Atenção Primária: o presente e o futuro do SUS
Censo das UBS ajuda a enxergar o que é necessário para fortalecer a “porta de entrada” do sistema de saúde. Alguns de seus desafios: ampliar a integração, garantir a participação social, assegurar dignidade aos trabalhadores e buscar um orçamento mais robusto
Publicado 25/08/2025 às 16:11
Lígia Giovanella em entrevista a Gabriel Brito, para a série SUS 35 anos
O ataque do governo estadunidense ao programa brasileiro Mais Médicos, por meio do cancelamento de vistos de pessoas envolvidas com sua criação, são exemplos práticos de como cada país entende saúde e democracia. É o que afirmou Lígia Giovanella, em entrevista ao Outra Saúde na qual tratou da Atenção Básica e sua importância para o futuro do SUS. “É todo o contraste do sistema de saúde dos Estados Unidos, o país com maiores gastos no setor do mundo (17% do PIB), e que mesmo assim deixa uma parte da população descoberta”, refletiu.
Esta é uma das sínteses que se extrai da entrevista que compõe a série 35 anos do SUS, que culminará em um seminário na Fundação Escola de Sociologia e Política nos dias 18 e 19 de setembro. Ao refletir sobre o presente, Giovanella analisou o SUS após três décadas e meia de sua criação, em especial na Atenção Primária à Saúde, área onde tem larga experiência como pesquisadora. Ela participou do grupo coordenador do Censo Nacional das Unidades Básicas de Saúde (UBS), foco central da entrevista concedida à série.
“[O Censo] mostrou os avanços, fragilidades e desafios, com as diversidades e desigualdades regionais. Outro aspecto muito importante é a integração das Unidades Básicas com a atenção especializada e o fato de 90% das unidades já terem seus prontuários digitalizados”, analisa.
Dentre outros números, a pesquisa mostrou avanços na quantidade de médicos pelo país e, principalmente, do crescimento da Estratégia Saúde da Família (ESF), presente em 67% das unidades. Considerada essencial para a realização dos princípios do SUS, não só oferece o atendimento clínico como também leva sua ação para dentro das próprias comunidades.
“São muitos os estudos que mostram os efeitos positivos do aumento da cobertura sustentada na Estratégia Saúde da Família, com impactos e efeitos positivos na saúde da população. Está demonstrado que diminui a mortalidade infantil, que há efeitos sinérgicos para populações muito vulnerabilizadas, no acesso ao Bolsa Família…”, enumerou.
Em sua visão, o governo Lula conseguiu retomar padrões mínimos de investimento em saúde e os resultados são palpáveis. Mas destaca que ainda há fragilidades profundas nas UBSs, como a carência de equipamentos essenciais para uma atenção resolutiva e as gritantes desigualdades regionais na estrutura e organização das UBS.
Dois desafios críticos foram postos em evidência: a integração do sistema e a participação social. Apesar da ampla adoção de prontuários eletrônicos (90%), a integração desses registros com a rede especializada é muito baixa, inferior a 20%, o que dificulta a continuidade do cuidado. Paralelamente, a participação social, pilar do SUS, mostra-se frágil: apenas 36% das UBS possuem um conselho local de saúde. Ela também menciona preocupações com as condições de trabalho (haverá um Censo de trabalhadores da saúde) e com o financiamento estatal.
“Eu não defendo que todas as pessoas que trabalham no SUS devam ser servidores públicos de carreira, mas todos devem ter relações de trabalho decentes. Sou estudiosa das reformas da saúde na América Latina e nenhum país tem resultados mais positivos que o Brasil”, afirma.
Dessa forma, Giovanella acredita haver subsídios suficientes para prosseguir na “utopia de construir um sistema público universal de saúde, com financiamento predominantemente público, orientado por uma Atenção Primária abrangente, integral, no modelo da saúde da família, que é territorial, comunitária, bem integrada à rede de serviços de boa qualidade. E temos riqueza suficiente para duplicar os nossos investimentos de 4% para 7% ou 8% PIB, nível aplicado por outros países que têm sistemas universais de saúde”, conclui.
Mais Médicos e o ataque de Trump
A conversa com Giovanella tratou, ainda, de recuperar a memória do programa Mais Médicos, na época em que se valeu de um convênio de serviços médicos com o Estado cubano. Neste sentido, cabe destacar o que realmente interessa para a população: o Mais Médicos ampliou o SUS no Brasil.
“Precisa ter clareza de que os cubanos nunca ocuparam o lugar de um médico brasileiro. De forma geral, principalmente nas primeiras levas, eram generalistas com muita experiência em outras missões do exterior, o que permitiu a criação de uma relação totalmente diferenciada com a população”, contextualizou.
Giovanella representa uma memória viva da história da saúde brasileira, inclusive antes de o país criar o sistema público gratuito e universal. Sua experiência pessoal, retratada no documentário Lages, a força do povo, é um belo registro das sementes plantadas na sociedade que fizeram germinar o atual sistema de saúde brasileiro.
“Em 1980, nós tínhamos um programa de saúde comunitária que era realmente ‘postinhos de saúde’, iniciativa da prefeitura em colaboração com a Associação de Moradores. Havia uma atendente de enfermagem, o médico ia uma vez por semana… Nós somos de um tempo em que, antes do SUS, quem não tinha carteira assinada era tratado como indigente”, rememora.
*Créditos da foto: Moradores do Pacuí receberam atendimentos das equipes do Estratégia Saúde da Família | Foto: Maison Brito/Prefeitura Municipal de Macapá/AP
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