Pontos de Mídia Livre: por que resgatá-los?

Um de seus criadores narra como política pública surgiu, em 2008, e criou um efervescente universo de mídias independentes. Mesmo experimental, diz, mostrou a importância da aliança entre Cultura e Comunicação, tão necessária, hoje, em tempos de desinformação

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A primeira chamada pública para Pontos de Mídia Livre foi anunciada por mim no Fórum Social Mundial realizado na Amazônia, em Belém do Pará, a 29 de janeiro de 2009. R$ 3,2 milhões em investimento (US$ 1,6 milhão à época) a financiar a comunicação livre como um direito humano básico, o direito à informação polifônica, democrática, vinda das comunidades; inicialmente para contemplar 40 propostas, depois ampliada para 60. Foi uma Ação resultante de demanda do Fórum dos Blogueiros Progressistas, em 2008, quando vários agentes de midialivrismo, sobretudo jornalistas independentes, perceberam que a solução encontrada para a ação cultural nos territórios, via Ponto de Cultura, seria uma boa alternativa para a Mídia Livre. O conceito-chave é mesmo o mesmo: comunicação livre e democrática como direito humano fundamental, assim como o direito à cultura e ao protagonismo sociocultural nos territórios, realizada pelas comunidades, deve ser financiada por políticas públicas. Todavia, o ministério das comunicações sequer cogitava uma política nesse sentido, nem como experimentação piloto. Todo debate sobre o financiamento da comunicação profissional no pais, seguia, e segue, no velho modelo de financiamento via venda de espaços publicitários, assinaturas ou compras avulsas. Mal se dando conta do que viria a se passar nos anos seguintes.

Ao final de 2008 eu realizei reunião com representantes dos blogueiros progressistas (Antônio Martins, Le Monde Diplomatique, e Altamiro Borges, Centro de Estudos de Midia, Barão de Itararé) em São Paulo, um mês depois o edital para chamamento dos primeiros Pontos de Mídia Livre estaria lançado. Nesse ínterim, representantes de TVs Comunitárias (à época, aproximadamente 80 em atuação no país) encontraram-se com o ministro da cultura, Juca Ferreira, pedindo que esse campo também fosse incluído entre os programas e ações do ministério. Juca pediu para que eu os atendesse. No mesmo dia decidi incorporar as TVs Comunitárias e também as Rádios Comunitárias (essas não chegaram a explicitar demanda) no conceito de Mídia Livre. Nascia mais uma Ação a interconectar os Pontos. Mário Jéfferson Leite Melo, diretor Presidente TV CIDADE DE TAUBATÉ, conta como foi essa história, inclusive mostrando os desdobramentos. TVs e rádios comunitárias, quando imbuídas desse propósito, tem um compromisso e impacto nos territórios que é único. Durante o enfrentamento à pandemia de Covid, várias transmitiram aulas à distância, por suas ondas, atendendo a crianças e jovens sem acesso à internet em banda larga; ações de solidariedade, muita coisa boa e bela, necessária e única, se faz através de rádios e tvs comunitárias. Mário Jefferson também relata um caso específico, quando a cidade histórica de São Luiz do Paraitinga sofreu uma terrível enchente, quando a Igreja Matriz, erguida no século XVIII, em taipa, veio abaixo, dissolvida pelas águas que tomaram a cidade, outras edificações centenárias também, gente que perdeu tudo, alguns a vida. Foi o então Pontão de Cultura da TV Cidade de Taubaté, que teve um papel de primeira hora, fundamental na mobilização da solidariedade e enfrentamento à catástrofe que se abateu sobre a cidade de São Luiz do Paraitinga:

“O nosso encontro, enquanto TVs Comunitárias, com as políticas públicas do Ministério da Cultura se deu de forma efervescente no ano de 2009. A TV COMUNITÁRIA de Taubaté, que foi criada em 2002, procurava formas de sustentabilidade e enriquecimento de sua grade de programação. Junto a outros dirigentes, fomos até o então Ministro da Cultura, Juca Ferreira, reivindicar participação nos processos de editais, foi então que, por telefone, o Ministro falou com seu Secretário Nacional de Políticas Culturais, o historiador Célio Turino, que de imediato, apresentou uma forma republicana de participação através de “Prêmios”. Falou da construção do projeto “Ponto de Mídia Livre”, que estava sendo criado para atender as demandas das mídias alternativas. Foi um dos mais abrangentes projetos já pensados para o setor e, com sinal verde, naquele mesmo ano já foi publicado o primeiro edital de Midia Livre.

