A ideologia que adoece o Hospital Emílio Ribas
Referência nacional em infectologia, é exemplo da precarização do SUS em SP. Enfermeiros contratados via “quarteirização” ficaram 50 dias sem receber. Omissões do governo refletem ideário neoliberal. Reforma dura 11 anos e hospital opera com metade dos leitos
Publicado 14/10/2025 às 12:34 - Atualizado 14/10/2025 às 13:40

Contratados em regime de quarteirização (quando uma empresa que presta serviços terceirizados subcontrata mais uma empresa para realizá-los), enfermeiros do Emílio Ribas ficaram 50 dias sem receber, o que levou dezenas de leitos a serem bloqueados. No entanto, os funcionários que participaram da mobilização frisam que essas relações laborais precárias não precisavam ter lugar no hospital: os aprovados em um concurso público realizado em 2022, que abriu 98 vagas para o IIER, poderiam cumprir esse papel em condições mais dignas, mas simplesmente não foram chamados.
“Isso é resultado da lógica privatizante do governo do Estado, que quer acabar com o serviço público e terceirizar de uma forma espúria. Claramente põe em risco a assistência à população. Não foram poucos os pacientes tirados da enfermaria e levados ao pronto-socorro quando precisavam de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo), denuncia Marta Ramalho, vice-presidente da Associação dos Médicos do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (AMIIER).
No entanto, como já mostrou Outra Saúde em matéria que relata praticamente a mesma situação há um ano, os problemas do Emílio Ribas não se restringem à crise dos “quarteirizados”, que agora vem à luz. Devido à reforma que se arrasta há mais de uma década – e cuja duração inicial era prevista para 36 meses –, o instituto já opera há anos com menos da metade de seus leitos, reduzindo por um período desnecessariamente prolongado sua capacidade de assistir à população.
No momento, vive uma bagunça operativa. Parte de sua estrutura administrada é feita diretamente por funcionários concursados, parte terceirizada, e a rotatividade de profissionais é a tônica. Está prometida a entrega de 28 leitos em novembro e mais 28 no próximo semestre, mas a AMIIER considera as informações vagas.
Tudo isto compõe o cenário de crise que o Sistema Único de Saúde (SUS) vive em São Paulo no contexto do governo Tarcísio de Freitas.

Histórico
“Essa terceirização vigente foi pactuada via mediação do Ministério Público em março de 2024, em meio à emergência da dengue. Entendemos que era preciso de profissionais que pudessem começar a trabalhar imediatamente. Mas de março de 2024 até outubro de 2025 não deu tempo de chamar os concursados ainda? Na verdade, é uma escolha do governador”, reforça Claudia Mello, infectologista e presidente da AMIIER.
Em entrevista a este boletim, Claudia descreve não só a inoperância do governo como ainda uma atitude dissimulada. Ao não ter justificativas para tamanha paralisia, evita o diálogo. Para piorar, os médicos da AMIIER descobriram, após pressão da deputada Mônica Seixas, que os salários da enfermagem foram atrasados por falta de repasses da secretaria.
“As próprias empresas que terceirizam a mão de obra alegaram não ter recebido repasses da secretaria de saúde, o que se mostrou verdade. Após nossa pressão, os pagamentos foram regularizados”, revelou. Agora, os trabalhadores voltaram ao serviço, mas o período de paralisação também puniu pacientes internados.
Ideologia neoliberal sabota Emílio Ribas
Para Claudia Mello, já não há motivos para evitar o chamamento dos concursados, a tal ponto que a Secretaria de Saúde do estado, comandada por Eleuses Paiva, sequer se apoia nos surrados discursos de falta de caixa.
Até porque o megaescândalo de corrupção na Secretaria da Fazenda, com isenções bilionárias para empresários que despejam propinas e têm suas facilidades aprovadas sem qualquer estudo prévio, joga luz sobre as intenções reais do governo estadual.
Mais que isso, uma figura proeminente na secretaria talvez explique a opção deliberada pelo desmonte. Priscilla Pericardis, secretária executiva, tem tese de doutorado pela Fundação Getúlio Vargas que defende o sucesso do modelo de privatização da gestão hospitalar.
“Sua tese trabalha com indicadores e metas, o que sabemos ser bem complicado, uma vez que são vulneráveis à manipulação de dados e não dialogam com necessidades reais de saúde”, criticou Claudia Mello.
A dissertação “Contratualização de resultados e desempenho no setor público: A experiência do Contrato Programa nos hospitais da Administração Direta no Estado de São Paulo” defende a hipótese de resultados melhores onde se privatizou.
O trabalho de pesquisa ignora quaisquer indicadores de satisfação de público e profissionais do SUS, que sistematicamente criticam tanto a gestão terceirizada dos serviços como suas próprias métricas. Na comparação entre 12 hospitais geridos por Organizações Sociais e outros 12 sob Administração Pública Direta, tampouco há informações sobre financiamento de cada unidade e mesmo perfis epidemiológicos dos pacientes, variáveis fundamentais para compreensão dos dados apresentados.
“De todo modo também temos estudos a demonstrar que as alas terceirizadas no Emílio Ribas na pandemia tiveram o dobro de mortalidade da ala pública”, contrapõe a infectologista.
A tensão continua. A deputada Mônica Seixas deve conseguir audiência pública na Assembleia Legislativa, o que deve motivar nova paralisação dos profissionais, a fim de marcarem presença. Enquanto isso, a mediocridade da gestão terceirizada prossegue.
“Desde abril, a gestora parou de fazer agendamentos presenciais e quer fazer apenas online, o que prejudica diversos usuários. Resolução do Ministério Público obrigou retorno do agendamento presencial, mas agora é mal feito. Não tem setor identificado para facilitar o público”, denunciou Claudia Mello.
Os profissionais suspeitam que houve uma redução do contrato da Secretaria Estadual com a prestadora de serviços, o que explicaria a redução de atendimento. Além disso, o próprio Tribunal de Contas do Estado alerta para o aumento de custos da reforma que se estende longamente no tempo, fora as oportunidades perdidas nas epidemias de covid-19 e dengue, que fizeram o governo estadual criar contratos de emergência para ampliação de atendimentos. Para Claudia Mello, o secretário de saúde age de forma irresponsável com uma referência estratégica da alta complexidade.
“Eleuses Paiva não é bom gestor. O Emílio Ribas é estratégico, mas não é tratado como tal. O Hospital é o primeiro anteparo a qualquer epidemia e precisamos de profissionais bem fixados para enfrentar tais questões. Preferir equipes terceirizadas é incompetência. O Hospital tem 145 anos e merece valor. É o maior centro formador de residentes do Brasil e sua precarização causa danos muito profundos, com repercussão na rede hospitalar toda”, sintetiza Claudia Mello.
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