Barragens: uma alternativa de reparação quilombola
As Oficinas Territoriais Quilombolas são parte do programa de acordo com comunidades atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão, em MG. Estão sob responsabilidade do SUS e permitem construir propostas concretas a partir de vivências territoriais
Publicado 05/08/2025 às 13:09 - Atualizado 05/08/2025 às 13:10

Título original: O SUS na Reparação às Comunidades Atingidas por Barragens: Do Chão do Quilombo ao Plano de Ação
Quando a Barragem de Fundão, em Mariana (MG) se rompeu em 5 de novembro de 2015, a lama de dejetos e minério de ferro correu por um vasto território. Varreu com sua força destrutiva casas, quintais, animais e pessoas, destruindo vidas inteiras, sonhos e futuros. Após contar as perdas materiais e chorar os mortos, iniciou-se o processo de retomada e reconstrução da vida das famílias que sofreram este grave dano. O Sistema Único de Saúde é um dos pilares fundamentais desta reconstrução. Vamos falar um pouco desta história, na qual a resiliência de um povo forte faz brotar a esperança de onde tudo foi arrancado. A ela se soma a força generosa e solidária do SUS, que se torna um dispositivo fundamental na reparação dos danos.
O rompimento da Barragem do Fundão deu início ao maior crime socioambiental da história do Brasil. Sob responsabilidade da Samarco, Vale e BHP Billiton, o desastre atingiu toda a bacia do Rio Doce e o litoral capixaba. Inicialmente, a reparação dos danos esteve sob gestão da Fundação Renova, criada pelas empresas responsáveis. No entanto, em 25 de outubro de 2024, um novo marco legal foi instituído: a União, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, o sistema de justiça e as mineradoras firmaram um novo acordo de reparação às comunidades tradicionais atingidas pelo desastre. Transferiram a responsabilidade das ações de saúde diretamente ao Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da criação do Programa Especial de Saúde do Rio Doce (PESRD), previsto no Anexo 8 do referido acordo.
Mais do que uma mudança de gestão, esse novo modelo marca a transição de uma fundação privada para uma política pública estruturada com investimento público, corresponsabilidade federativa e participação efetiva das comunidades atingidas. Nesse contexto, o Ministério da Saúde iniciou, em julho de 2025, as Oficinas Territoriais Quilombolas do PESRD em municípios mineiros atingidos. A primeira etapa percorreu Marliéria, Raul Soares, São Domingos do Prata, Mariana, Santana do Paraíso, Belo Oriente, Naque e Periquito, com ativa participação de comunidades como Celeste, Bernardos, Mumbaça, Barro Preto, Santa Efigênia, Achado dos Pretos, Esperança, Ilha Funda, entre outras.
As oficinas foram apoiadas por assessorias técnicas independentes como a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social – AEDAS, Cáritas Diocesana de Itabira e a Associação Comunitária de Santa Efigênia e Adjacências, com colaboração de órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério da Igualdade Racial, a Secretaria de Saúde de Minas Gerais, gestores locais, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). A programação incluiu visitas aos serviços de saúde utilizados pela população quilombola e momentos de escuta coletiva estruturados em três eixos: apresentação do PESRD, detalhamento das ações previstas e construção de cartografias sociais com priorização comunitária.
As comunidades relataram dificuldades persistentes no acesso à saúde, desde barreiras geográficas até a ausência de estruturas adequadas e culturalmente sensíveis. No entanto, as oficinas também revelaram propostas concretas, construídas a partir dos saberes e vivências quilombolas, como os “quintais de cuidado” (Santa Efigênia, Embaúbas e Engenho Queimado), que integram práticas de saúde com plantas medicinais, rodas de saberes e ações coletivas. Propuseram ainda a inclusão de representantes quilombolas nos sistemas de regulação do SUS e a criação de espaços de apoio que acolham práticas culturais de cura, como congados, capoeira e benzimentos.
Essas proposições não são complementares: são centrais à efetivação de um SUS que reconhece o território como espaço legítimo de produção de cuidado. A cartografia social realizada nas oficinas é expressão de um projeto político de reconstrução do SUS a partir das experiências concretas e das prioridades das comunidades quilombolas. Cada mapa, rota ou memória compartilhada é, simultaneamente, denúncia histórica das opressões ao povo negro, e horizonte de transformação.
A legitimidade dessas ações encontra amparo em importantes marcos legais e políticos. O Decreto nº 4.887/2003 reconhece os direitos territoriais dos quilombolas; a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, assegura o direito à consulta prévia, livre e informada; e o Decreto nº 6.040/2007 institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No campo da saúde, o autorreconhecimento é critério legítimo para acesso às políticas públicas, conforme estabelecido pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Portaria nº 992/2009), a Política Nacional de Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (Portaria nº 2.866/2011), e a emergente Política Nacional de Saúde Integral das Populações Quilombolas, ainda em fase de instituição.
Todas essas normativas convergem para um princípio fundamental do SUS: a equidade, previsto na Constituição Federal (art. 198, II) e regulamentado pela Lei nº 8.080/1990. Isso significa alocar recursos conforme as necessidades específicas de cada grupo, assegurando que os mais vulnerabilizados, como os quilombolas atingidos pelo desastre, estejam no centro das prioridades do Estado. Como afirmou o pensador quilombola Nego Bispo: “a gente não quer resistir; a gente quer transmutar”. Isso exige que o SUS se curve ao território, e não o contrário.
A próxima etapa do processo envolve a pactuação entre União, Estado e Municípios para definir responsabilidades e garantir que as ações priorizadas pelas comunidades sejam efetivamente implementadas. Em agosto, as oficinas serão estendidas a novos municípios de Minas Gerais e ao Espírito Santo, consolidando um ciclo de construção de políticas públicas enraizadas nos territórios.
Por fim, é imprescindível ampliar e readequar os espaços de participação social ao longo da execução do novo acordo. As comunidades atingidas, mesmo excluídas da mesa de negociação, seguem articuladas com suas Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) e reivindicam instâncias reais de deliberação, para além dos conselhos municipais de saúde. Reivindicam, sobretudo, que sua voz seja ouvida e respeitada na definição de um SUS antirracista, enraizado, interseccional e comprometido com a reparação integral e justa.
As Oficinas Territoriais Quilombolas são um gesto político e pedagógico de reconstrução das políticas públicas desde o território, em que o SUS se reinventa ao escutar, acolher, co-produzir e planejar com as comunidades. Trata-se de um processo vivo, enraizado nos saberes ancestrais, nas experiências coletivas e na dignidade dos povos quilombolas, que não querem apenas ser consultados, mas protagonizar a construção das políticas de cuidado. Ao contrário de respostas verticais e padronizadas, as oficinas afirmam que o cuidado em saúde deve nascer do chão onde a vida resiste e floresce (com quintais de cuidado, rodas de saberes e práticas culturais de cura). Nesse contexto, a equidade, princípio constitucional e legal do SUS se manifesta como dever inadiável de enfrentar desigualdades históricas e reparar os efeitos desproporcionais dos desastres sobre populações vulnerabilizadas. O que está em curso no Rio Doce é mais que um programa reparação em saúde: é a chance de inaugurar uma política de reparação integral em saúde que reconhece, fortalece e sustenta o SUS como política pública viva, coletiva e antirracista.
Brasília e Niterói, 5 de agosto de 2025
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