A difícil superação das desigualdades na Saúde

Em debate no último dia do Congresso da Alames, reflexões sobre a busca por igualdade. Mesmo em situações de melhora, abismo entre ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres permanece. Até quando a democracia suportará essas enormes disparidades?

Créditos: Naomar Almeida Filho
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A saúde de uma população reflete, de forma muito sensível, as desigualdades presentes nela. Assim iniciou sua fala o pesquisador e médico sanitarista Mauricio Barreto, na mesa Estratégias para superar as desigualdades sociais para produzir saúde, que aconteceu na sexta-feira (8), último dia do Congresso Latino-americano de Medicina Social e Saúde Coletiva. Ao analisar os indicadores de saúde, mostrou ele, é possível enxergar como as questões de desigualdade se refletem no dia a dia e no curso da vida das pessoas.

Embora alguns desses indicadores, como expectativa de vida, estejam melhorando ao longo das últimas décadas, a distância entre grupos sociais se mantém. Ou seja, a igualdade é muito difícil de se alcançar, mesmo com políticas públicas, mostrou Mauricio. Essa compreensão já existe há décadas: em 1982, o parlamento britânico encomendou uma avaliação do Sistema Nacional de Saúde (NHS) e constatou sua incapacidade de reduzir as desigualdades do Reino Unido. Ainda assim, foi só a partir da segunda metade dos anos 2000 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a se debruçar sobre os “determinantes sociais da saúde” e propor ações concretas.

No contexto latino-americano, a complexidade se acentua. Mauricio lembra que, embora o continente não tenha os maiores índices de pobreza do mundo, é aqui onde a desigualdade é mais pronunciada. O pensamento sanitário da região já encara a questão de frente há décadas, e a própria concepção da Medicina Social e da Saúde Coletiva são prova disso. Na região, “é a democracia, que se intensifica no início do século, que permite que um conjunto de políticas pró equidade, distributivas, possam ser implementadas”, afirma Mauricio.

Mas há uma questão incômoda, levantada pelo pesquisador que fundou o Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs) da Fiocruz/Bahia. O centro – onde há o maior recurso de dados entre todos os países de baixa e média renda no mundo – analisou dezenas de estudos sólidos mostrando os efeitos do Programa Bolsa Família. Embora seu foco principal não seja a Saúde, os dados mostram que o programa de transferência de renda para a população mais pobre impactou diretamente os índices de mortalidade materna, suicídio, doenças infecciosas, uso de drogas etc. Mauricio provoca: “talvez, os programas sociais, no contexto brasileiro, no período em que foram intensamente desenvolvidos, tenham mais impacto nas transformações da saúde do que o próprio sistema de saúde”. Ele destaca, no entanto, que essas desigualdades têm componentes estruturais, então não poderão ser resolvidas apenas com políticas públicas.

As disputas

Em sua fala, Sonia Fleury, socióloga e um dos nomes mais proeminentes da Reforma Sanitária brasileira, também participante da mesa, buscou compreender a origem dessas desigualdades. Afirmou, de antemão: no capitalismo, as iniquidades não serão totalmente exterminadas, pois são constitutivas do sistema e através delas é gerado o processo de acumulação de capital – mas também estão na origem das lutas sociais. 

Seu questionamento: até que ponto a democracia consegue conviver com níveis extremos de desigualdade? Sonia alertou que, em vez de gerar coesão social, como em outros momentos históricos, nos últimos anos a desigualdade tem alimentado regimes autoritários e o desmonte de políticas públicas. A cidadania, outrora um instrumento de inclusão, hoje opera como um mecanismo de exclusão: enquanto alguns têm direitos garantidos, outros são relegados ao “estado de exceção”. Essa fragmentação é agravada pela financeirização da economia, que esvazia a capacidade redistributiva dos Estados nacionais e aprofunda a disjunção entre capitalismo e democracia.

A crise de subjetividade – marcada por medo, ódio e falta de sentido – exige, segundo Sonia, uma disputa ideológica urgente, em especial nesse período em que a esquerda prioriza manter instituições em detrimento da construção de novas narrativas hegemônicas. A sanitarista defendeu que é preciso ressignificar o desejo de autonomia da população, hoje cooptado pelo neoliberalismo na figura do “empreendedor”. “Como desarticular essa armadilha que entramos?”, se pergunta ela. “O que temos que construir, agora, é uma perspectiva que fortaleça o Comum como princípio articulador da produção, da reprodução e das relações sociais. Que leve em conta os sofrimentos que a população vive e os espaços possíveis de construção desse Comum”, finalizou ela.

Desigualdades de gênero

Também presente no debate, a pesquisadora e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Simone Grilo Diniz, acrescentou uma visão sobre as disparidades de gênero em saúde. Ela destacou que pobreza e discriminação agravam desigualdades, mas também apontou situações inesperadas, que desafiam explicações convencionais. No Brasil, dados mostram que mães mais ricas, apesar de melhor acesso à assistência, têm maior taxa de bebês prematuros, associada à alta frequência de cesáreas e intervenções desnecessárias. Isso tem impactos na amamentação, nos custos e na sobrevivência infantil. 

Esse padrão se repete em doenças crônicas e cânceres reprodutivos, nos quais tanto a falta quanto o uso inadequado da tecnologia elevam a mortalidade. Simone criticou o retrocesso em políticas de saúde da mulher, a diminuição da oferta de métodos contraceptivos de barreira e a distorção do discurso de equidade para justificar o consumo de tecnologias ou tratamentos sem base sólida. Ela alertou que, no país, ainda se morre tanto por ausência quanto pelo excesso de assistência. E mostrou que há uma saída importante: permitir a retomada de poder das mulheres na área da saúde. Segundo as evidências, contou Simone, “quanto maior a participação feminina, melhores os resultados nos campos da saúde”.

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