A destruição da Saúde de Gaza, em números e crimes
Relatórios produzidos por ONU e Médicos Sem Fronteiras atestam que instalações e profissionais de saúde foram alvo preferencial dos ataques. Com cessar-fogo, é hora de aumentar a pressão internacional pela punição pelos crimes de guerra de Israel
Publicado 17/01/2025 às 10:55 - Atualizado 17/01/2025 às 10:57
Na última quarta-feira (15/1), foi anunciado um acordo de cessar-fogo entre as forças da resistência palestina e o exército de Israel. Hoje, momentos antes da publicação deste texto, o gabinete israelense deu seu aval à trégua. Ainda restam algumas etapas à sua implementação, mas há chances reais de que ela ponha um fim – ainda que possivelmente temporário – à carnificina que se abateu sobre a Faixa de Gaza nos últimos 15 meses.
Pelo menos 46,7 mil palestinos foram assassinados pela máquina de guerra israelense durante esse período, de acordo com a última contagem do Ministério da Saúde de Gaza. Um estudo recém-publicado na Lancet sugere que há uma subnotificação de pelo menos 41% nas mortes violentas, e estima que o número mais provável é de cerca de 65 mil óbitos. Desse contingente, três quintos seriam mulheres e crianças. A análise não inclui aqueles que faleceram de forma indiretamente ligada ao conflito (como de fome, frio ou por falta de cuidados médicos), soma que ampliaria ainda mais essa cifra.
Contudo, a campanha de devastação não infligiu apenas enormes perdas humanas na Palestina. Entre o final de dezembro e o início de janeiro, foram divulgados dois importantes documentos que trouxeram novos detalhes sobre outra prática das tropas invasoras de Israel: a sistemática destruição de hospitais e demais instalações sanitárias de Gaza, acompanhada da transformação dos trabalhadores da saúde em alvo prioritário das bombas.
Uma atualização do informe da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF) enumera os “bombardeios, batidas e incursões” de “um ano de ataques incessantes à saúde da Palestina”, em especial os que atingiram suas próprias instalações. Por sua vez, um relatório produzido pelas Nações Unidas também conta com uma análise jurídica das inúmeras violações do caráter de proteção aos hospitais e ao pessoal médico, além de outras infrações. A seguir, Outra Saúde apresenta as estatísticas dos danos causados e as conclusões da ONU – que neles vê uma série de “potenciais crimes”, inclusive contra a humanidade, que podem pôr Israel e seus líderes no banco dos réus pela destruição da saúde de Gaza.
Uma destruição intencional e sistemática
Como aponta a publicação da MSF, longe de estar sendo acidentalmente atingido pelas bombas israelenses, o sistema de saúde da Faixa de Gaza foi “sistematicamente desmantelado” nos últimos 15 meses. Parte da prova está nos números. Mais de mil trabalhadores da saúde foram assassinados pelas forças de ocupação desde outubro de 2023. Além disso, 19 dos 36 hospitais do enclave deixaram de funcionar.
Os 17 complexos hospitalares restantes também já foram atingidos pelos mísseis e tiros de tanque, e alguns deles chegaram a estar fora de operação em diferentes momentos da guerra. Todos funcionam apenas parcialmente, devido à perda de equipamentos e materiais causada pela agressão – disto, nascem os tétricos relatos, que inundam as redes sociais, de cirurgias realizadas sem anestesia ou de óbitos de pacientes por falta de condições para que recebam cuidados. “É impossível estimar qual será o custo indireto em mortes ou danos de longo prazo que resultem da negação de ajuda ou tratamento”, avalia a MSF.
