A China tece a Rota da Seda da Saúde
Suspensão das verbas da Usaid interrompe programas humanitários que levavam o soft power dos EUA aos países em desenvolvimento. No vácuo, chineses apresentam sua proposta: um “futuro compartilhado” com fortalecimento dos sistemas de saúde locais
Publicado 17/02/2025 às 08:00 - Atualizado 17/02/2025 às 09:32
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Por Health Policy Watch | Tradução: Guilherme Arruda
Por trás de andaimes azuis onde se lê “China Aid for shared future” (“Ajuda chinesa para um futuro compartilhado”, em inglês), está em andamento uma grande expansão do Hospital Distrital de Masaka, localizado na cidade de Kigali, a capital de Ruanda.
O hospital passará de 330 para ao menos 830 leitos e deverá se tornar o principal hospital-escola do país, com a conclusão das obras prevista para julho.
A China concedeu um financiamento de US$42 milhões ao governo de Ruanda para a reforma do hospital de Masaka, mas sua relação com o equipamento é mais antiga – o governo chinês ajudou a construí-lo em 2011 e, desde 2018, fornece especialistas médicos para seu funcionamento.
“A construção do Hospital Distrital de Masaka é um dos maiores projetos apoiados pela China em Ruanda e é um novo marco da cooperação em infraestrutura de saúde entre os dois países”, disse o embaixador chinês em Ruanda, Wang Xuekun, na ocasião do início das obras, em 2023.
O apoio chinês se faz claro em cada canto de Masaka. Um outdoor na entrada apresenta os nove especialistas chineses que atualmente trabalham no hospital. Uma sala oferece medicina tradicional chinesa: “acupuntura”, explica uma enfermeira. Além disso, a China envia novos profissionais médicos todos os anos, diz o diretor-geral do hospital, Dr. Jean Damascene Hanyurwimfura.
Hoje, a China é o maior parceiro comercial de Ruanda. Até 2022, o Conselho de Desenvolvimento de Ruanda havia registrado investimentos chineses no valor de US$ 182,4 milhões, um aumento de 30% em relação ao ano anterior.
O ocaso da influência americana
Na entrada do hospital, há uma pequena placa da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, a USAID.
“Os EUA nos ajudaram a treinar e orientar médicos e enfermeiros em saúde materna e infantil”, disse Hanyurwimfura. “Mas, neste mês, isso foi suspenso. Ainda não sentimos um grande impacto, porque as pessoas já foram treinadas, mas no futuro haverá uma lacuna.”
Isso ocorreu após a decisão do novo presidente dos EUA, Donald Trump, de suspender toda a ajuda externa por 90 dias a partir de 20 de janeiro, seguida pelo desmonte da USAID promovido por Elon Musk.
A partir de 2004, Ruanda passou a ser o destino de volumosos recursos do Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Combate à AIDS (PEPFAR). Até 2020, o país havia recebido US$1,45 bilhão do programa. Só em 2022 e 2023, foram mais de US$67 milhões enviados.
Porém, diferentemente de muitos outros beneficiários do PEPFAR, Ruanda tomou a decisão de criar um modelo de atenção integrada à saúde, e não apenas um programa vertical focado no HIV. Isso permitiu que os recursos do PEPFAR ajudassem a estruturar o sistema de saúde do país e a garantir vagas de emprego para os profissionais de saúde locais.
Após o choque inicial com a suspensão dos fundos, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, se apressou a esclarecer que os programas humanitários “essenciais” não precisariam ser interrompidos.
Depois, em 1º de fevereiro, um comunicado foi enviado às agências implementadoras do PEPFAR e aos coordenadores nacionais do programa esclarecendo que os “serviços essenciais de cuidado e tratamento do HIV” cobriam testagem e aconselhamento para HIV, prevenção e tratamento de infecções oportunistas (iincluindo a tuberculose), serviços laboratoriais, compra e fornecimento de medicamentos e serviços de prevenção da transmissão do HIV de mãe para filho.
Apesar do recuo na suspensão dos fundos, o desmonte da USAID pela administração Trump significa que a equipe norte-americana responsável por garantir os pagamentos e a entrega de medicamentos antirretrovirais não existe mais. Como resultado, projetos do PEPFAR ao redor do mundo estão enfrentando interrupções.
