Agrotóxicos: colonialismo químico e ameaça à saúde

Conceito sintetiza dinâmica cruel: uso pelo agronegócio de produtos proibidos no Norte Global enriquece multinacionais enquanto adoece e mata brasileiros. Para estudiosos, mais regulação e fim da pulverização aérea são cruciais para enfrentar danos à população

Foto: Getty Images
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Grandes empresas estrangeiras fabricam agrotóxicos no Brasil, muitos deles proibidos no Norte Global. Os produtos serão utilizados pelo agronegócio brasileiro – não apenas em suas lavouras, mas também como arma química contra comunidades tradicionais cujos territórios são cobiçados. Os lucros obtidos se evadem para os Estados Unidos e a Europa. Os danos ficam em nosso país: mortes em conflitos socioambientais, danos à saúde por contaminação, uma economia primarizada e dependente do estrangeiro.

Como denominar este processo? É possível pensá-lo como um colonialismo químico, aponta um número crescente de estudiosos e movimentos sociais. O conceito remete a Agrotóxicos e colonialismo químico (Editora Elefante, 2023), obra de Larissa Bombardi, geógrafa e pesquisadora no Laboratório de Agroecologia da Universidade Livre de Bruxelas. Professora licenciada do Departamento de Geografia da USP, Bombardi deixou o país após receber uma série de ameaças em retaliação a seus reveladores trabalhos, como o atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia.

A ligação do colonialismo químico com o adoecimento da população brasileira esteve em debate no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, o Abrascão. Na mesa redonda “Colonialismo químico em tempos de mudanças climáticas: implicações para a saúde”, ocorrida na terça-feira (2), o procurador-geral do trabalho Pedro Serafim chamou atenção para as dificuldades que enfrentam os esforços para responsabilizar judicialmente as corporações do setor químico por mortes, doenças e outros problemas desenvolvidos por trabalhadores e seus familiares.

No entanto, esta luta segue adiante, buscando pôr fim ao entrelaçamento entre dependência econômica e crise sanitária, de consequências mortais para muitos brasileiros. Como explicou Alan Tygel, da Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o movimento apresenta uma série de reivindicações específicas – entre elas, o fim da pulverização aérea de químicos por avião ou drone, e o banimento do uso de agrotóxicos que já estão proibidos no exterior.

No evento, também foi exibido o teaser do documentário “Agrotóxicos Sem Fronteiras: Um Dilema Global”, com participação de Larissa Bombardi, que “revela as conexões entre o agronegócio, a política e a saúde pública”.

O papel do agronegócio

Hoje poderoso, o agronegócio é um acontecimento relativamente recente na história brasileira. Modelo de produção capitalista no campo, ele surge na segunda metade do século XX para “justificar a não realização da reforma agrária” ao dar novo fôlego à grande propriedade antes improdutiva, postula Alan Tygel. A monocultura e a produção de commodities para exportação não são suas únicas características, lembra o engenheiro: trata-se também de um segmento altamente dependente de insumos que vêm do exterior, como  insumos químicos e aviões de pulverização, para a realização de suas atividades.

Exatamente por essa razão, o setor pressiona fortemente pela liberação indiscriminada dos agrotóxicos. Seus êxitos são perceptíveis. A antiga Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 7.802/1989) possuía critérios bastante claros para a proibição de produtos, interditando o registro daqueles que causassem câncer, mutações genéticas, distúrbios hormonais ou outros problemas de saúde. Já a nova legislação, o “Pacote do Veneno” (Lei nº 14785/2023) traz apenas a vaga formulação de “risco inaceitável” para os seres humanos e o meio ambiente, sem previsão de revisão periódica das ameaças.

O caso da atrazina, agrotóxico comercializado no Brasil por diversas multinacionais, ajuda a entender a conexão entre essa desregulamentação e a saúde. Recentemente, a OMS passou a classificá-la como “provavelmente cancerígena para humanos”. Apesar disso, a substância está amplamente presente no ar de zonas agrícolas do interior de São Paulo, devido ao seu largo uso pelo agronegócio. Uma ação do Ministério Público Federal busca banir o pesticida.

Não é possível dizer que os latifundiários utilizem esses insumos sem saber de seus riscos ao bem-estar de seres humanos. Afinal, como mostra o relatório Conflitos no Campo Brasil 2024, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), são diversos os relatos de pulverização de agrotóxicos em comunidades tradicionais com o objetivo explícito de causar problemas de saúde a essas populações, forçando-as a submeter-se aos desmandos do poder econômico, interessado em suas terras.

Assim, as substâncias de desenvolvimento e formulação estrangeira (ainda que, por vezes, fabricadas no Brasil por multinacionais) tornam-se uma arma da reprodução de uma das dinâmicas mais longevas da história do país: o domínio político da grande propriedade rural, articulada de forma subordinada a interesses imperiais-coloniais.