Depois, o entrelaçamento com o então gestor cultural, Célio Turino, foi se fortificando e de lá, passamos a PONTÃO DE CULTURA com o projeto Central de Mídia Distribuição e Produção Cultural. Muito antes de se falar em “trabalho em rede”, Célio Turino já havia desencadeado o projeto “Brasil de Ponto a Ponto”, onde os trabalhadores de Cultura participavam contando suas experiências e fomentando a necessidade do trabalho integrado. Tive a oportunidade de caminhar ao lado do Turino em diversas localidades, registrando suas palestras e encontros com o povo da cultura e, até em momentos difíceis como foi o caso de São Luiz do Paraitinga, na sua catástrofe, onde até sua Igreja caia em ruínas com a força das águas, e lá estava ele, interrompendo suas férias para ajudar a população através de recursos substanciais na reconstrução de seu patrimônio histórico cultural.”

Abro parêntesis. Ao longo de 40 anos como servidor público (gosto de me apresentar como servidor, aquele que serve) construí uma teoria que me orienta nas funções públicas que exerci: o tempo, a agilidade, são componentes fundamentais na formulação e execução de políticas públicas. Desde Campinas, quando trabalhei como agente cultural em bairros periféricos e favelas no tempo da ditadura, organizando cineclubes e feiras de arte, passando pela direção de museus da cidade, depois secretário de cultura e turismo, ou quando diretor de lazer e recreação na cidade de São Paulo, ou quando no Ministério da Cultura, como secretário de programas e projetos, logo transformada em secretaria da cidadania cultural. Gestor público que não mostra a que veio logo nos primeiros dias é comido pelo sistema. Nos tempos atuais nem há tempo para “governo de cem dias”, há que chegar com diagnóstico preciso, clareza de propósitos e agir. A consulta democrática se dá no convite à ação coletiva, a partir de propósitos comuns, cuja medida é definida no território. A democracia real é a que acontece no fazer coletivo, compartilhando ideias e sentidos, e que vai sendo moldada no processo. Em todos os momentos em que estive em cargo público busquei agir assim e não me arrependo. Em dois dias o conceito, método, custos e metas para o Cultura Viva estavam prontos, em 40 dias o programa já estava na rua, em seis meses os primeiros Pontos estavam em ação. Agi dessa forma em outras políticas públicas anteriormente aplicadas por mim, sei da dificuldade, mas não me arrependo. Se a ideia é boa e necessária ela tem que ganhar formato, teoria, diretriz, os conceitos precisam ser claramente apresentados, e a proposta tem que ser rapidamente colocada em prática. A ordem e a permanência são da lógica de todo Sistema histórico, havendo um conjunto de normas e regras a impedir as mudanças, impondo o conformismo. Quem se conforma se deforma. O Estado é uma fôrma necessária, assim como o poder, mas quem não sabe lidar com ela, se deforma. Fecho parêntesis.

Em 2008 já era possível antever o transbordamento das matrizes tradicionais de comunicação, no modelo Broadcast, quando a emissão e transmissão da informação por meio de sons e imagens se dá de forma centralizada. Com a internet em banda larga a polifonia estava posta. Seria questão de tempo transformar cada pessoa de posse de um smartfone em uma emissora de rádio, ou televisão, ou jornal. À época os smartfones ainda não haviam chegado ao grande público, mas já era possível antever. A qualidade da informação, se lixo informacional ou conteúdos reflexivos vinculadas a processos comunitários e de vida, a forma, se de afeto ou de ódio, seria completamente alterada, inclusive no modo de remuneração. Era premente experimentar formas de financiamento público para a informação relevante, e sem censura ou dirigismo, que fossem um antídoto aos discursos de ódio. Surgem os Pontos de Mídia Livre como resultado do diálogo estabelecido com os blogueiros progressistas e comunicação comunitária. Barbara Szaniecki, que participou do processo, analisa o ocorrido:

