A Saúde Coletiva é muito mais que Uma Só Saúde

OMS embarcou no conceito para permitir rearranjo institucional no pós-pandemia. Mas é preciso criticar tendência positivista e reducionista da “One Health”, cega à demanda de uma ciência plural, sensível e em diálogo com os sistemas de conhecimento do Sul Global

Créditos: Organização Pan-americana da Saúde
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O artigo que você lê abaixo abre um diálogo com um texto publicado na coluna Saúde É Coletiva, de Carmem Leitão e Rômulo Paes de Sousa, Uma Só Saúde e Saúde Coletiva: diálogo possível?

Nos últimos tempos o campo da Saúde Coletiva tem debatido a abordagem da Saúde Única (One Health) ou, como tem sido traduzida pelo governo brasileiro, Uma Só Saúde. Existem pelo menos duas dimensões que vêm marcando os debates, uma de natureza político-institucional e outra mais epistemológica. A principal contribuição deste texto é epistemológica, porém iniciaremos com a primeira dimensão pois ambas se encontram profundamente interconectadas.

No âmbito da Saúde Coletiva, a dimensão político-institucional tem orbitado entre dois polos. O primeiro assume um posicionamento fortemente crítico, liderado inicialmente pelo CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) [1] e posteriormente aliado a pesquisadores da Saúde Coletiva [2], principalmente vinculados ao GT Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Um segundo polo reconhece a importância de dialogar com as diretivas internacionais procedentes da Organização Mundial de Saúde que vêm dando destaque à One Health. No contexto brasileiro isso vem ocorrendo principalmente desde 2024, quando foi criado o Comitê Técnico Interinstitucional de Uma Só Saúde, e posteriormente o Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde, cuja consulta pública durou um mês e se encerrou em 22/8/2025.

No recente artigo de Carmem Leitão e Rômulo Paes (3), o atual presidente da Abrasco, assume a necessidade de diálogo. Parte do reconhecimento das controvérsias e tensões entre atores que atuam e militam na gestão e pesquisa no campo da saúde pública, em especial com relação ao SUS. Dentre as críticas destacadas a partir principalmente do Cebes, aponta-se a fragilidade da Saúde Única em compreender e enfrentar as causas estruturais das crises climática, ambiental e sanitária, assim como o fortalecimento do SUS. Nega-se um pilar central da Saúde Coletiva envolvendo a Determinação Social da Saúde e o enfrentamento das desigualdades e injustiças sociais e de saúde, ambas correlacionadas. Por outro lado, os autores assumem uma posição pragmática sobre a necessidade de diálogo com a abordagem da Saúde Única, dada a grande projeção internacional que esta assumiu no contexto da pandemia de covid-19 e do agravamento da crise climática, e que foi abarcada pela OMS como principal resposta institucional para implementação de ações regionais e nacionais.

O Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde deve ser visto como resultado de um arranjo institucional mais amplo envolvendo a governança internacional para enfrentar novas pandemias após a radical crise sanitária de covid-19. A ONU e a OMS ocupam assim uma posição central na realização de acordos que passam por processos políticos e diplomáticos que buscam acomodar uma diversidade de interesses. Tais processos favorecem processos decisórios “aceitáveis” por diferentes e poderosos atores, e o desfecho acordado pode ficar muito distante de análises mais abrangentes que sugerem transformações sistêmicas. Esse parece ter sido o caso da “convergência” em torno da One Health, que reuniria ao mesmo tempo saúde ambiental, humana, animal e vegetal. Essa proposta foi inicialmente enunciada em 2004 com um simpósio internacional nos EUA intitulado “One World, One Health”, organizado pela Wildlife Conservation Society que reuniu especialistas e instituições de saúde pública, agricultura, vida selvagem e biodiversidade.

