A maconha na Farmacopeia Brasileira

Uma notícia importante passou despercebida: Anvisa abriu consulta pública para incluir a Cannabis em documento de certificação de fármacos. As portas estão abertas para a regulamentação da planta e superação do proibicionismo. Seguiremos em frente?

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Recentemente A Anvisa abriu uma Consulta Pública para revisão e inclusão de itens na Farmacopeia Brasileira, na qual se incluem, pela primeira vez, as inflorescências (flores) de Cannabis sativa, a maconha. 

A importância disto não pode ser subestimada.

De acordo com a própria Anvisa, “a Farmacopeia Brasileira é o compêndio farmacêutico nacional que estabelece, por meio de textos farmacopeicos (capítulos, métodos e monografias), as exigências mínimas de qualidade, autenticidade e pureza de insumos farmacêuticos, medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária”. 

Isto é de grande importância, antes de tudo, porque confirma o reconhecimento técnico e científico, institucional, das flores de maconha como insumo para produtos de uso medicinal aqui no Brasil. Devemos elogiar a Anvisa por dar mais este passo positivo, na direção correta do atendimento às necessidades de saúde da população brasileira. A atuação da Agência já tinha sido fundamental quando, em 2013/2014, tornou legal a prescrição de produtos de Cannabis, com CBD e THC, aqui no Brasil. Agora, com certeza, a incorporação das flores da maconha à Farmacopeia Brasileira se coloca como mais um passo importante, no sentido do mais amplo acesso ao uso medicinal dos canabinoides no nosso país.

Este é justamente o sentido que muitos de nós, médicos e pesquisadores da área, estamos sempre defendendo e buscando: propiciar o acesso mais amplo e livre à Cannabis, ou seus produtos, para o uso medicinal, aqui no Brasil! E nós fazemos isto porque temos as certezas da efetividade medicinal da Cannabis, ou dos canabinoides, e da sua máxima segurança de uso. Estas certezas estão baseadas na experiência histórica do uso social da erva, na experiência clínica de milhares e milhares de pacientes, na pesquisa pré-clínica, na pesquisa com pacientes e também em dados populacionais.

O avanço progressivo do reconhecimento institucional, no Brasil e mundialmente, de que as flores da maconha são realmente um recurso terapêutico, medicinal, apenas confirma estas certezas que nós estamos, há algum tempo, afirmando e demonstrando. Mas, além deste aspecto ideológico, conceitual e científico, a grande notícia desta inclusão das flores de maconha na Farmacopeia Brasileira, com alta relevância prática e social, é que os requisitos técnicos ali especificados “poderão ser utilizados também como referência para o desenvolvimento de especificações apropriadas para o controle da qualidade de extratos e produtos já disponibilizados no mercado nacional”. 

Ou seja, a Anvisa está abrindo as portas para a regulamentação da produção brasileira de flores e produtos de Cannabis. Um mercado que, atualmente, já atende várias dezenas ou algumas centenas de milhares de pessoas, através de Associações de Pacientes e de Cultivadores Autônomos. Efetivamente, todos que atuam nesta área, produzindo o famoso óleo de maconha, chamado genericamente de canabidiol, ou de CBD, seja de modo mais artesanal ou tecnológico, através do plantio próprio ou de terceiros, ou por importação informal dos insumos, estão funcionando sem controle sanitário por parte da Anvisa ou outro órgão regulatório. Com a inclusão das flores de erva na Farmacopeia Brasileira, a Anvisa está, de fato, criando as condições técnicas para a regulamentação destes produtos.

A Consulta Pública estará aberta até o dia 11 de Abril e, certamente, um bom tempo ainda será necessário para que as regulamentações e os protocolos sejam desenvolvidos, de modo a dar operacionalidade para este processo. Talvez, portanto, no segundo semestre ou, mais provavelmente, ao longo ano que vem, vamos começar a ver flores de maconha, nacionais, certificadas pela Anvisa, como insumo para produtos de uso medicinal.

Infelizmente, até lá e, parece que, mesmo depois deste avanço ser implantado, continuaremos, no entanto, em um contexto de muita ambiguidade, de muita confusão, institucional e jurídica, mantendo-se, na prática, as restrições absurdas ao acesso aos tratamentos com canabinoides, que ainda prevalecem atualmente no Brasil, em prejuízo da saúde de milhares e milhares de pessoas.

A Agência adverte, no próprio texto da Consulta Pública, que “não foram alteradas as atuais restrições ao plantio e à importação da planta in natura”. De modo que poderemos ter, por algum tempo, a situação paradoxal em que flores de maconha poderão ter a sua qualidade certificada pela Anvisa, para a realização de produtos de uso medicinal, mas ainda não poderão ser livremente cultivadas aqui no Brasil nem importadas, por determinação da própria Anvisa, dentro do escopo da Lei Antidrogas. É claro que aí há uma acomodação e uma submissão da Agência ao contexto proibicionista da ideologia de guerra às drogas, pois não há, obviamente, qualquer justificativa técnica ou científica para se reconhecer e certificar flores de Cannabis como insumo medicinal aqui no Brasil e manter, ao mesmo tempo, as restrições ao cultivo e importação da planta.

