A Anvisa diante de seus novos desafios
São dois, ao menos. A judicialização crescente – que não é causa dos problemas, mas reflete um SUS subfinanciado. E a falta de pessoal, que atrasa a aprovação de registros de medicamentos. Thiago Campos, primeiro homem negro na diretoria do órgão, reflete sobre eles
Publicado 24/09/2025 às 08:09 - Atualizado 24/09/2025 às 08:43

Poucos anos após a autarquia ocupar um papel central na resposta do país à pandemia da covid-19, a nova diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se depara com um leque renovado de desafios. Entre eles, se incluem a pressão ligada à alta na judicialização para fornecimento de medicamentos não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos, bem como as dificuldades decorrentes da falta de pessoal no órgão.
Em meio ao Seminário SUS 35 anos realizado na semana passada, Outra Saúde entrevistou o advogado baiano Thiago Campos, um dos três novos diretores da Anvisa empossados na quinta-feira da semana anterior (11/9), para conhecer as perspectivas dos nomes que agora assumem a agência sobre alguns desses temas. Campos, que é o primeiro negro a compor a diretoria do órgão, foi empossado junto de Daniela Marreco Cerqueira e Leandro Pinheiro Safatle, este último sendo nomeado diretor-presidente da autarquia.
A cerimônia de posse encerrou um longo impasse, durante o qual três das cinco cadeiras da diretoria da autarquia ficaram vagas por quase nove meses. Desejosos de emplacar aliados em uma série de agências reguladoras, membros do Senado Federal se recusaram por todo um semestre a pôr em pauta a votação dos nomes já indicados.
Vice-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), Campos avalia que a judicialização não pode ser considerada a causa de problemas para a saúde pública. “Ter acesso à Justiça é uma garantia democrática. É importante que, diante de uma violação ou do risco da violação ao direito, as pessoas possam se socorrer de um ente que tenha o poder de fazer aquele direito. Muitas ações exitosas do SUS foram fruto da judicialização promovida por entidades da sociedade civil, como algumas políticas públicas de HIV/aids”, pondera.
“Nos últimos anos, a judicialização apareceu como um tema central para o SUS, mas ela é apenas consequência de outros fatores que precisam ser avaliados. O subfinanciamento da saúde pública, a ausência de um sistema bem regionalizado e hierarquizado e as pressões do mercado pela incorporação de novas tecnologias é que causam a judicialização. É importante fazer um esforço de distinguir, para não ofuscar as causas dos problemas”, complementa.
Thiago Lopes Cardoso Campos é advogado sanitarista e especialista em Direito Sanitário e Gestão de Políticas de Saúde. Antes de ser indicado para a diretoria da Anvisa, foi consultor jurídico da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e atuou como gerente de projetos da Secretaria de Atenção à Saúde e diretor de programa da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde, em gestões anteriores do Ministério da Saúde. É conselheiro titular do Conselho Estadual de Saúde da Bahia.
Atualmente, a judicialização já corresponde a 33% do total gasto com assistência farmacêutica pelos estados brasileiros, de acordo com um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo pesquisas conduzidas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o fenômeno também avança sobre o orçamento dos municípios, especialmente com medicamentos para tratamento do sistema nervoso e de doenças degenerativas crônicas. Para diversos especialistas e ativistas da área da saúde, esse processo impacta a capacidade do Estado, em seus diferentes níveis, de planejar os gastos do SUS.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu uma decisão em que buscou definir regras para o fornecimento de medicamentos pela via judicial. O entendimento da corte prevê que, em linhas gerais, “a Justiça não pode determinar o fornecimento de medicamentos que não estão incorporados no SUS”. No entanto, eles poderão ser concedidos de forma excepcional, caso estejam registrados na Anvisa e cumpram uma lista de seis requisitos definidos pela própria autarquia.
Na visão de Campos, a decisão é um avanço ao promover uma racionalidade mínima para as futuras disputas, ainda que haja discordâncias quanto aos detalhes da decisão do STF. “Essa racionalização passa inclusive pela valorização do papel da Anvisa. A decisão reconhece que a Anvisa é o ambiente que faz uma avaliação da qualidade, eficácia e segurança dos produtos, para conceder o registro daquilo que pode ser comercializado no nosso país”, defende.
