Bets: por que proibir só para o Bolsa Família?
“Indústria de jogos” causa problemas sociais há décadas, e apostas online elevaram problema a novo patamar. Mas se têm potencial altamente viciante para todos, por que barrar apenas à fatia mais pobre? É preciso que haja regulação rígida – sem exclusão social
Publicado 30/04/2025 às 09:50

Qualquer país contemporâneo é cheio de contradições no enfrentamento de crimes e sobretudo de contravenções. Estamos sempre atravessados pelas diferenças na regulação dos comportamentos que devem ser banidos ou aceitos pela sociedade. A permissividade ou restrição de comportamentos está diretamente associada a quanto cada grupo social dispõe de poder político, recursos econômicos e prestígio social.
O Brasil nunca soube lidar com os jogos de azar. Desde muito, pesam sobre a “indústria dos jogos” a justa acusação de estarem por vezes associados ao crime organizado e com frequência produzirem a ruína financeira de seus adictos.
Até 1946, os cassinos operavam legalmente. Os da Urca, no Rio, e de Araxá, em Minas Gerais, eram símbolos de glamour e animada vida cultural. Neles, muitos ricaços perdem os bens que herdaram ou construíram, no feltro que recobre as mesas de roleta, de dados e de carteado. Não obstante, nos tempos atuais, temos jogos de azar legalizados, como as loterias, e ilegais, como o jogo do bicho e casinos clandestinos. Em dezembro de 2024, as loterias arrecadaram mais de R$ 24,6 bilhões. O Senador Irajá (PSD-TO) é autor do projeto do PL 2.234/2022, que tramita no senado, que autoriza o funcionamento de cassinos e bingos, legaliza o jogo do bicho e permite apostas em corridas de cavalos. Ele estima que a legalização dessas atividades movimentaria mais R$ 100 bilhões ao ano.
O jogo do bicho é uma poderosa instituição presente em todo país. Suas bancas de aposta são visíveis, os bicheiros são figuras públicas e sua influência política é, em muitos estados, gigantesca.
Em 2018, foram regulamentadas as apostas online no Brasil. O ambiente digital reconfigurou os jogos de azar, já que sua ação é transfronteiriça, a possibilidade de jogar é onipresente em qualquer equipamento digital e há um batalhão de celebridades e subcelebridades incentivando as apostas digitais. A propaganda relacionada ao futebol é crescente e avassaladora e quase todos os países do mundo estão aflitos para encontrar uma forma adequada para regular a sua ação.
A adição em apostas eletrônicas é, de fato, um dos flagelos do mundo contemporâneo. Em agosto de 2024, Lucy Tran e colegas publicaram, na revista científica Lancet Public Health, um estudo que estima o tamanho global do problema. Segundo os autores, a prevalência estimada dos que apresentam problemas ou poderão adoecer devido às apostas estaria assim distribuída de acordo com as diversas modalidades: 15,8% dos que participam de cassinos online, 10,0% dos apostadores em jogos de cassino, 8,6% nos que “fazem a fé” nos jogos de azar online e 8,9% nas apostas esportivas.
Em 24 de setembro de 2024, o Banco Central (Bacen) divulgou um pequeno estudo sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores. O estudo foi realizado por solicitação do senador Omar Aziz (PSD-AM) com o objetivo de descrever o tamanho do mercado de jogos de azar e apostas online no Brasil.
Embora se tratasse de um tipo de estudo de pouco fôlego e sem grandes pretensões, a referência aos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF) ganhou enorme destaque na mídia, abrindo caminho para especulações quanto à necessidade de intervenção estatal na forma em que os beneficiários realizam suas despesas. Muitos chegaram a proclamar que o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social impedisse que os beneficiários dos programas Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada fossem impedidos de usar os recursos repassados para as apostas digitais.
Apesar das proclamações nesse sentido, o contexto técnico e jurídico não permitia tal bloqueio. Os técnicos da casa sabiam muito bem que os beneficiários não poderiam ser impedidos de transferir os seus recursos financeiros para onde bem entendessem depois de recebê-los. Ainda assim o fantasma da multidão de pobres irresponsáveis voltou a assombrar muita gente.
Em novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal determinou que o governo impeça o uso de recursos provenientes de transferência de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), em apostas. Essa decisão impeliu o governo a buscar meios para o cumprimento da decisão. Trata-se de uma busca que tem tudo para dar errado. Ela continua inviável do ponto de vista técnico. Uma proibição dessa magnitude é uma violência contra o direito de cidadania dos mais pobres.
Os números de beneficiários das principais transferências de renda do Governo Federal são expressivos: 20,5 milhões de famílias recebedoras de o Programa Bolsa Família e 6,26 milhões de indivíduos de o BPC. Notem que os beneficiários do Bolsa Família são incentivados buscar renda através do trabalho. Logo, não dependem apenas dos valores que lhes são repassados. Chegou a ser especulado que o Ministério da Fazenda poderia informar as operadoras de jogos os números dos CPF dos beneficiários como forma de coibir seu acesso aos jogos.
Uma intervenção nesta escala carece de base legal. Estaríamos diante de uma situação em que o Estado agiria em parceria com o mercado de apostas para impedir que os pobres “fizessem mal uso dos recursos públicos que lhes são repassados”. Ocorre que, inevitavelmente, se estaria coibindo o uso dos recursos que foram obtidos pelo seu trabalho. Além disso, os dados compartilhados estariam mais vulneráveis a vários tipos de fraude, como: empréstimos bancários, abertura de empresas fantasmas, consórcio de veículos e toda uma sorte de falcatruas apoiadas no uso indevido de dados alheios.
Do ponto de vista moral, passaremos a tutelar as finanças de mais de 50 milhões de pessoas em uma condição que se contrapõe à política de proteção social que tornou este país admirado em todo o mundo. Se o nosso projeto de país é fundado na inclusão, solidariedade e geração de oportunidades para todos, tratar um quarto da população brasileira como incapazes de gerir suas finanças apenas porque são mais pobres, é reiterar a velha exclusão social e abdicar do enfrentamento do problema real, que demanda mais regulação no mercado de apostas para qualquer que seja o público.
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