Big Pharma: Trump enfrentará a China?

Todo o desenho da grande indústria de medicamentos foi construído nos EUA. Mas suas empresas firmaram, nos últimos anos, fortes parcerias com a China. Presidente quer romper tais vínculos, em estratégia que atinge interesse de corporações poderosíssimas

Créditos: Lauren Walker/Truthout
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“… A política de investimento da América é crítica para a nossa segurança nacional e econômica. Acolher o investimento estrangeiro … será uma parte fundamental da Idade de Ouro da América… No entanto, o investimento a todo custo nem sempre é do interesse nacional. Certos adversários estrangeiros, incluindo a República Popular da China (RPC), dirigem e facilitam sistematicamente o investimento em empresas e ativos dos Estados Unidos para obter tecnologias de ponta, propriedade intelectual e alavancagem em indústrias estratégicas…”(1)

Em tradução livre, trecho do memorando presidencial sobre a política de investimentos dos EUA (21/02/2025)

1. O que se conhece hoje sob o nome de Big Pharma é um processo de ajuste político, econômico, tecnológico e produtivo da indústria farmacêutica ocorrido a partir da década de 1990, nascido nos EUA e exportado para outros países grandes produtores de medicamentos localizados no Hemisfério Norte. Mesmo empresas cuja matriz está em outro país, mas que negociam suas ações na Bolsa de Nova York.

A transformação da indústria farmacêutica em Big Pharma tem seu determinante essencial no aprofundamento do processo de financeirização das relações econômicas mundiais operado sob a liderança dos EUA, em particular a partir da instituição do unilateralismo, após a derrocada da União Soviética. A Big Pharma é integralmente financeirizada. Além disso, também contribuiu de modo significativo para o desenvolvimento da Big Pharma o processo de harmonização global do regime de propriedade intelectual liderado pelos EUA e que culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. A Big Pharma foi uma das principais beneficiárias dessa harmonização (2).

2. Dentre todas as intervenções que Trump vem realizando internamente, para o tema deste texto destacam-se as que afetam as políticas de ciência, tecnologia e inovação e também pela regulação do mercado de medicamentos e outros produtos industriais de saúde. São elas a Food and Drug Administration (FDA), o National Institutes of Health (NIH) e uma agência criada recentemente (2022) nos marcos do NIH, embora independente, a Advanced Research Projects Agency for Health (ARPA-H). É com elas que a Big Pharma interage, direta e permanentemente com a FDA e algo mais indiretamente com as demais.

Vale ainda mencionar outra agência cuja relevância está menos na sua relação com a indústria farmacêutica, mas que é relevante no plano da política de Trump com o sistema ONU e, em particular com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Trata-se do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC). O tratamento dado por Trump à OMS tem como um de seus argumentos o suposto fato de que ela, além de incompetente e gastadora, está atualmente governada pela China, o que é falso. Pelo contrário, a OMS é cada vez mais governada pelas doações governamentais voluntárias dos EUA (além da contribuição prevista estatutariamente) e da filantropia predominantemente norte americana. E, no plano político, há muitos anos as empresas da Big Pharma detêm grande poder político nos colegiados da OMS, em particular nos debates sobre propriedade intelectual.

Uma expressão atual desse poder está na discussão de um Acordo Mundial Sobre Pandemias, quase inteiramente paralisado pela resistência da Big Pharma quanto a itens relacionados à propriedade intelectual e ao compartilhamento de informações e de amostras de patógenos. Outra questão bem atual é a dúvida sobre a participação do CDC no fórum técnico internacional que anualmente discute a escolha de quais cepas de vírus devem constar da vacina sazonal contra a gripe. Esta decisão é compartilhada pela OMS para todos os países que fabricam a vacina. Essas ações de Trump junto ao CDC têm levantado em todo o mundo um temor do impacto que podem vir a causar, particularmente nos países de renda baixa do Sul Global.

As agências de fomento científico e tecnológico ampliaram grandemente suas relações com a Big Pharma a partir da revolução biotecnológica que vem se desenvolvendo desde os anos 1980. A partir da inauguração de uma visão da pesquisa científica que foi chamada de pesquisa translacional, boa parte das aquisições científicas no campo biomédico foi se tornando cada vez mais funcional e, atualmente, essencial para a indústria farmacêutica. O movimento que gerou a noção de pesquisa translacional nasceu no NIH, pela descoberta feita pela própria agência de que a quantidade de recursos financeiros destinados por ela aos grupos de pesquisa não estava se traduzindo em lançamento de novos produtos no mercado pela indústria (3).

