Álcool: do estigma às novas abordagens
A partir de vasto estudo no Lenad III, pesquisadores sugerem que o uso abusivo da droga é muito mais disseminado do que se pensa. Por isso, de nada serve associá-lo a falhas morais, ou recomendar “saídas” que estimulam o isolamento e tolhem o convívio social
Publicado 05/11/2025 às 10:03 - Atualizado 05/11/2025 às 12:24

Quais as verdadeiras dimensões do consumo abusivo de álcool na sociedade brasileira – e de que forma enfrentá-lo? Promovida pela organização ACT Saúde e realizado na Santa Casa de São Paulo, em 21/10, um encontro entre pesquisadores e jornalistas ajudou a enxergar em mais profundidade o tema e a afastar visões preconceituosas. Teve como foco o III Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad III), utilizado como base para as políticas do ministério da Saúde e recém-divulgado.
Suas conclusões são muito relevantes. Elas ajudam a superar o estigma do “alcoolismo” – um termo, aliás, abandonado. Demonstram que o abuso não é típico de camadas marginalizadas, ou de indivíduos incapazes de aceitar limites sociais. Está presente em eventos comezinhos, como as festas de adolescentes da classe média. Por isso mesmo, enfrentá-lo exige abordagens sofisticadas.
“Cerca de 40% dos brasileiros com 14 anos ou mais usa o álcool. Entre homens, mais da metade experimentou consumo pesado em alguma ocasião nos últimos 12 meses. Nosso índice de uso abusivo está alto, em torno de 11%; 5,7% dos adolescentes têm transtorno por uso de álcool. Entre os menores de idade, que nem deveriam beber, a proporção é idêntica – o que foi o primeiro achado do estudo”, resumiu Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp, instituição que lidera a produção do Lenad III. No Brasil, foram cerca de 100 mil mortes precoces (antes dos 70 anos de idade) em 2019, cerca de 90% homens.
Ao longo do encontro, Clarice e os demais pesquisadores – Guilherme Messas, professor da Santa Casa; Zila Sanchez, professora da Unifesp, e Ilana Pinsky – psicóloga e colunista de saúde pública – argumentaram que é hora de realizar um movimento de desconcentração do estigma sobre usuários severos de álcool. Ao ampliar o conceito para “transtornos decorrentes”, chama-se atenção para acontecimentos de menor destaque.
“Agressões, acidentes, comportamentos variados motivados pelo consumo de bebida também geram consequências negativas e não são necessariamente contabilizados como prejuízos causados pela bebida”, frisou Guilherme. Ou seja – as sequelas não ficam restritas a acidentes e brigas, com feridos e fatalidades. Há toda uma perda de tempo, produtividade e interações sociais. Segundo o Lenad III, são ao menos R$ 20 bilhões de reais perdidos anualmente. O próprio documento destaca que há enorme subnotificação, pois tais números foram obtidos apenas através de informações de atendimentos no SUS.
Como fizeram questão de enfatizar os participantes da mesa, o senso comum sobre o que seria “alcoolismo” já está superado no campo científico, inclusive porque não parece haver doses seguras de consumo desta droga. De acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), o uso excessivo de bebidas foi unificado na definição Transtorno por uso de álcool.
Ele abrange atitudes fartamente valorizadas pela publicidade, como os encontros regados a rodadas de cerveja. “O Brasil trata tal bebida como se não fosse alcoólica, sendo que 70% do consumo da substância no Brasil provém da cerveja. E precisa desmistificar a ideia de que seu consumo é mais tranquilo que o de destilados”, explicou Zila Sanchez. A pesquisadora destacou a importância da campanha Cerveja Também é Álcool, uma vez que esta é a opção etílica mais consumida no Brasil e conta com uma legislação favorável em comparação a bebidas tidas como “mais pesadas”.
Neste contexto, uma epidemiologia do consumo de álcool é necessidade premente para uma abordagem eficaz. E o trabalho pelos pesquisadores fornece subsídios preciosos para se entender alguns trajetos do consumo de bebidas alcoólicas. “Fui dar palestra no Colégio Bandeirantes e percebi que temos um sério problema de festas de adolescentes que consomem álcool com anuência dos pais – em razão da crença de que perigo está em locais públicos, como as ruas. E aqui há um adendo: adolescentes estão em fase de desenvolvimento neuropsíquico, de órgãos e tecidos, a exemplo do córtex cerebral”, ilustrou Clarice Madruga.
Abstinência e outros fenômenos
Em suas falas, os pesquisadores deixaram claro que uma maior conscientização sobre o álcool não deve se confundir com campanhas por abstinência total. Ao lado do consumo abusivo, tem crescido uma campanha em favor da restrição absoluta ao álcool, que muitas vezes se desdobra em estímulo a um isolamento social pernicioso.
“Nos EUA parte da explicação se deve ao aumento do uso da maconha, que no discurso de algumas pessoas é ‘boa pra saúde’. Outro fator é que os jovens têm ficado muito online e interagido menos socialmente, o que não é uma boa razão para se beber menos. Interagir menos também se relaciona com maiores índices de depressão e ansiedade”, contextualizou Ilana Pinsky.
“Outro fator é estético. Meninas e meninos estão muito preocupados com beleza, o corpo, e isso criou uma tendência de rejeição ao álcool – porém, muito associada ao consumo de produtos estéticos e uma febre por academia”, acrescentou Zila Sanchez.
De todo modo, não se trata de estabelecer uma abordagem moralista e estigmatizante. O que os estudos e comunidade científica recomendam é uma abordagem do álcool como questão de saúde pública. Fiscalização e campanhas educativas devem atualizar seus conceitos. “Tem que tratar igual tabaco. O Brasil tem boas leis, até houve aprimoramento, a exemplo de Lei 15.234 que amplia multas e punições para quem vende bebidas a menores. Mas o país não implementa 50% das recomendações da OMS sobre o tema. Cervejas precisam ser incluídas na lei do marketing que restringe propaganda e aumenta tributação”, finalizou Zila Sanchez.
A necessidade de superar as velhas abordagens fica clara quando se chama atenção para o fracasso das estratégias atuais. No encontro, foi também apresentado documento Estimação do impacto de diferentes cenários de redução do consumo de álcool no Brasil, da Vital Strategies, consultoria que produz estudos epidemiológicos diversos. O texto destaca:“globalmente houve [em consequência do uso abusivo] 2,6 milhões de mortes em 2019 (4,7% do total), principalmente homens. Cerca de 400 milhões de pessoas vivem com transtornos por uso de álcool, sendo mais da metade dependentes”. Para melhores prognósticos, é preciso mudar o tratamento.
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