Salvador, capital afro para quem?
Há uma cidade onde a negritude é domesticada para caber no marketing turístico. E a da resistência – aos despejos, violências e apagamento. Nova lei que impõe símbolos cristãos e o Cemitério da Pupileira, onde cem mil corpos negros foram soterrados, escancaram a cisão
Publicado 19/12/2025 às 19:43 - Atualizado 19/12/2025 às 19:44

“A cidade que se anuncia solar permanece de pé porque decidiu enterrar a própria sombra.”
Duas leis sancionadas recentemente pelo prefeito Bruno Reis, a 9.888/2025 e a 9.893/2025, escancaram esse projeto de domesticação do imaginário e da experiência negra na cidade. A primeira obriga o uso de um manto tipo sudário em todos os enterros da cidade. A segunda estabelece a Bíblia como material paradidático na rede municipal. Ambas avançam, com a sutileza de quem finge neutralidade, sobre a laicidade do Estado — esse princípio constitucional tantas vezes citado e tantas vezes traído.
A contradição é gritante: a Constituição se diz laica, plural, fundada na justiça e na igualdade, mas traz em seu próprio preâmbulo a invocação explícita a um Deus único. A laicidade brasileira sempre foi assim: afirmada na letra, negada no gesto. E em Salvador, onde religiões de matriz africana ainda enfrentam criminalização cotidiana, essa negação ganha contornos ainda mais perversos.
Salvador gosta de se vender ao país — e ao mundo — como a “capital afro”, vitrine reluzente de uma negritude tratada como ativo turístico, slogan eleitoral, marca de campanha. Mas basta descer os olhos do cartão-postal para o chão quente e desigual da cidade para que a pergunta, incômoda e persistente, se imponha: capital afro para quem?
Há duas Salvador coexistindo. A que desfila trios, cores e baianas para as câmeras — e a que permanece empurrada para um subsolo histórico, social e simbólico. Uma cidade subterrânea, construída pelos que nunca foram autorizados a habitá-la plenamente. A disputa entre essas duas cidades reaparece com violência toda vez que o poder público tenta definir, controlar ou normatizar a vida negra — até mesmo na hora da morte.
A obrigatoriedade do manto tipo sudário não é um detalhe. É uma intervenção direta nos rituais fúnebres que sustentam a cosmovisão afro-brasileira há séculos. É o Estado ditando como um povo deve cuidar de seus mortos — justamente um povo que, historicamente, teve seus mortos negados, apagados, ocultados. Já a imposição da Bíblia como material pedagógico reedita um velho roteiro: o da catequese institucional, agora travestida de política educacional.
Esses movimentos não acontecem no vazio. São parte de um lento e calculado retorno simbólico dos jesuítas — não com batinas ou crucifixos, mas com leis municipais que disciplinam mentes, comportamentos e memórias. Uma nova pedagogia da dominação, atualizada, higienizada, estrategicamente silenciosa.
Se o poder público estivesse de fato comprometido com espiritualidade, memória e dignidade, talvez começasse pelo Cemitério da Pupileira, antigo cemitério de pessoas escravizadas descoberto em Salvador, Bahia, sob um estacionamento da Santa Casa de Misericórdia, onde jazem mais de 100 mil corpos: negros, indígenas, ex-escravizados, pobres. Gente sem nome, sem lápide, sem reparação. Ali está mais um verdadeiro arquivo da cidade que diz ser “afro”: um solo saturado de vidas interrompidas que nunca receberam justiça. Ali se encontra a prova de que, em Salvador, a morte negra continua sendo descartável.
É impossível olhar para a Pupileira e não perceber a continuidade entre a Lei Áurea de 1888 — tão celebrada quanto incompleta — e a legislação atual. A abolição não libertou: largou. Não integrou: abandonou. O país que se orgulha de ter assinado, mesmo que tardiamente, o fim legal da escravidão nunca assumiu o compromisso moral, econômico e político de reparar quem foi escravizado. E agora, mais de um século depois, o que vemos são novas normas que, em vez de devolução de dignidade, produzem tutela, controle e silenciamento.
Mas se há um subsolo escuro tentando engolir a memória negra, há também uma superfície insurgente que se recusa a ser enterrada. A resistência negra em Salvador nunca foi evento: sempre foi método de sobrevivência. Ela aparece nos terreiros que insistem em acender vela mesmo quando o Estado tenta apagar a luz; nas comunidades que recriam políticas de cuidado onde o poder público falha; nas mulheres que, com força ancestral, sustentam bairros inteiros e protegem seus filhos do destino estrutural que lhes foi armado. A resistência é a tecnologia mais antiga dessa cidade — e talvez a única capaz de garantir que o futuro não repita o que o passado produziu com tanto zelo.
É nesse movimento histórico de insubmissão que emerge a importância de termos, pela primeira vez, uma mulher negra, a escritora Ana Maria Gonçalves, na Academia Brasileira de Letras. Sua presença é mais do que simbólica: é ruptura. É a porta que sempre nos disseram estar trancada, sendo aberta não com chave, mas com força de memória. Uma mulher negra na ABL é uma refutação direta ao projeto de apagamento que moldou o país. É a lembrança de que nenhuma instituição é neutra, mas todas podem ser disputadas. É o gesto que afirma que a escrita negra — aquela que nasce na resistência, no corpo, no território e na dor — não cabe mais no rodapé da história: precisa ocupar o centro. A colonialidade não acabou. Apenas trocou de linguagem.
O novembro que deveria ser de afirmação se torna campo de disputa. A cidade que ergue estátuas, museus e slogans para celebrar uma negritude estetizada se recusa a enfrentar a negritude real — a que sofre despejo, violência religiosa, precarização, racismo institucional. Há um abismo entre a Salvador que vende identidade e a Salvador que nega pertencimento.
Mas a cidade subterrânea resiste. Resiste nos terreiros que sobrevivem ao ataque cotidiano da intolerância. Resiste nas mulheres que seguram bairros inteiros nas costas. Resiste nos jovens que, mesmo cercados por políticas de contenção, inventam outras formas de viver e existir. Resiste nos gestos de memória, nos rituais que ninguém conseguiu domesticar, na recusa em desaparecer.
Se Salvador quer, de fato, ser capital afro, terá de enfrentar o seu próprio subsolo. Terá de olhar para cada corpo enterrado sem nome, para cada ritual violentado, para cada lei que transforma diversidade em doutrina e pluralidade em imposição. Terá de abandonar a catequese disfarçada de gestão pública e assumir a coragem — política, moral e histórica — de reparar o que foi destruído.
Até lá, resta continuar perguntando, como quem cava a terra ainda úmida da Pupileira: Afinal, capital afro para quem?
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