A ideia de uma pesquisa translacional estimulou mudanças no entendimento sobre o papel das universidades, cada vez mais se afastando do modelo de ‘universidades de pesquisa’, nascido nos EUA, e abraçando o rótulo de ‘universidades empreendedoras’, com uma proliferação de microempresas (startups), cujo destino é serem compradas pela Big Pharma sempre que um produto promissor desenvolvido por elas obtém um registro no FDA.

Pelo lado da indústria, foi necessária uma adequação de seus processos de desenvolvimento e produção no sentido de absorverem uma nova rota tecnológica que se afastava totalmente do mundo da química fina – a rota biotecnológica. Isso foi conseguido com a absorção, pela Big Pharma, de grande parte da indústria de vacinas, processo hoje já consolidado. Atualmente, as principais produtoras mundiais de vacinas pertencem a ela. Além da absorção dessa nova rota, as farmacêuticas operaram uma série de modificações em sua operação, todas elas com o objetivo de diminuir risco e aumentar receitas financeiras.

3. Nesse cenário, até este momento, Trump tem atuado quase exclusivamente na ponta da pesquisa. Diretamente nas agências de fomento, seja fazendo bullying com a pauta ESG (Environmental, Social and Governance, ou “Ambiental, Social e de Governança”) e as ‘enxugando’ violentamente em termos de recursos humanos, como parte da política de Estado mínimo, sob a capa de melhorar sua eficiência. Ainda não se sabe qual o impacto essa política terá no orçamento do NIH no ano que vem. Atualmente, ele vale cerca de 40 bilhões de dólares. Importante notar que ainda no governo Biden, com o apoio dos dois partidos, começou a ser discutida no Congresso uma reforma do NIH que, na minha leitura, destinava-se a reorientar a agência em face da disputa geopolítica com a China e que, a contar com os termos da epígrafe que abre este texto, tende a ser ainda mais radicalizada neste governo Trump.

No que se refere ao ARPA-H, cujo orçamento é muito pequeno quando comparado ao do NIH (cerca de 1,5 bilhão de dólares) não há muita informação, exceto a troca de seus executivos. Aqui, vale um breve comentário sobre essa família de agências que trata de ‘projetos avançados’ (defesa, energia e saúde). Elas foram criadas para apoiar projetos mais diretamente relacionados aos interesses do Estado norte-americano, havendo grande inclinação para tecnologias duais entre os projetos que apoiam.

4. Os interesses da Big Pharma nos Estados Unidos são defendidos pela Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PhRMA) que reúne não apenas as empresas cuja matriz é norte-americana. Em 24 de fevereiro passado, representantes dessa organização se reuniram formalmente pela primeira vez com Trump e dentre suas principais reivindicações estavam a revogação da ‘Lei de Redução da Inflação (IRA)’ que permite uma redução de preços de alguns medicamentos muito utilizados e a atenuação das medidas antitruste, ambas estabelecidas pelo governo Biden.

Além disso, reivindicaram ajustes no funcionamento (menos burocracia) e em algumas regras do FDA, como um aumento do período de exclusividade de mercado para medicamentos para doenças raras e contra alguns tipos de câncer. De acordo com o registro da imprensa, além de não se comprometer com elas, Trump advertiu que aplicará tarifas aumentadas de importação a menos que as empresas tragam suas unidades produtivas de volta aos EUA, após duas décadas de investimentos no exterior, primeiro na Índia e depois na China, realizadas na busca por mão de obra mais barata e benefícios fiscais (4).

5. A corrente de comércio de medicamentos entre a China e os EUA vem aumentando consistentemente nos últimos anos tendo os EUA um pequeno superavit comercial. No lado das importações pelos EUA, representa em valor um percentual relativamente pequeno do total das importações de medicamentos (cerca de 6%). Entretanto, em termos de volume de produtos importados respondem por um percentual bem maior. Estima-se que cerca de metade dos medicamentos genéricos no mercado norte americano vem da Índia e da China e, atualmente, a maior parte dos medicamentos exportados pela Índia foram fabricados total ou parcialmente na China.