Nesse sentido, os “Pontos de Mídia” que o governo Lula, através do Ministério da Cultura começa a implementar como iniciativa pública, são uma tentativa de conceitualizar um projeto que tem como objetivo favorecer a proliferação dos avanços das tecnologias digitais e a multiplicação das informações e dos canais de comunicação, em particular das mídias independentes com maior potencial de experimentação. Esse projeto assume como premissa que essa proliferação é essencial para o desenvolvimento de uma política de comunicação e informação, sobretudo no que diz respeito ao estabelecimento de condições necessárias e suficientes para tornar mais democrático o processo de constituição da opinião pública, além das tradicionais mediações privadas e estatais. As mídias independentes, com efeito, são o elo forte (e não o elo fraco) desse processo, posto que são as únicas capazes de radicalizar o sentido do trabalho colaborativo a serviço da informação e da comunicação.”1

Houve uma convergência de análise entre o que estávamos elaborando conceitualmente no Ministério da Cultura e o movimento social pela democratização da mídia, entre pensadoras e ativistas. De um lado era possível perceber a crise de Mediação, em que os meios de comunicação tradicionais já não conseguiriam “pautar” a opinião pública através do monopólio de informação. De outro, as formas de comunicação vindas das bordas, propiciadas pela internet e redes sociais que engatinhavam, bem como pelos meios de gravação e difusão audiovisuais, que cresceriam exponencialmente na década seguinte. No meio disso a necessidade em assegurar informações com um mínimo de apuro, ética e credibilidade, no que remete à questão do financiamento. Do que procurei coletar de experiências semelhantes pelo mundo, não encontrei nenhuma conceitualmente tão avançada e democrática como os Pontos de Mídia Livre.

Exemplos de projetos contemplados como Ponto de Mídia Livre: difusão de poesia e informações em sacos de papel de padarias, para embrulhar pão; rede Mocorongo para comunicação em comunidades ribeirinhas no rio Tapajós, via sistema de autofalantes; Observatório das Favelas; Ônibus-Ponto de Mídia, para comunicação performática, com o veículo em movimento; e sites e blogs sobre cultura, meio ambiente, comportamento, notícias; e Rádios Comunitárias; e TVs comunitárias.

Uma rede em dinâmica colaborativa através do compartilhamento de conteúdo de comunicação e cultura, ligando comunicação e vida social a partir da proximidade e da cooperação, foi o conceito inicial. Assim como o desenvolvimento de produtos midiáticos interativos. Infelizmente nessa parte não pôde ser plenamente executada, por descontinuidade, também por incompreensão, talvez a ideia estivesse além do momento, mas chegamos a desenvolver uma plataforma autônoma, para compartilhamento de vídeos, fotos e notícias, a Xemelê, abrasileirando o código XML. Uma iniciativa de comunicação pública não estatal, fomentando inicialmente veículos de alcance comunitário e nacional em determinadas temáticas. Apesar de inspirada nos Pontos de Cultura e conceitualmente semelhante, inclusive na mecânica de transferência de recursos, há que fazer uma distinção entre Pontos de Cultura e Pontos de Mídia Livre, pois há especificidades, apesar de complementares. Após a experimentação poderia ter se transformado em uma boa solução de financiamento da comunicação em escala, sobretudo pela origem comunitária, atravessada pela dinâmica dos movimentos, sendo radicalmente polifônica.

A Mídia Livre, comunitária, polifônica, que, a partir desse conceito e Ação pode ter presença em todas as comunidades e territórios do país, de qualquer país. É vital para a contenção da disseminação de notícias falsas, negacionismo e o estabelecimento de um controle cidadão e democrático nas sociedades. No entanto o rumo vai em sentido contrário, não somente no Brasil. Nos Estados Unidos surgem os “desertos de notícias”, com o fechamento de 2 mil jornais locais nos últimos 15 anos. Pela diminuição de meios independentes de financiamento (assinantes, compradores avulsos e anúncios comerciais), somente na Alemanha, a circulação dos grandes jornais caiu 45% nos últimos 20 anos.