Essa busca de conexão entre diversas áreas da saúde pública não é nova. Com a intensificação da globalização como fenômeno econômico e político, principalmente a partir dos anos 1980, várias abordagens vinham sendo construídas e circulam no campo da saúde pública internacional para lidar com questões globais de saúde, não apenas as zoonoses ou a resistência aos antibióticos, mas também as impulsionadas por problemas ecológicos globais. Estes incluem, por exemplo, a poluição química nos diversos compartimentos dos ecossistemas (ar, solo e água), a perda de biodiversidade e, mais recentemente, as mudanças ou emergências climáticas.

No contexto brasileiro e da chamada Saúde Coletiva, que adotou na virada do século XXI o termo abrangente Saúde e Ambiente para se diferenciar da perspectiva tecnicista da Saúde Ambiental assumido pela Saúde Pública internacional, podemos indicar algumas dessa abordagens: Saúde Global, Saúde Planetária, Abordagem Ecossistêmica em Saúde, Saúde dos Povos (People’s Health) e, mais recentemente, Mais do que Uma Saúde (More Than One Health). Também a chamada vigilância popular da saúde tem ganho crescente destaque no âmbito do SUS em conexão com ações territoriais e de movimentos sociais, que avançaram muito no contexto da pandemia e dos processos de destruição ecológica. Também Nísia Trindade Lima apresentou a exigência da interdisciplinaridade para avançar nos desafios da covid (4).

Importa frisar as alterações que ocorreram na relação entre as orientações da OMS e as políticas de saúde específicas dos seus Estados-membros a partir da pandemia de covid-19. A Saúde Única ou Uma Só Saúde surgiu como uma proposta “avassaladora” (3), fruto da aliança quadripartite formada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). A força da One Health parece ter sido muito influenciada pelo Bloco Europeu, aparecendo, pois, como uma abordagem construída a partir do Norte Global.

É importante lembrar, porém, que ainda antes da pandemia, em 2015, foi apresentada a concepção de Saúde Única Estrutural, uma proposta original desenvolvida pelo biólogo Rob Wallace, cujo livro Pandemia e agronegócio (5) foi traduzido para o português e publicado em 2020. Trata-se de uma abordagem crítica e interdisciplinar que uniu saúde pública, ecologia e economia política para analisar como a diversificação e disseminação das gripes suína e aviária estavam fortemente relacionadas com a expansão do agronegócio e suas cadeias de commodities pecuárias no âmbito do sistema econômico mundial na era do neoliberalismo. A consequência não foi apenas afetar o equilíbrio dos ecossistemas, mas criar as condições de emergência de novas pandemias globais. Tratou-se de uma poderosa análise realizada anos antes da covid-19, que colocava o capitalismo e o agronegócio no centro do debate.

O contexto pós-covid reforçou no cenário internacional uma Saúde Única bem distinta da Estrutural e que não chegou a dialogar com esta, o que obviamente seria muito difícil no âmbito da ONU e das polarizações atuais. No caso brasileiro, a proposta do Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde faz eco de algumas destas limitações pela falta de articulação com políticas de saúde e organização do SUS, incluindo as áreas de vigilância e atenção em saúde nos territórios de atuação das equipes de Saúde da Família [1]. Mais grave ainda, a criação e composição do Comitê Técnico se afasta radicalmente de um dos pilares do SUS, a participação social, ao excluir atores fundamentais como vários Conselhos Nacionais (Saúde, Meio Ambiente, Segurança Alimentar e Nutricional) e desconsiderar entidades científicas e intersetoriais de grande relevância, como a ABRASCO, SBPC, organizações da Agroecologia e o Grupo da Terra [2]. Além disso, há uma excessiva presença corporativa e empresarial dos atores que irão elaborar e apoiar o Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde, como os Conselhos Federais de Biologia, Enfermagem, Farmácia, Medicina e de Medicina Veterinária, além de setores da agricultura ligados ao agronegócio.