Há vários anos o governo federal nos EUA manifesta preocupação com a relação entre as estratégias da Big Pharma e o atendimento das necessidades de medicamentos pela população. Essas estratégias são voltadas para obter o máximo de receitas financeiras e, portanto, cada vez mais se desinteressam em investir em medicamentos que fornecem menos receitas, mas são de importância crucial para a população (5). Ilustra isso saber que cerca 90% do mercado de medicamentos nos EUA, quando medido em unidades farmacêuticas (não em valor), é composto por medicamentos genéricos. Esta situação, que vem se desenvolvendo há vários anos, levou a que o mercado americano desses medicamentos se voltasse, primeiro para a Índia e, mais tarde, para a China. Na relação do governo Trump com a China no campo dos medicamentos, esta é a equação a ser enfrentada.

6. A proposta de Trump, que não tem sido apenas para a indústria farmacêutica, é a estratégia de ‘reshoring’, isto é, fazer com que as manufaturas norte americanas sediadas na China voltem aos EUA, sob pena de arcarem com tarifas de importação. Foi isso que Trump falou aos representantes da Big Pharma na reunião que tiveram no final de fevereiro. Mas o fato é que essa estratégia, além de lenta, fará com que os preços dos medicamentos aumentem substancialmente. Difícil imaginar uma solução para esse problema.

Mas o problema não está localizado apenas nessa fatia do mercado que se preocupa com o acesso de milhões de pessoas aos medicamentos. Em setembro de 2024 (governo Biden), foi aprovada nos EUA uma Lei de Biossegurança, que mira essencialmente em biotecnologia e nas relações entre pequenas empresas norte-americanas ‘de ponta’ – startups e algumas um pouco maiores – com empresas chinesas. Neste caso, o alvo não são os medicamentos para milhões, mas é o coração da Big Pharma. Medicamentos biológicos, muito caros e, a maioria deles, destinados a doenças raras, alguns tipos de cânceres e imunoterapias.

A lei proíbe que empresas norte americanas que recebem fundos ou que possuem contratos com o governo façam negócios com um conjunto de empresas biotecnológicas chinesas consideradas suspeitas. Por exemplo, grants do NIH, do ARPA-H e contratos diretos com ministérios federais. Segundo a lei, o encerramento dessas relações deve acontecer até 2032. Não será surpresa se Trump revise a lei para antecipar este limite de tempo. Para dar uma ideia do envolvimento das empresas norte americanas com chinesas, 60 delas declararam colaborações com apenas uma das chinesas na lista das proibidas (6).

O mercado mundial de medicamentos (em valor) tem os EUA como seu principal ator, com mais de 40% desse mercado. Além disso, com a exceção das tecnologias de defesa e das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação), é o segmento industrial mais intensivo em P&D no mundo. Impossível que Trump não dedique a ele uma parte importante de suas preocupações. E a disputa com a China está no centro da nova geopolítica norte americana. No entanto, como tentei mostrar neste texto, as conexões entre a Big Pharma e a indústria chinesa tornaram-se intensas e complexas nos último dez ou pouco mais anos. Desenrolar este novelo não será nem simples nem fácil.


Referências

  1. Presidential Actions. America First Investment Policy. February 21, 2025 https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/02/america-first-investment-policy/
  2. Guimarães, R. – Sobre a Farma e a Big Pharma. Cien Saude Colet 2025; 30:e17082024. https://www.scielo.br/j/csc/a/mwkzrGJ9mrB9YR5f56qtNhK/?format=pdf&lang=pt
  3. Guimarães, R. – Pesquisa Translacional: uma interpretação. Ciência & Saúde Coletiva, 18(6):1731-1744, 2013. https://www.scielo.br/j/csc/a/xYQKdDNpz6NkBrykdqxFqnz/?format=pdf&lang=pt
  4. Trump Threatens Big Pharma With Tariffs—Unless They Reshore Manufacturing: Bloomberg https://www.biospace.com/policy/trump-threatens-big-pharma-with-tariffs-unless-they-reshore-manufacturing-bloomberg
  5. Guimaraes, R. – A Big Pharma, uma invenção norte-americana. Outras Palavras, 2024 (publicado originalmente em versão algo modificada no fascículo intitulado ‘O Poder Norte americano’ do Observatório Internacional do século XXI). https://outraspalavras.net/outrasaude/a-big-pharma-uma-invencao-norte-americana/
  6. Disputa entre EUA e China chega à indústria farmacêutica e preços dos medicamentos podem subir https://investnews.com.br/the-wall-street-journal/disputa-entre-eua-e-china-chega-a-industria-farmaceutica-e-precos-dos-medicamentos-pode-subir/

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