Como resposta, sobretudo nos países do hemisfério ocidental, desde 2018 vem sendo desenvolvido o Fórum sobre informação e democracia, com apoio da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), objetivando apresentar soluções para a Comunicação como direito humano fundamental e base para a convivência em sociedades democráticas. Dessa articulação surgiu o relatório Um Novo Pacto pelo Jornalismo (que utiliza a expressão New Deal, em referência às reformas implementadas nos EUA nos anos 1930 para recuperar a economia do país após a Grande Depressão). “O objetivo é repensar o jornalismo, não como ‘setor de mídia’, mas como elemento central da liberdade de imprensa e de expressão”, afirma Christophe Deloire, secretário-geral da RSF e presidente do Fórum. Todas as questões atualmente levantadas em países como Estados Unidos e Alemanha já haviam sido solucionadas conceitualmente no Brasil com a política pública da Cultura Viva e os Pontos de Mídia Livre. Sameer Padania, um dos impulsores do Novo Pacto pelo Jornalismo, explica as razões e o que o movimento internacional tem procurado:

– As forças que minam o velho jornalismo e tentam restringi-lo, controlá-lo e extingui-lo em alguns lugares estão ficando mais fortes, e as técnicas e as frentes a partir das quais isso acontece estão se multiplicando.”

Sameer é um dos autores do relatório desenvolvido pelo Fórum sobre Informação e Democracia, com o apoio da organização Repórteres sem Fronteiras (RSF). O objetivo é dar um novo impulso aos órgãos de mídia – impressa, digital ou linear – e mantê-los sobrevivendo, por vitais para a democracia. Eles perceberam que a realização do Novo Pacto só será possível se os governos e as instituições fundamentais nas sociedades democráticas assumirem o financiamento direto à Comunicação Livre. Entre as recomendações que os países destinem 0,1% de seu Produto Interno Bruto (PIB) para o jornalismo profissional, que no Cultura Viva colocamos como algo mais amplo e conceituado como Mídia Livre. Outro caminho, que aqui apresento como sugestão, seria um imposto sobre o faturamento das redes sociais, algo entre 2% e 5%, que seria destinado a um Fundo para a Mídia Livre, afinal, se as redes sociais são os principais difusores da desinformação, pós-verdade e cultura do ódio, nada mais justo que paguem um imposto para financiar o antídoto.

O princípio é o mesmo que ensaiamos com os Pontos de Mídia, com o governo se comprometendo a respeitar e apoiar uma independência ilimitada, tanto editorial quanto estrutural, como foco em projetos inovadores, aberto a diversos formatos, digitais ou não. Pelo formato do Ponto de Mídia Livre as soluções são sob medida porque se adequam à realidade de cada agente de mídia, como no conceito de Ponto de Cultura. Via articulação em rede, conectando Pontos de Mídia Livre locais, temáticos, regionais ou nacionais, será possível tecer uma visão e uma plataforma para o espectro mais amplo. Plataformas de compartilhamento a partir de grupos de afinidade e interesse, compartilhando conteúdos e informações em um fluxo contínuo de ideias e criações. Com isso se assegura o financiamento da Mídia Livre, de forma ética, democrática, comunitária ou profissional, não por meio de anúncios, que sempre implicam em alguma forma de controle ou censura, que combinada a redes de assinantes e contribuintes dá sustentabilidade coletiva à comunicação. Não por meio de manipulações ou dirigismos, mas porque a coletividade construiu um consenso de que a Comunicação Comunitária e a mídia livre são vitais. Ao lado do financiamento de base pública, assegurando um patamar mínimo de sustentabilidade, também anúncios, incentivos fiscais, monetizações, assinantes, contribuintes, cupons para que cidadãos indiquem a quais mídias querem destinar recursos, o que for. Tudo é possível e melhor quando o alicerce regular e justo para a manutenção democrática e equilibrada está assegurado.