Em termos epistemológicos, apesar de Uma Única Saúde se assumir transdisciplinar e a multissetorial, ela é atravessada por uma forte tendência positivista e reducionista que caminha no sentido contrário da Saúde Coletiva e da Saúde Única Estrutural, afastando-se de uma visão de ciência sensível, intercultural e interdisciplinar (6) que deveria marcar o processo – reconhecido como necessário – de transição paradigmática em tempos de crises. Essa perspectiva assume a complexidade e a incompletude do conhecimento para avançar em direção a um futuro mais sustentável, saudável e democrático que reconheça a importância de trilharmos novas formas de pensar, sentir e viver a relação entre sociedade e natureza.

Sem dúvida, a área de Saúde e Ambiente da Saúde Coletiva tem sido relevante na discussão epistemológica em função de sua longa trajetória de pensamento interdisciplinar e crítico na compreensão da determinação socioambiental da saúde. No contexto brasileiro, da América Latina e boa parte do Sul Global, o agronegócio e a mineração são peças-chaves de um modelo de desenvolvimento neoextrativista insustentável e injusto que precisa mudar. Tal análise tem sido possível pela abordagem interdisciplinar da Saúde e Ambiente. Ele se constituiu pela incorporação de várias áreas das ciências da saúde, ambientais e do risco, como a epidemiologia, a toxicologia, a ecologia e as engenharias, dependendo das tecnologias e processos produtivos envolvidos.

Porém um traço marcante, como em vária áreas da Saúde Coletiva, sempre foi a conexão com abordagens das ciências sociais e humanas. No caso da Saúde e Ambiente, é marcante a aproximação com a geografia crítica de Milton Santos e sua discussão sobre território, e mais recentemente com a Ecologia Política e suas contribuições em temas como os conflitos, o racismo e a justiça ambientais. A interdisciplinaridade, junto com a intersetorialidade, também se concretiza ao pensarmos a promoção da saúde enquanto construção de alternativas econômicas, sociais e tecnológicas que promovam territórios sustentáveis e saudáveis.

Isso se expressa pela aproximação da Saúde Coletiva com correntes inovadoras da ciência, da tecnologia e sua práxis social, caso exemplar da agroecologia e de vários movimentos sociais relacionados, seja os das periferias urbanas, como também as chamadas populações dos campos, florestas e águas. Essa articulação não se restringe a uma dimensão política, pois assume tais movimentos e populações como sujeitos cognitivos detentores de conhecimentos estratégicos, sejam os situados e populares advindos de suas lutas sociais e contextos, sejam os cosmológicos dos indígenas, quilombolas e camponeses, também chamados problematicamente de tradicionais ou de etnociências.

Nesse sentido, a Saúde Coletiva é muito mais que uma única saúde. A transição paradigmática para enfrentar as várias crises demanda uma ciência mais plural, sensível e inclusiva a partir de inovações envolvendo diálogos com os vários sistemas de conhecimento do Sul Global anteriores à modernidade e que continuam ativos em suas lutas por resistência e reexistência (6). Esse diálogo ou encontro é também chamado de ecologias de saberes pelas epistemologias do Sul (7), uma abordagem que reconhece e busca validar os vários conhecimentos forjados ao longo de muitos séculos de humanidade anteriores ao início da colonização europeia e à hegemonia de sua civilização moderna e que têm sido capazes de se adaptar a mudanças nos espaços de vida de comunidades, territórios e populações.

Defendemos que descolonizar a saúde implica em uma proposta pluriepistêmica de universidade e produção de pesquisas que incorpore e permita a convivência de múltiplas matrizes de conhecimento, sejam elas indígenas, de matriz africana, de origem camponesa e seus vários hibridismos. Esse convívio pluriepistêmico não significa desvalorizar os avanços obtidos pelas epistemologias do Norte com seus paradigmas e especializações, incluindo a biomedicina. Pelo contrário, coloca no centro do debate epistemológico uma relação convivencial de respeito e possíveis sinergias entre a biomedicina, a medicina indígena e tantas outras do Sul Global que atualmente se encontram aprisionadas por uma concepção que as inferioriza com rótulos como terapias complementares ou tradicionais.