Além disto, o texto para a Consulta Pública condena também o uso medicinal das flores in natura, advertindo que “as inflorescências da espécie não são destinadas ao consumo direto, sendo necessário o desenvolvimento de produto farmacêutico com características adequadas ao uso pretendido, que deve passar por todas as etapas de aprovação ou autorização pela Anvisa, antes de ser disponibilizado aos pacientes”. Esta é mais uma falácia, mais uma restrição irracional, que também é apenas uma concessão à criminalização da maconha e à ideologia proibicionista. Não há, de fato, indícios suficientes, muito menos evidências, de que o uso da maconha vaporizada cause qualquer mal à saúde. Apenas tem-se indicativos consistentes de que aumenta-se o risco de distúrbios inflamatórios de orofaringe, com o uso de cigarros de maconha (o baseado). Mas é só isso.

A Anvisa, desta maneira, dá uma falsa sustentação técnica à confusão e à ilusão de que as flores são base para medicamentos mas não podem ser, elas mesmas, medicinais. Isto não tem nenhuma base científica, ao contrário, é apenas uma concessão que os técnicos da Anvisa fazem ao contexto de proibição do hábito de fumar maconha. Tanto a experiência quanto a pesquisa clínica comprovam, suficientemente, que o uso vaporizado é efetivo e seguro em diversos distúrbios e transtornos de saúde e pode ser empregado, em princípio sem restrições, na prática clínica.

Esta confusão, esta falácia, é irmã daquela outra de que o CBD (Canabidiol) seria um princípio medicinal, seguro e que o THC seria o princípio psicoativo e de risco para a saúde e a vida. São confusões, são farsas mesmo, sem base científica real. De fato, não há, ainda, nem de longe, pesquisa clínica suficiente para a conclusão sobre efeitos comparados de CBD e de THC, em nenhum campo do uso medicinal. Tudo o que se fez sobre isto é ainda muito pouco para se tomar decisões terapêuticas de modo completamente seguro. Não sabemos, de fato, qual o canabinoide ou combinação de canabinoides é mais efetivo e seguro nas diversas condições de saúde. O que sabemos, com bom nível de evidências, é que canabinoides, THC e CBD, são efetivos, a planta é efetiva. E de máxima segurança.

Como profissional médico, baseado na minha experiência e no conhecimento até hoje acumulado sobre os efeitos benéficos e os riscos do uso da maconha, eu realmente não vejo nem mesmo necessidade de uma certificação e do controle da Anvisa sobre todas as produções e produtos de Cannabis para uso terapêutico, aqui no Brasil. Está muito claro já, a realidade nos mostra suficientemente bem, que os canabinoides, que a maconha, enfim, podem ser utilizados medicinalmente ou terapeuticamente, como produto de padrão farmacológico, como um remédio de farmácia, ou como um produto de padrão fitoterápico. Sob as regulamentações e o controle da Anvisa, mas, também, como uma simples erva de domínio popular e uso livre, sem requerer realmente qualquer controle de órgãos regulatórios da saúde. Assim como acontece com qualquer erva, ou preparado de erva, de uso terapêutico, de domínio popular.

Trata-se de um recurso terapêutico com eficácia já verificada, por pesquisas clínicas de alto nível, para um pequeno grupo de sintomas ou doenças, com evidências de efetividade na prática clínica, para um amplo conjunto de problemas de saúde. Frequentemente, problemas de saúde graves, com grande comprometimento da qualidade de vida e autonomia dos pacientes. Falo de dores crônicas, de ansiedade, de insônia, de autismo, de epilepsias das mais diversas etiologias, de neuropatias, de Doença de Alzheimer, de fibromialgia, que tem resultados frequentemente excelentes. Falo também da depressão, de TDAH, bipolaridade, esquizofrenias, dependências químicas, além de doenças inflamatórias crônicas em geral, inclusive de pele. Falo da Doença de Parkinson e diversas outras doenças neurodegenerativas, entre outros sintomas e doenças.

Em grande parte destes casos os tratamentos que hoje são protocolares vêm falhando miseravelmente, apresentando resultados muito insatisfatórios e graves efeitos colaterais. Isto é o que eu vejo diariamente na minha prática clínica. O tratamento com a Cannabis frequentemente traz ganhos, às vezes ganhos muito significativos, nestes casos, resultando em melhora do estado geral da saúde do paciente e de sua qualidade de vida, com redução dos medicamentos em uso, redução de idas a Pronto Socorro e de internações, por exemplo. E, tudo isto, repito, com um recurso que é de máxima segurança! Não existem indícios de doenças orgânicas associados ao uso crônico de Cannabis ou de seus produtos.