Vários governos já falaram sobre a necessidade de apoiar o jornalismo independente, preservar a liberdade de imprensa e assegurar que os cidadãos tenham acesso à informação. Eles precisam agora agir e exercer liderança nessas questões’, disse Padania.”2

No Brasil, mesmo que de forma experimental e limitada, e feita por um ministério que não o das Comunicações, nós agimos. Da mesma forma que todo município precisa contar com uma Escola, uma Biblioteca, uma unidade básica de saúde, um Ponto de Cultura, uma câmara de vereadores, também precisa de Pontos de Mídia Livre e Comunicação Comunitária, não controlados pelos poderes locais. O mesmo em escala regional, estadual, nacional. Esse fomento tem que ter de origem diferente da verba publicitária, que ao final sempre implica em atrelamento e subordinação. Uma política pública com acesso universal, evitando qualquer forma de controle Estatal/político-partidário sobre os conteúdos jornalísticos, de criação e informações. Vale destacar conclusão em artigo de Bárbara Szaniecki e Geraldo Silva, sobre as contradições no interior do governo Lula e o fato de uma iniciativa inovadora no trato da Mídia haver partido do Ministério da Cultura e não das Comunicações:

“O fato de a iniciativa governamental dos Pontos de Mídia ter como protagonista o Ministério da Cultura e não o Ministério das Comunicações, revela claramente o posicionamento das forças políticas em conflito. Sem dúvida, as políticas de comunicação do governo Lula têm sido, até agora, bastante controvertidas. A escolha de Hélio Costa como ministro das comunicações, cujo principal triunfo à frente da carteira foi a escolha do padrão japonês de integração digital e o posicionamento 3vantajoso dos principais conglomerados de mídia nesse contexto, representa, de fato, um impasse do governo perante as forças que postulam uma política de democratização da informação e da opinião pública. […] Contudo, uma das virtudes do governo Lula tem sido a de deixar brechas ou espaços de ação política que possibilitam pensar alternativas de radicalização democrática. Os Pontos de Mídia significam um avanço nesse sentido. Porém, será preciso não apenas que iniciativas como essa se consolidem como política pública, mas que também ocupem espaço institucional que lhes corresponde: o Ministério das Comunicações.”4

Afora a experiência dos Pontos de Mídia Livre, o que sucede no Brasil e nos demais países, com maior ou menor grau de democracia, resvala em formas de controle, via cota de verbas publicitárias ou subsídios à circulação e distribuição, preservando a mídia dominante e amiga. Os Pontos de Mídia Livre, pela forma das chamadas públicas e prática, seguiram em caminho oposto, escancaradamente livre e experimental. Depois que eu saí do governo houve a tentativa de alguns editais na temática, porém, de alcance bastante inferior ao primeiro, de 2009. Em 2015 houve um edital, um tanto quanto mais restrito que o primeiro e que mesmo assim se efetivou, interrompido pelo Golpe de Estado de 2016.

Ao lado dos Pontos de Mídia Livre havíamos iniciado uma política para assinatura de revistas impressas nas temáticas de juventude, cultura, negritude, ambiente. Ao todo foram 10 publicações, cada uma devendo distribuir 5.000 exemplares a Pontos de Cultura e Bibliotecas Comunitárias. Foi algo bem sucedido, os recursos eram suficientes para o trabalho, incluindo a distribuição direta, e foram importantes para sustentar uma dezena de revistas impressas. Era um contrato que previa renovações automáticas por até cinco anos, quando eu saí do governo deixei os recursos alocados, no entanto, de forma abrupta, sem qualquer motivação, a nova gestão do MinC, em 2011, decidiu interromper as assinaturas, no que acarretou até mesmo no fechamento de algumas dessas publicações.

A despeito das dificuldades e descontinuidade, o conceito de Ponto de Mídia Livre permanece. Quem sabe algum governo, no Brasil ou em outro país, o adote com toda a prioridade que merece. Nesses tempos de guerra híbrida, lixo informacional, pós-verdade, negacionismo e cultura do ódio, a Mídia Livre e Comunitária é mais que necessária para a democratização da informação, tanto no acesso quanto na produção. Quanto mais informada uma sociedade, melhor ela estará aparelhada para processar a quantidade incalculável de estímulos e poluições produzidos pelas novas tecnologias da informação e comunicação. É vacina.