Existe um grande desafio que articula as dimensões político-institucional e a epistemológica, e que se expressa na tríplice violência sistêmica entre etnocídios, ecocídios e epistemicídios. Uma visão funcionalista restrita pode induzir políticas de saúde a virarem uma arma política, inclusive em contextos de conflitos bélicos que desmobilizam políticas universais e inclusivas de saúde, muitas vezes em nome de intervenções humanitárias emergenciais que acobertam políticas neoliberais. Aliás, em 2007, Naomi Klein (8) já nos alertava como o capitalismo neoliberal plantava desastres para colher poder e lucros, afastando-se do compromisso com a democracia e a qualidade do conhecimento, contribuindo para a emergência do fascismo social e do negacionismo.

Ingenuamente saberes técnico-científicos de especialistas com abordagens reducionistas podem contribuir para o desmantelamento de sistemas universais e públicos de saúde. Fazem isso quando reforçam apenas uma única visão de saúde, a ‘científica’, que invisibilizam e inviabilizam outras medicinas relacionadas à natureza em nome da reconstrução de territórios devastados a partir das lógicas da biomedicina, dos complexos médico-hospitalares, da agricultura industrial do agronegócio e da devastação associada à desflorestação, à mineração e ao hidronegócio. Dessa forma, no redemoinho dos desastres e tragédias, impulsionam agendas do neoliberalismo e sua relação com a extrema direita.

Movido talvez pela urgência em implementar compromissos internacionais assumidos no âmbito da OMS, o Ministério da Saúde tem promovido a Uma Só Saúde sem passar por um debate efetivo com o SUS e a Saúde Coletiva. Isso coloca em risco o próprio projeto do SUS e a soberania do país num momento particularmente delicado. Portanto, o grande desafio para superar essa situação exige que o Governo Federal e o Ministério da Saúde abram um diálogo real com entidades ligadas ao direito à saúde e ao fortalecimento do SUS, como o Conselho Nacional de Saúde e a ABRASCO, contemplando as duas dimensões referidas – a político-institucional e a epistemológica.

A resposta da Saúde Coletiva encontra-se em dar continuidade e atualizar sua missão civilizatória, como nos dizia Sergio Arouca. Uma agenda de saúde que conflua organicamente com a defesa da vida, da democracia, do bem viver e do respeito à natureza, como nos lembram os ativistas indígena e quilombola Ailton Krenak e Nego Bispo.


Referências

(1) Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Saúde única ou uma só saúde? Quais as questões no contexto brasileiro? (2024). Disponível em: https://cebes.org.br/saude-unica-ou-uma-so-saude-quais-as-questoes-no-contexto-brasileiro/35004/

(2) Rizzotto MLF, Costa AM, Dias AP, Corrêa Filho HR, Friedrich K, & Augusto LGDS. (2025). Saúde Única-um conceito ambíguo sob debate. Saúde em Debate, 48, e143ED.

(3) Leitão C, Souza RP. Uma Só Saúde e Saúde Coletiva: diálogo possível? (2025). Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/uma-so-saude-e-saude-coletiva-dialogo-possivel/

(4) Lima NT. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva (2022). Saúde em Debate, 46, spe6, p. 9-24.

(5) Wallace R. (2020). Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Editora Elefante.

(6) Porto MF, Fasanello MT, & Palm JL. (2025). Por uma ciência sensível, interdisciplinar e intercultural: desafios epistemológicos para resgatar a sabedoria na relação saúde, sociedade e natureza. Saúde e Sociedade, 34, e240229pt.

(7) livro Arriscado Nunes. Epistemologias do Sul e descolonização da saúde. Disponível em: https://biblioteca-repositorio.clacso.edu.ar/bitstream/CLACSO/171696/1/Epistemologias-do-Sul-Arriscado.pdf

(8) Klein N. (2008). A ascensão do capitalismo do desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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