Para a Campanha, além das demandas pela interdição da pulverização aérea dos agrotóxicos e o banimento do uso de produtos já proibidos no exterior, é indispensável pôr fim às gordas isenções fiscais recebidas pelo agronegócio. O modelo de agricultura que promove o colonialismo químico deve deixar de ser incentivado pelo Estado – e a agroecologia, por sua vez, precisa receber maiores estímulos. Em especial, com ações de demarcação e titulação que estimulem a soberania dos territórios tradicionais e populares.

A implementação efetiva do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), aprovado mas ainda engatinhando, também é urgente, avaliou Alan Tygel.

Trabalhadores também são atingidos

Subprocurador-geral do Trabalho e coordenador-geral do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Pedro Serafim questiona: “Como pode o governo admitir que a água potável no Brasil tenha quinhentas vezes a quantidade de partículas de glifosato que se permite a União Europeia?”

Na visão de Serafim, existe uma grande “assimetria” entre o projeto das empresas químicas para as diferentes nações do mundo. “Essa assimetria se faz presente na hora de escolher em qual país se vai produzir com alto risco à saúde. Instalar fábricas no Sul Global, para vender a países como o nosso, se encaixa nesse padrão”, diz o membro do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Com essa observação, Serafim destaca que o colonialismo químico não atinge só as comunidades do campo, mas também os trabalhadores das indústrias química e farmoquímica – ambas muito presentes no Brasil –, expostos cotidianamente a produtos nocivos durante a fabricação de agrotóxicos e outros insumos. São muitos os processos na Justiça em que esses operários exigem indenizações por terem desenvolvido problemas de saúde ligados a essa exposição. Riquíssimas, as corporações costumam levar a litigação até as instâncias mais altas do Judiciário, onde costumam conseguir condenações mais leves.

Mesmo assim, ele ressalta, é possível obter vitórias. Na semana passada, o Tribunal Superior do Trabalho condenou a farmacêutica estrangeira Eli Lilly a pagar R$200 mil por danos morais e R$100 mil por danos estéticos à filha de um ex-operário de sua fábrica em Cosmópolis (SP), nascida com diversas malformações. Em 2018, a empresa também já foi condenada pelo TRT da 15ª Região a pagar R$500 milhões em um processo coletivo ligado a contaminações no ambiente de trabalho dessa mesma planta no interior paulista. 

Os casos são importantes marcos, mas Serafim alerta que são raros e as instâncias superiores tendem a reduzir enormemente as indenizações. “Ainda vale a pena contaminar o Brasil e os brasileiros”, ele critica.

O Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, coordenado pelo procurador do trabalho, participa da Aliança Internacional para a Padronização dos Pesticidas (IPSA, na sigla em inglês), que busca levar às instâncias multilaterais da diplomacia a necessidade de uma regulação global mais dura desses produtos.

Mineração: outra frente do colonialismo químico

No Brasil, a utilização de insumos químicos de caráter nocivo à saúde também se faz presente na mineração, alertou no debate a professora Leiliane André, do Instituto de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Em meio à reprimarização do país, o setor cumpre um papel cada vez mais relevante na economia nacional. Teve um crescimento de 9,1% em seu faturamento no ano de 2024, além de uma participação de 47% no saldo positivo da balança comercial do Brasil. Os resultados se ligam principalmente à exportação bruta de commodities como o minério de ferro. Na extração do material, “em nome da recomposição do lucro de grandes grupos econômicos”,  são utilizados produtos químicos para “extrair mais, mais rápido e com menos custo, pressionando as condições de trabalho e a segurança sanitária”, explica Leiliane.

O resultado mais visível desse processo está na série de rompimentos de barragens de rejeitos de mineração que o país viveu na última década – e o Brasil ainda possui 934 reservatórios do tipo, muitos deles em péssimas condições. Ao se romperem, as barragens espalham por um vasto território os resíduos da atividade, incluindo os produtos químicos utilizados para processar o minério. Tendo em vista que a atividade mineradora faz parte da “especialização subordinada do Brasil na exportação de matérias-primas” para o exterior, argumenta-se, não seria este um exemplo do colonialismo químico que ameaça a saúde da população?

A tese pode ser comprovada pelo trabalho do Projeto Saúde Brumadinho, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que identificou que as crianças da região onde ocorreu o rompimento da barragem, em 2019, seguem afetadas pela exposição a metais. Os demais segmentos da população também sofrem com alterações em suas funções hepáticas e renais, além de problemas de pressão arterial.

Mesmo quando não está causando grandes desastres, a mineração está ligada a doenças e agravos ligados à exposição a produtos químicos. Na visão de Leiliane André, em cidades onde esta atividade econômica é forte, é preciso especializar os serviços de atenção primária à saúde nessas especificidades, para que possam melhor atender à demanda dos trabalhadores atingidos.

Por isso, argumentou, esta frente de embate com o colonialismo químico também deve estar nas prioridades dos defensores da vida. “A cadeia de mineração é uma sucessão de exposições químicas que trazem sérios danos à saúde”, concluiu a professora da UFMG.

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