Big Pharma: um maremoto no Norte Global

Trump busca baratear preço dos medicamentos, por meio de incentivos para fábricas voltarem aos EUA. Em seguida, farmacêuticas com base na Europa impõem exigências perigosas para não abandonar continente. Por que essa disputa afetará o mundo inteiro?

Créditos: Alexia Barakou/Investigate Europe
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No dia 15 de abril, Donald Trump assinou mais uma de suas Ordens Executivas (OE), cujo objetivo declarado é ampliar esforços, já tentados em seu primeiro mandato, para reduzir os preços dos medicamentos prescritos. O título da OE (Presidente Donald J. Trump anuncia medidas para reduzir os preços de medicamentos prescritos) incorre em erro, na medida em que trata também de medicamentos isentos de prescrição. No meu ponto de vista, a medida parece não ir muito além de ser uma tentativa de reagir a uma anunciada queda de popularidade de seu governo. Ao longo de sua leitura, por vários motivos, nada sugere algo além dessa intenção.

A ordem executiva trata da ampliação de acesso a medicamentos que, embora de grande consumo pela população, estão longe de atingir o núcleo do interesse comercial da Big Pharma. Genéricos, similares, etc. Produtos nada parecidos com imunoterapias avançadas, oncológicos de última geração e medicamentos para doenças raras, por exemplo. Mas, mesmo com relação àqueles medicamentos de consumo massivo, a ordem de Trump não diz como é que as medidas que propõe contornam a gigantesca dependência de importações desses produtos (acabados ou mesmo de Ingredientes Farmacêuticos Ativos – IFAs) da Índia e, principalmente, da China.

Estima-se que metade ou mais dos genéricos e similares consumidos nos EUA são importados dos dois países asiáticos. É claro que os EUA têm capacidade tecnológica para produzir localmente todos esses medicamentos. O que não têm, atualmente, é capacidade produtiva, nem interesse comercial – isto é, empresas que os produzam nos EUA. O espírito dessa OE é estimular a política de reshoring, (transferência de fábricas para o território dos EUA). Mas, na realidade, o resultado desse reshoring é muito controverso e, mesmo que tenha algum sucesso, levará bastante tempo – certamente mais do que os quatro anos de Trump como presidente.

Além disso, e muito importante, se as importações de IFAs e acabados não forem isentas das tarifas impostas por ele, os preços dos remédios vão aumentar bastante e não diminuir. Aliás, como comento em seguida, as multinacionais com unidades produtivas na Europa já estão se mexendo para enfrentar a nova conjuntura que se apresenta, solicitando afrouxamento da regulação de medicamentos no território da UE, com muito provável impacto negativo para os usuários.

Farmacêuticas exigem mudanças para não deixar Europa

“Com as tarifas iminentes de Trump, as empresas farmacêuticas exigem mudanças para permanecer na UE.” Sob este título, o blog Fierce Pharma, noticia propostas empresariais de ajustes na regulação europeia com vistas a poderem resistir ao tarifaço de Trump. Em outros termos, para poderem resistir ao reshoring. As empresas demandantes são Amgen, AstraZeneca, Biogen, Bristol Myers Squibb, Eli Lilly, Gilead Sciences, GSK, Merck & Co., Novartis, Novo Nordisk, Pfizer, Roche, Sanofi e Takeda, todas multinacionais com fábricas na UE, a maioria de matriz norte-americana e todas negociando suas ações na Bolsa de Nova Iorque. As empresas na UE alegam que a política de reshoring custaria algo como 103,2 bilhões de euros até 2029, a menos que a Europa implemente mudanças políticas “rápidas e radicais” na regulação. E quais seriam os ajustes regulatórios demandados?

1) Repensar suas políticas de precificação de medicamentos e propiciar um ambiente comercial mais favorável para medicamentos inovadores. As contribuições da indústria para os gastos públicos com medicamentos teriam aumentado de 15% para 22% nos últimos anos, uma tendência que sugere que a indústria vem suportando o aumento dos gastos vinculados à introdução de novos medicamentos. Em termos mais claros, liberar preços de medicamentos.

