaep seria instalada.
Em 7 de outubro, foi publicado o Decreto 12.651, que prevê 33 membros titulares na Inaep – sem menção da participação de ninguém da Conep nesta instância. A composição estabelece seis representantes indicados pelo Conselho Nacional de Saúde – apenas 18% da mesa. Mas membros do Conep alertam que isso não significa incluí-los – pois não são conselheiros, mas eleitos no sistema descrito anteriormente. O decreto também inclui 15 especialistas de “notório saber” que precisam ter título de doutorado ou experiência de ao menos dez anos na área.
Na última Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde, realizada em 9/10, a secretária da Sectics, Fernanda De Negri, fez uma apresentação das alterações propostas pelo decreto. Ela explica que a nova Inaep terá papel de regulação, normalização, fiscalização, credenciamento, acreditação e definição de prazos.
Defende que, embora sua gestão tenha tomado posse apenas em março deste ano e houvesse pouco tempo para elaborar a regulamentação do novo sistema, o fez após reuniões com a comunidade acadêmica, sociedades de pesquisa, associações de pacientes, associações empresariais e com o CNS. Ela também frisa que o decreto deixa abertos espaços para que o processo de transição e detalhamento seja feito com mais diálogo – a Sectics publicou portaria em que cria um grupo de trabalho para implementar a Inaep com participação do CNS.
Elda Bussinger, ex-presidente da SBB, tem uma visão diferente. Ela afirma que saiu de sua última reunião no Ministério da Saúde com a convicção de que não havia espaço para as reivindicações da sociedade civil: “Eles foram claros: a questão está posta, eles estavam decididos a enfrentar as consequências de não terem se aberto para um debate mais democrático. Nesse momento nós entendemos que aquela etapa de negociação estava encerrada.”
Heleno Corrêa também chamou de “grande decepção” o decreto presidencial. “A discussão sobre o SUS no Ministério da Saúde e no CNS sempre foi paritária. Nunca se vislumbrou a possibilidade de fazer uma regulamentação nessa área, em que o setor patrocinador fosse majoritário. Esperávamos no mínimo paridade de armas.”
Um dos pontos mais preocupantes da criação da Inaep e de sua subordinação à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, defende Heleno, é que ela estará vulnerável a governos, não mais sob o controle social. “Hoje nós temos um governo e um ministro da Saúde que são considerados éticos, amigos da população e do SUS. Mas no governo anterior, por exemplo, não era assim: o presidente incitava a população a tomar medicamentos sem comprovação para tratar a covid e sustentou sua posição mesmo quando pessoas começaram a morrer sem oxigênio”, relembra.
Nova luta na Justiça
Convicta de que havia um esgotamento dos processos de negociação com o Ministério da Saúde, Elda Bussinger, ao final de sua gestão na SBB, abriu uma nova frente de batalha, que agora é encampada pela nova presidenta da entidade, Marisa Palácios. A SBBentrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (a ADI 7875), para questionar a Lei 14.874/24 na forma em que foi formulada no Congresso.
Diante de seguidas derrotas, a SBB conseguiu uma pequena vitória: a ADI foi aceita logo após sua proposição – o julgamento ainda não está marcado. De acordo com a ação, a lei fere a Constituição ao impedir o acesso contínuo a terapias comprovadas por participantes vulneráveis de estudos clínicos. A entidade também sustenta que a criação da Inaep pelo Congresso Nacional invade a competência exclusiva do presidente da República, que é a de estruturar a administração pública federal, conforme previsto na Constituição. O relator da ação no STF é o ministro Cristiano Zanin.
A partir de então, entidades como a Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e a Frente pela Vida requerem sua admissão como amicus curiae na causa – figura que permite a terceiros apresentarem subsídios ao tribunal sobre matéria relevante em um processo – para influenciar o julgamento.
Na reunião mais recente do CNS, foi debatida também a possibilidade de entrada do Conselho na ADI. Foi possível perceber certa tensão entre os participantes presentes naquele dia 9. Parte defende que a entidade entre imediatamente como amicus curiae, mas foi deliberado, ao final, que se esperaria a próxima reunião ordinária (em 5 e 6 de novembro) para tomar a decisão. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, estará presente para debater com os conselheiros.
A posição do Ministério da Saúde, segundo notas publicadas em seu site, é que o novo Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos “vai ampliar as parcerias” e acelerar processos. Nas palavras de Padilha, “Muitas vezes, uma universidade ou um instituto quer fazer um projeto de avaliação de medicamento e, hoje, no Brasil, isso demora em média até seis meses, em alguns casos, até um ano, para aprovação pelas várias etapas do sistema atual. Esse sistema foi criado nos anos 90 e deu conta da necessidade de se ter um sistema de ética em pesquisa no país. Mas, com esse novo instrumento aprovado pelo Congresso Nacional e regulamentado pelo presidente, estamos modernizando esse sistema para encurtar os prazos de aprovação”.
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