Cultura e comunicação são indissociáveis. O ideal em organização de governos, seria coloca-las lado a lado, em um só ministério, pelo sentido comum das ações. O ato de comunicar só é realizado em contexto cultural e uma cultura só se realiza quando comunicada. Todas as esferas da vida prática, do cotidiano, associadas a campos de poder e disputa, às elaborações do pensamento e ideologias, estão contidas e expressas na relação entre cultura e comunicação. Compreender essa dimensão resulta em um deslocamento de ênfase, quando a abordagem por transformações sociais deixa de ser economicista e com foco nas estruturas para uma maior atenção às questões culturais, maneiras de ser e interpretar o mundo e ao papel da sociedade na definição de um equilíbrio de forças. A fusão entre comunicação e cultura abre uma outra perspectiva para a transformação social. Comunicação contempla transmissão, recepção e resposta e esses não são fatores meramente técnico. Por princípio, cada Ponto de Cultura é um Ponto de Mídia Livre, mas cabe especificidade, desde que integrada à mesma copa da árvore, nutrida pela mesma seiva e raiz.

Pela ação conjunta Comunicação/Cultura encontramos uma Cultura Comum. Mas mesmo sendo algo comum a toda sociedade ela não é igual a todos. O desafio para uma cultura comum reside em assegurar acesso equilibrado às condições materiais e de informação (a base seria a escola pública, de qualidade, gratuita, laica e universal). É quando o encontro entre cultura e comunicação produz o salto dialético, ou quântico, a possibilitar transformações qualitativas no ordenamento social. Se a cultura é algo privilegiado de poucos, ela também é herança de novas classes que emergem. A cultura que grita da ancestralidade traz também a voz para a libertação da cultura dominante.

Todavia, tanto os valores da dominação como da libertação são constantemente reformulados e ressignificados, interagindo entre si. Daí o papel ainda mais estratégico da interação entre cultura e comunicação, pois essas desempenham papel crucial na manutenção e funcionamento do sistema dominante. Não há como falar em hegemonia sem compreender a árvore por cujo caule passam os líquidos da cultura e da comunicação. Para Raymond Williams, hegemonia vai além da cultura, se relacionando com todo processo social, distribuições específicas de poder e influência. Sem essa compreensão, a ação cultural em ponto isolados, por maior que seja a quantidade e diversidade torna-se incompleta, daí há que dar às mãos à comunicação. Da mesma forma, enquanto a comunicação não der as mãos à cultura, ela restará impotente e servil ao poder dominante. Em Williams, hegemonia:

“É todo um conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores -constitutivo e constituidor- que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente. Constitui assim um senso da realidade para a maioria das pessoas da sociedade, um senso de realidade absoluta, porque experimentada, e além da qual é muito difícil para a maioria dos membros da sociedade movimentar-se, na maioria das áreas de sua vida. Em outras palavras, é no sentido mais forte uma ‘cultura’, mas uma cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes”5

Os significados e valores que organizam a vida comum são elaborados a partir da interação entre comunicação e cultura. Desse modo, a busca por uma hegemonia é sempre processual, fruto de renovação e recriação contínuas, também de resistência, mas não só, tornando a descoberta do Particular-Universal uma chave a abrir portas nesse processo. Uma hegemonia não significa uma ação totalizante e uniformizadora, nem totalitária, uma relação de complexidade que envolve confrontos e negociações, que em todas as partes, também carrega o residual e o emergente. Cabe aos subalternos, aos “de baixo” compreender esse processo e se apoderar dos meios para o estabelecimento de maior equilíbrio nas relações de poder. A Mídia Livre é mais um ponto, mais que um ponto, um ponto-cruz, nessa rede, dando tamanho e aparência uniforme à rede, mas cada um com o seu desenho.

1 SZANIECKI, Barbara e SILVA, Geraldo – PONTOS DE MÍDIA – in. LUGAR COMUM, n. 27, pg. 96 https://uninomade.net/wp-content/files_mf/110810120832Pontos%20de%20Midia%20-%20Barbara%20Szaniecki%20e%20Geraldo%20Silva.pdf

2 In. https://outraspalavras.net/outrasmidias/contra-a-crise-do-jornalismo-o-possivel-papel-do-estado/

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4 SZANIECKI, Barbara e SILVA, Geraldo – PONTOS DE MÍDIA – in. LUGAR COMUM, n. 27, pg. 101

5 Williams, Raymond – CULTURA e SOCIEDADE, pg. 113 – Editora Nacional, 1969

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