2) Simplificar as regras para o desenvolvimento e registro de medicamentos e possibilitar um modelo coordenado e de aprovação única para encurtar o processo de ensaios clínicos multinacionais. Atualmente, ensaios clínicos de fase 3 devem ser realizados em vários países com vistas a garantir a avaliação da efetividade do produto em populações étnica e geneticamente diferentes.

3) Alteração das regras regulatórias relacionadas à propriedade intelectual. Isso incluiria o aumento do prazo de proteção de dados para dez anos (tempo em que as agências reguladoras não divulgam os dados relacionados ao desenvolvimento dos produtos para concorrentes), o que significa mais dois anos adicionais de proteção de mercado, bem como o aumento da exclusividade do mercado de medicamentos para doenças raras dos atuais 10 anos para 12 anos.

4) Eliminação de uma nova taxa de tratamento de águas residuais que as empresas na UE devem pagar e que impõe aos fabricantes de produtos farmacêuticos e cosméticos a responsabilidade de eliminar micro poluentes nos efluentes industriais.

A importância do setor farmacêutico à Irlanda

Aqui, merece um comentário a situação de um pequeno país europeu que, neste século, tornou-se o principal sítio de instalação de unidades produtivas de grandes multinacionais farmacêuticas e, provavelmente, o principal alvo dessa movimentação da Big Pharma na UE – a República da Irlanda. Principalmente devido a uma muito favorável política tributária, praticamente todas aquelas empresas mencionadas acima possuem instalações fabris por lá, conforme a figura abaixo.

A Irlanda exportou 100 bilhões de euros em medicamentos em 2024, pouco menos da metade para os EUA. Dentre essas exportações estão medicamentos de alto valor agregado, estes sim, situados no centro do negócio da Big Pharma. Exportações de produtos farmacêuticos representam perto de 30% do PIB da Irlanda. No meu ponto de vista, caso a Irlanda não seja excluída do pagamento das tarifas trumpianas, ela tende a se tornar um país inviável. Penso que aí é que vai ocorrer a principal queda de braço entre a Big Pharma e Trump. Bem mais importante do que a demagógica OE de 15 de abril.

Créditos: RTE

As fábricas de medicamentos situadas na Europa podem ter razão em tentar se defender do maremoto, mas essas quatro medidas gerais, sendo aprovadas, terão um grande perdedor: as pessoas que consomem medicamentos, não apenas na Europa, mas pelo mundo afora. Liberalizar as condições de registro de medicamentos (o que significa diminuir a segurança no seu uso), diminuir a concorrência (o que significa aumentar preços) e atenuar obrigações sanitárias sob a responsabilidade das empresas, talvez sejam ganha-ganha para alguns, perde-ganha para outros, mas sempre perde-perde para a cidadania e para os sistemas públicos de saúde. E, pelo lado da ordem executiva de Trump, o aumento do preço dos medicamentos também será perde-perde para a sociedade em geral.

Quem perde?

Termino com um comentário sobre a abordagem global do maremoto Trump. É que até agora o debate tem estado apenas no plano macroeconômico e quando chega à microeconomia fica centrado nos impactos sobre as empresas. Entretanto, será preciso avaliar, em cada caso, quem ganha e quem perde nos ajustes provocados por ele. Haverá casos em que os atritos entre o mar e a rocha farão sofrer os mariscos, como nos dois episódios que abordei neste texto.

Tanto as disposições da OE de Trump quanto a movimentação da Big Pharma na Europa, caso tenham suas determinações/reivindicações implementadas, trarão impactos negativos para as populações que consomem medicamentos e outros produtos – embora seja muito pouco provável que isso aconteça nos dois casos. E não tenhamos ilusões de que este é um assunto apenas do Norte Global. Chegará aqui, tenhamos certeza disso.

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