Além disso, o apoio a certas atividades-chave, como os serviços de saúde voltados para trabalhadores do sexo e homens que fazem sexo com homens, foi cortado.
A retirada dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) também pode impactar o setor de saúde de Ruanda de outras maneiras. A OMS tem apoiado o país em diversas iniciativas, oferecendo suporte financeiro e técnico para combater um recente surto do vírus Marburg. Um quarto das ações de resposta emergencial da OMS são financiadas por recursos norte-americanos, o que significa que essas atividades deverão ser reduzidas.
Entra em cena a “Rota da Seda da Saúde”
No âmbito multilateral, a China parece relutante em aumentar sua contribuição à OMS para compensar a saída dos EUA. Na recente reunião do conselho executivo da agência, o país se opôs ao aumento de 20% nos repasses obrigatórios à organização, mesmo tendo concordado com a proposta em 2022.
No entanto, é provável que a China ajude bilateralmente os países afetados pela saída dos EUA. Em especial, aqueles como Ruanda, onde tem investido substancialmente há anos.
Entre 2003 e 2018, o investimento chinês em desenvolvimento na África cresceu de US$75 milhões para US$5,4 bilhões – um aumento de 7100%, segundo os pesquisadores Nader Habibi e Hans Yue Zhu.
Oprograma de cooperação multilateral da China, focado no desenvolvimento de infraestrutura para países mais pobres, chama-se Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI). Porém, nos últimos anos ela passou a se referir à “Rota da Seda da Saúde (HSR)”, que agora é considerada um elemento-chave da agenda da BRI.
Os pesquisadores destacam que a HSR inclui “infraestrutura de telecomunicações de alta tecnologia, equipamentos médicos e serviços de saúde”.
“Em um cenário de crescente rivalidade geopolítica e de intensificação dos esforços dos EUA para conter o papel global da China, o governo chinês está usando a iniciativa da Rota da Seda da Saúde para expandir sua influência na África e em outros lugares”, argumentam.
Em setembro passado, na abertura do Fórum de Cooperação China-África em Pequim, o presidente chinês Xi Jinping prometeu apoiar o continente de dez maneiras diferentes. Uma delas, a saúde.
“A China está disposta a estabelecer uma Aliança Hospitalar China-África e construir um centro médico conjunto”, disse Xi.
Ele também acrescentou que “a China enviará 2.000 equipes médicas à África, implementará 20 projetos antimalária, incentivará empresas chinesas a investir na produção de medicamentos e continuará a fornecer assistência no combate a epidemias na África dentro de suas possibilidades”.
“A China apoiará a construção dos Centros Africanos para Controle e Prevenção de Doenças e fortalecerá as capacidades de saúde pública dos países africanos”, concluiu Xi.
Para implementar sua “Iniciativa das Dez Parcerias”, a China pretende investir US$50 bilhões nos próximos três anos.
Soft power dos EUA em queda
O desmantelamento da USAID abriu portas para a China em todo o mundo – não apenas na África. Segundo a Newsweek, poucos dias após o congelamento dos fundos da agência, a China agiu rapidamente para apoiar um projeto no Camboja que remove minas terrestres e bombas não detonadas.
Na América Latina, o grande vácuo de financiamento após a retirada da ajuda dos EUA também abriu espaço para que a China ofereça mais ajuda a países como o Brasil, a Colômbia e o Peru. A nação mais pobre da Ásia Central, o Tajiquistão, anunciou que seus programas de HIV, tuberculose, malária e saúde materna e infantil foram cortados.
“Até que haja um mecanismo claro para o futuro da ajuda da USAID, procuraremos outras formas de dar continuidade ao nosso trabalho”, disse o ministro tajique da Saúde e Assistência Social, Jamoliddin Abdullozoda, em uma coletiva de imprensa nesta semana.
“Por meio da Rota da Seda da Saúde, do posicionamento estratégico de pessoal e sua crescente proximidade com as nações em desenvolvimento, Beijing está trilhando um caminho para a liderança global da saúde que não exige mandar cheques gordos para Genebra”, argumenta o professor Yanzhong Huang, especialista em saúde global no Council on Foreign Relations e professor da Universidade Seton Hall.