Do mesmo modo, não existe registro de overdose letal ou com risco de morte, jamais, em toda a longa história de uso da erva e de perseguição à maconha. Os únicos indícios de risco de doença ou distúrbio crônico de saúde, pelo uso de maconha, são relacionados a transtornos psíquicos e são, consistentemente, muito minimizados ou eliminados quando se controla o risco pessoal e familiar para estes mesmos transtornos. Por isto mesmo, com base nos conhecimentos atuais, da pesquisa e da experiência clínicas, assim como pelas evidências históricas e dados populacionais, não há, nem pode haver, nenhuma contraindicação absoluta ao uso medicinal de canabinoides, de Cannabis. Nem por idade, nem por doença, nem por condição de embriogênese, gestação ou amamentação. E é também por isto que a sua produção e uso podem e devem ser livres.

De fato, do ponto de vista científico, de saúde pública sobretudo, não há base para a proibição da maconha, em quaisquer de seus tipos e usos. É apenas o contexto proibicionista que faz com que a Anvisa tenha realmente dificuldade para reconhecer a máxima segurança de uso da Cannabis e, portanto, a possibilidade, muito responsável, da perspectiva de saúde pública, de sua completa liberação. No contexto do proibicionismo, os órgãos regulatórios são pressionados de muitas maneiras a contrariarem a ciência e as evidências existentes, ou até a forjarem evidências e produzirem má ciência, para justificarem e sustentarem os dogmas e preconceitos do mesmo proibicionismo.

A Anvisa, assim como todas as outras instituições médicas, que ainda condenam e buscam impor restrições extremas ao uso medicinal e social da maconha, estão agindo contra as evidências científicas e contra o seu mandato social de proteção e promoção da saúde e da vida. Estas restrições, irracionais, realmente impedem o acesso de dezenas ou centenas de milhares de pessoas que poderiam se beneficiar com os tratamentos com Cannabis, obrigando muitos a desistirem ou terem que buscar a judicialização das suas necessidades de saúde, seja para acesso a medicamento de farmácia ou para cultivo próprio. Não é difícil imaginar os custos de tudo isto, em todos os sentidos, para os doentes e para os seus familiares.

É preciso salientar que isto não se resolve com as leis estaduais e municipais de acesso aos produtos de farmácia, basicamente CBD, pois elas resultam inviáveis, pelos altos custos dos tratamentos. Fazer a lei é fácil, o papel aceita tudo, como dizem. Mas, dificilmente saem do papel.

Não há como evitar que, deste modo, a insegurança e a confusão jurídicas continuam imperando. Para exemplificar, neste mesmo momento em que a Anvisa reafirma a restrição irracional, não científica, ao uso medicinal das flores de maconha in natura, a justiça da Paraíba autoriza mais uma nova Associação a produzir e distribuir produtos medicinais de maconha, incluindo flores. E quem está certo, neste campo, é a justiça. Estas restrições irracionais e contrárias à saúde das pessoas estão sendo superadas progressivamente e continuarão sendo, cada vez mais. Isto é inevitável.

As restrições ao uso vaporizado, ao cultivo, ou ao THC, no âmbito da medicina canabinoide, são baseadas na ignorância e no uso de má ciência. Servem apenas para justificar práticas sociais de violência e abuso e para o aprisionamento de milhares de jovens brasileiros nos circuitos da criminalidade, do abuso de drogas, da violência e da morte. Por mais que se tente, por meio de restrições deste tipo, na realidade não é possível se separar completamente a questão da maconha medicinal da questão do uso social da erva. E é por isto mesmo que o setor de saúde, os técnicos, cientistas e profissionais clínicos, envolvidos neste tema, têm que assumir a posição mais rigorosamente científica e de maior proteção à vida e à saúde, e não podem continuar se dobrando à ideologia de uma política antidrogas anticientífica e assassina.

Infelizmente, o que temos visto tende a ser justo o contrário. Quando se pretende dar algum passo, por mínimo que seja, parar se reduzir a violência, o encarceramento em massa e as mortes violentas associadas à criminalização das drogas em geral e da maconha em especial, a reação institucional na área da saúde vem, praticamente sempre, apenas dos setores fascistas, dando endosso pseudocientífico à toda a barbárie da nossa política antidrogas. Agora mesmo, o STF ousou pôr em pauta a descriminalização do porte de pequenas quantidades de maconha. Uma medida que pode até nem ter consequências realmente significativas na prática, seja para diminuir o abuso e a violência policiais, seja para reduzir o encarceramento da juventude periférica. Mesmo por tão pouco, a reação ideológica veio forte, com o aval do CFM e da Associação Brasileira de Psiquiatria, com ações no Congresso e grande mobilização midiática. Tanto que, como eu tenho previsto, o julgamento foi interrompido novamente e se arrastará ainda mais um bom tempos. Até agora, o que se pode dizer com certeza é que tivemos “muito barulho por nada” ou quase nada. Mas, tudo isto é tema complexo e que merece uma análise mais aprofundada. Faremos isso adiante.


Para acesso à Consulta Pública: https://pesquisa.Anvisa.gov.br/index.php/222499?lang=pt-BR

Para acesso à monografia sobre Flores de Cannabis para a Farmacopeia Brasileira (página 13): https://antigo.Anvisa.gov.br/documents/10181/6719388/CONSULTA+PUBLICA+Nº+1233+COFAR.pdf/94cc0e36-f102-449a-9205-513b0eaccd04

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