A encruzilhada da saúde mental global
Em meio a novos desafios que se impõem na saúde mental, o departamento da área na OMS será fundido a outro setor. Mas duas conferências em setembro podem ser decisivas para que as políticas sigam de pé – e comprometidas com o cuidado em liberdade
Publicado 21/08/2025 às 10:05 - Atualizado 21/08/2025 às 11:42

Por Cláudia Braga, para a coluna Cuidar das pessoas, cuidar das cidades
No próximo mês, ocorrerão dois importantes eventos da agenda da saúde mental global, com potencial de impactar as políticas de saúde mental dos países nos próximos anos.
Em Nova Iorque, será realizado o UN High-Level Meeting on the Prevention and Control of Noncommunicable Diseases and the Promotion of Mental Health, evento da Organização das Nações Unidas que reúne chefes de Estado e outros atores sociais para revisar os avanços dos países no enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis e na promoção da saúde mental. Este encontro focará os debates em ações e estratégias para integrar essas duas agendas com base no princípio da equidade, construindo e pactuando formas de governança e de financiamento para a saúde mental.
Na sequência, em Doha, no Catar, o 6th Global Ministerial Mental Health Summit reunirá líderes governamentais para debater e avançar no compromisso político global com a saúde mental. Este encontro foi proposto com a chamada: “Transformando a saúde mental por meio de investimento, inovações e soluções digitais”. Nele serão pautados debates sobre políticas de saúde para o uso de substâncias, ações focadas em crianças e adolescentes, ampliação da participação no desenho do serviço de pessoas com experiência de sofrimento, além de um tema que se impôs como realidade da agenda da saúde mental (de bom ou de mau grado): as tecnologias digitais.
Nas cinco edições anteriores os temas debatidos por chefes e representantes de Estado estavam relacionados, principalmente, à temas estruturantes de legislações e políticas públicas em saúde mental: equidade em saúde mental, suporte psicossocial, direitos humanos, serviços baseados na comunidade, e saúde mental em todas as políticas. Já nesta edição, ganha destaque um tema que entrou pela porta dos fundos nas políticas públicas de saúde e agora exige atenção.
Discursos globais
Vivemos um momento ímpar no cenário internacional para esses debates.
No evento promovido pela ONU, será estratégico assegurar a integração das agendas da saúde mental, saúde do cérebro e uso de substâncias e das doenças crônicas não transmissíveis e, ao mesmo tempo, diferenciá-las. De fato, é preciso integrar respostas porque, por exemplo, é bem estabelecido que consumo de álcool e o uso de tabaco são fatores modificáveis para diversas doenças crônicas não transmissíveis, como as cardiovasculares; também se sabe que a experiência de viver com câncer, por exemplo, pode impactar significativamente a experiência de saúde mental.
Além disso, em todo o mundo, o acesso regular a serviços de saúde geral para cuidar, por exemplo, de hipertensão e diabetes, segue sendo uma enorme lacuna no cuidado de pessoas com problemas de saúde mental. Que o digam muitos trabalhadores que, no Brasil, enfrentam desafios cotidianos para assegurar que pessoas que são usuárias de Centros de Atenção Psicossocial acessem sem barreiras as Unidades Básicas de Saúde. Portanto, é necessário construir uma agenda comum que responda às necessidades de cuidado das pessoas.
Ao mesmo tempo, será fundamental que a agenda específica da saúde mental pública ganhe destaque. Em muitos países, os sistemas de saúde mental ainda são baseados em instituições asilares que violam direitos, quando o necessário é reorientar os modelos de atenção para serviços e práticas de base comunitária e territoriais, articuladas à promoção da cidadania.
Leia todos os textos da coluna mensal de Cláudia Braga em Outra Saúde
E por que trabalhar nessas duas frentes será especialmente estratégico neste momento?
Por conta de uma mudança institucional significativa: na recente reestruturação da Organização Mundial de Saúde, anunciada pelo Diretor Geral, houve a redução de departamentos, e com isso foi unificado em um único departamento os temas de doenças crônicas não transmissíveis, saúde mental, saúde do cérebro e uso de substâncias. O risco para a saúde mental é claro: a diminuição de protagonismo nas discussões de saúde global. E isso pode impactar, ao longo do tempo, as políticas de saúde mental dos países.