Apesar do agravamento radical das violações, a organização destaca, “os problemas enfrentados pelos palestinos em Gaza e na Cisjordânia são muito anteriores ao dia 7 de outubro”. Para a Médicos Sem Fronteiras, a crise humanitária que a Faixa de Gaza já vivia antes da escalada do conflito foi “causada pelo bloqueio israelense que já dura 17 anos”. Desde 2007, os governos do país põem enormes impeditivos à entrada de insumos de saúde no enclave, alegando que eles poderiam ser utilizados para fins bélicos. Na prática, a maioria dos materiais acaba não entrando – e os usuários do sistema de saúde local sofrem com a impossibilidade de receberem tratamento médico do mais alto nível.
Ao fim da publicação, a Médicos Sem Fronteiras apresenta uma linha do tempo dos 50 ataques – mais de 3 por mês, em média – perpetrados por Israel contra seus funcionários e instalações durante a guerra. 8 trabalhadores da organização foram mortos. Com a leitura dos relatos, é possível entender em maior detalhe o modus operandi das tropas sionistas. Vários hospitais (Nasser, al-Awda, al-Emirati, al-Aqsa, Khalil Suleiman, al-Shifa, entre outros) evacuados na ponta do fuzil ou intencionalmente atingidos por artilharia. Ambulâncias atingidas por bombardeios aéreos. Profissionais de saúde ameaçados, presos, torturados ou mortos pelos soldados. Em suma, o cenário de um genocídio.
Punição à vista?
Ampliando o escopo, o relatório da ONU verifica o acontecimento de violações muito similares às relatadas pela MSF também nas instalações de saúde não ligadas ao grupo. As operações das Forças de Defesa de Israel (FDI) “seguiram um padrão, com impactos catastróficos à funcionalidade dos hospitais e à vida dos que dependem de seus serviços, bem como dos que perderam suas casas e se abrigam em seu interior”. Mais: os incessantes bombardeios, os tiros contra civis e pessoal médico, e outros incidentes – cuidadosamente referenciados pelo trabalho, muitas vezes com documentação das próprias FDI – são evidências do uso de “táticas de cerco” contra hospitais, um flagrante crime de guerra.
Todos os palestinos são afetados pelos ataques, mas o relatório destaca que alguns dos mais impactados são aqueles com “condições não-fatais potencialmente transformadas em fatais” pela falta de recursos. É o caso de pacientes oncológicos, grávidas, pessoas com doenças crônicas e aqueles que passaram a estar expostos a doenças infecciosas pela destruição da infraestrutura de saneamento, mas também de muitos outros.
Passando à análise jurídica desses fatos, o relatório indica que à luz do direito internacional “os ataques a hospitais implicam uma série de violações, incluindo ao direito à saúde, alimentação, água e, em última instância, ao direito à vida”. Com suas ações, Israel teria desrespeitado seus deveres legais enquanto potência ocupante, violado o status de proteção aos hospitais e profissionais de saúde na guerra, ignorado suas obrigações quanto ao uso de explosivos, além de cometido outras violações menos sistemáticas, diz o material.
O Escritório de Direitos Humanos da ONU conclui que muitas das ações contra a infraestrutura sanitária de Gaza, de que há inúmeras evidências que foram cometidas por Israel, “são crimes de guerra”. Além disso, por terem sido perpetradas de forma possivelmente sistemática, os atos passam a “poderem ser considerados crimes contra a humanidade”.
O relatório destaca que “dadas as limitações do sistema de justiça de Israel frente à conduta de suas forças armadas, são necessárias investigações independentes que reúnam e preservem indícios para futuros processos em tribunais nacionais com jurisdição universal ou tribunais internacionais”, que podem condenar o Estado e seus líderes.
Neste momento em que um cessar-fogo é iminente, a hora é propícia para que os crimes israelenses contra hospitais, trabalhadores da saúde e a saúde de todo o povo de Gaza sejam lembrados – e a pressão internacional, inclusive do setor sanitário, se intensifique para que seus perpetradores não fiquem impunes. A leitura completa de ambos os documentos é dura, mas essencial para entender a extensão desses crimes, que não podem ser esquecidos.