Por outro lado, o advogado opina que uma nova onda de judicialização poderá advir da demora da Anvisa na conclusão de processos de registro de medicamentos e outros insumos de saúde, cada vez mais destacada pelos meios de comunicação.
A falta de pessoal na Anvisa
No ano passado, após uma crítica pública de Lula à Anvisa pela demora no registro de remédios, o então diretor-presidente Antonio Barra Torres enviou uma carta aberta ao presidente da República em que afirmou tê-lo alertado 26 vezes da falta de funcionários que atinge a autarquia. “Com o número insuficiente de trabalhadores e com tarefas que só fazem crescer, o tempo para realização de tais tarefas só pode se tornar mais longo”, diz a missiva de agosto de 2024.
“O atual Governo Federal foi alertado que o número insuficiente de servidores traria impacto direto no cumprimento da missão da Agência, desde o Gabinete de Transição, logo após as eleições de 2022, quando os diretores da Anvisa foram convidados a expor e detalhar essa carência de pessoal, e quatro ofícios foram encaminhados, à época”, também escreveu Barra Torres.
Nos últimos anos, centenas de quadros da Anvisa faleceram, se aposentaram, entraram em licença médica ou mesmo buscaram outros caminhos profissionais – neste último caso, não em pequena parte devido ao clima hostil ao órgão durante o governo Jair Bolsonaro –, o que agravou as dificuldades na condução de seu trabalho. No entanto, a resposta do atual Governo Federal ainda é tímida. Em 2024, um concurso abriu 50 vagas para a autarquia – 48 foram preenchidas. Neste ano, o Concurso Nacional Unificado (CNU) prevê a adição de apenas mais 14 servidores públicos para a Anvisa.
Thiago Campos oferece uma avaliação sobre o cenário: “A falta de pessoal é um fato. Qualquer comparação com outras agências internacionais do mesmo porte, da mesma confiabilidade e do mesmo grau de credibilidade da Anvisa demonstra que aqui temos menos trabalhadores do que as demais. Além disso, trata-se de um quadro de servidores envelhecido, em fase de aposentação”.
O advogado defende que o Ministério da Saúde (MS) e o Governo Federal estão buscando alternativas para fortalecer a Anvisa. Ele relembra que a Medida Provisória nº 1.301/25, que instituiu o programa Agora Tem Especialistas, remanejou cerca de 400 postos que estavam ociosos no MS, transformando-os em 129 vagas na carreira de Regulação e Fiscalização Sanitária da Anvisa.
Além disso, em comunicado de maio, a autarquia afirmou que “o Ministério da Saúde está elaborando os estudos necessários para a criação de 256 novos cargos efetivos para a Anvisa, por meio da transformação de [mais] cargos vagos do próprio Ministério. A proposta deverá ser formulada em projeto de lei, a ser enviado ao Congresso Nacional no segundo semestre”. A soma dessas duas medidas, ainda a serem concretizadas, fortaleceria o órgão de regulação sanitária com mais 385 postos – mas sem criar novas vagas no serviço público, em um cenário bastante ilustrativo da austeridade fiscal que assola o país desde meados da década passada.
Na visão de Campos, agora que foi empossada, a nova diretoria deve trabalhar para se aproximar do atual quadro de servidores e buscar conhecer suas opiniões e também as insatisfações, promovendo um processo coletivo de reaproximação. Ele explica que já foram iniciadas reuniões que buscam congregar membros de diversas áreas, estimulando a troca de avaliações entre o pessoal das diferentes gerências e a participação efetiva dos funcionários na condução do trabalho cotidiano. “Vamos precisar prover gente e aumentar os quadros, mas também precisamos remotivar a turma para um projeto que faça sentido, porque só assim vamos conseguir fazer o nosso melhor”, propõe.
Central para o próximo período, resume Thiago Campos, é o fortalecimento da autarquia e de seu trabalho. “A Anvisa é muito importante não só para o Sistema Único de Saúde em específico, mas para toda a sociedade brasileira”, concluiu.
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