Neste cenário será essencial garantir espaço – e orçamento – para a agenda de saúde mental, tanto na integração com outra agenda de saúde, quanto para sua atuação autônoma.
Já o 6th Global Ministerial Mental Health Summit traz uma novidade de largada: será realizado, pela primeira vez, no Oriente Médio – as edições anteriores ocorreram na Europa e, no ano passado, na América do Sul. Além disso, a proposta de abordar inovações e desafios trazidos pelas tecnologias digitais, entre outros temas, poderá surpreender – se positivamente, veremos.
O debate inédito proposto é relevante porque parte do reconhecimento de que o uso de tecnologias está se integrando progressivamente à vida das pessoas; também reconhece que, localmente, respostas que propõe uma ideia de saúde mental digital estão sendo produzidas com rapidez, mas ainda carecem de reflexão. Exemplos disso incluem o uso crescente de telessaúde mental, a profusão de aplicativos com propostas que vão de promoção de bem-estar ao acompanhamento de pessoas, e iniciativas que se propõe a realizar prevenção e diagnósticos de problemas de saúde mental com o uso de inteligência artificial.
E, vejam, com todos os problemas que podem ter cada uma dessas propostas aqui estamos no terreno apenas do que é dotado de mínima institucionalidade e intencionalidade de resposta em saúde, havendo ainda um vasto e não conhecido uso informal de uso de tecnologias com uma suposta ideia de cuidado, mas com seríssimos problemas éticos, de privacidade, de segurança e de proteção de dados, além do fato de que não promovem cuidado.
Como este é um terreno novo e de muitas incertezas, resta acompanhar qual será a perspectiva que prevalecerá nas discussões neste evento.
Sofrimentos locais
O que deveria ser central – mas tantas vezes falta – nesses espaços de debates sobre saúde mental global?
As pessoas.
Pessoas com necessidades reais, em contextos reais, que vivenciam sofrimentos. Os discursos são globais, mas os sofrimentos são locais – como bem aponta Benedetto Saraceno em seu livro de 2015, Discorso Globale, Sofferenza locale [“Discurso Global, Sofrimento Local”, ainda sem tradução para o português), que analisa contradições do movimento da saúde mental global.
Nesses espaços, é necessário recordar que as pessoas vêm em primeiro lugar, para que as discussões produzam respostas reais às suas necessidades. O risco sempre posto para a saúde mental global é o de, como afirma Saraceno, ela ser um “projeto de globalização do modelo biomédico da psiquiatria”. Em um cenário em que a agenda forte da saúde mental – aquela focada em garantir o mínimo de dignidade com cuidado em liberdade e respeito aos direitos – pode ver seu protagonismo diminuído nos próximos anos, e em que propostas em saúde mental digital são produzidas indiscriminadamente sob o nome de ‘inovações’, com foco no indivíduo, em um modelo de causa-solução, e sem reflexão sobre as perspectivas com as quais se articulam ou sobre os impactos que podem produzir no percurso de cuidado, esse risco é evidente.
Talvez a situação de financiamento em políticas de saúde mental no mundo ilustre o quanto é ainda necessário avançar para cuidar das pessoas. Segundo o World Mental Health Report de 2022, em média, os países destinam menos de 2% de seus orçamentos em saúde à saúde mental. E esses escassos recursos são, frequentemente, destinados a estabelecimentos que não respondem às reais necessidades de cuidadodas pessoas e a instituições de características asilares: esse é o caso de cerca de 70% dos países de renda média, nos quais a maior parte do orçamento da saúde mental ainda é direcionada a hospitais psiquiátricos. Ou seja, além de insuficientes, os recursos disponíveis são, muitas vezes, muito mal utilizados. Na prática, para as pessoas, isso se traduz em ausência de cuidado e violação de direitos.
Por isso é pensando nas pessoas, em seus contextos reais de vida, que os debates precisam ser estrategicamente conduzidos. Certamente há novos desafios na saúde mental global. Mas os antigos – aqueles vivenciados diretamente no corpo das pessoas que sofrem – continuam existindo.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.