“Mal menor”, cálculo preguiçoso que desarma a esquerda

Uma atitude, o “presentismo”, substitui a esperança concreta, que emerge das contradições reais, e os sonhos coletivos. Esta prisão subjetiva estabelece tendência à conciliação permanente, como no Brasil. Mas nas brechas do cotidiano há chaves para outro futuro

Arte: Picasso
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O que é o “mal menor”, em luta política, senão o prolongamento fantasmático de um presente condenado, até que o “mal maior” tenha tempo de se consolidar e vencer? Esse raciocínio, tão presente nos cálculos políticos do progressismo contemporâneo, é menos uma tática de contenção e mais uma forma de administração da derrota. Diante do avanço das formas mais grotescas da barbárie, a esquerda institucionalizada, em vez de operar uma ruptura, capitula ao presente e pede paciência ao futuro.

O conceito de “mal menor” atua como uma morfina ideológica. Ele não cura a dor, apenas a entorpece. Oculta a totalidade do problema e adia, indefinidamente, qualquer transformação radical. Mais do que isso: naturaliza o capitalismo como único horizonte possível. Aqui, vale lembrar Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra”. O mal menor é o nome dado ao estado de exceção normatizado. É a aceitação de que não há como romper com a estrutura, apenas mitigá-la — de preferência, com bons modos e gestão técnica.

A política do mal menor nasce da amputação do futuro. O tempo histórico, reduzido ao agora eterno, torna-se campo estéril para qualquer gesto de criação. Nesse sentido, é necessário retomar o diagnóstico benjaminiano do tempo como construção, como interrupção do contínuo. Benjamin, em suas teses sobre o conceito de história, nos oferece um gesto teórico fundamental: frear a marcha do progresso, romper com a continuidade e fazer do tempo um campo de disputas.

O presentismo — essa prisão subjetiva e política ao tempo curto da gestão — transforma o realismo em renúncia. Já não se trata de transformar o mundo, mas de administrá-lo com menos violência. Mas como confiar em quem promete apenas “não ser tão cruel”? A recusa do futuro se transforma em método de governo. A revolução é deslocada para o plano da metáfora ou da memória, e todo projeto de transformação estrutural é ridicularizado como utopia infantil ou herança de um século já encerrado.

Contra esse horizonte bloqueado, Ernst Bloch propõe o pensamento do “ainda-não”. Em O Princípio Esperança, Bloch não fala de um otimismo vazio, mas de uma esperança concreta — aquela que emerge das contradições reais da vida, que se expressa nos sonhos populares, nas insurgências, nos desejos abafados pelo cotidiano. Para Bloch, o tempo não é uma linha, mas uma fresta. O futuro é construído pelas brechas do presente, pela negatividade do que ainda não é.

O “mal menor” suprime essa brecha. Ele exige a renúncia à esperança como força material. Desmobiliza o desejo e impõe a conciliação como forma superior da razão. Mas não há razão onde não há horizonte. O “realismo” que se orgulha de aceitar as coisas como são é, na verdade, a ideologia dos que desistiram de transformar o mundo. É o realismo do conformismo.

Por isso, como nos ensina Bloch, é preciso pensar com e contra o tempo. Pensar em função do que pode vir a ser, e não apenas do que está dado. A esperança não é uma fuga, é uma crítica do presente. E essa crítica só pode ser feita a partir da recusa do “mal menor” como único caminho possível.

Marx jamais separou a crítica do presente da construção do futuro. Sua análise do capitalismo foi sempre atravessada por um horizonte emancipador. Em suas palavras: “a tarefa não é apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo”. Isso não significa ignorar as contradições do real, mas lê-las como motores de superação. A crítica marxista é, nesse sentido, uma crítica armada: não aponta apenas os problemas, mas propõe o conflito como caminho.

A estratégia do “mal menor” é, nesse quadro, uma negação da luta de classes. Ao renunciar ao antagonismo em nome da estabilidade, ela desativa o impulso revolucionário e transforma o conflito em gestão. E, como já dizia Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, a história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa.

No Brasil, a aposta recorrente no “mal menor” levou à conciliação permanente com o rentismo, o agronegócio, as elites coloniais e os interesses imperialistas. A cada eleição, reeditamos a escolha entre o retrocesso e o retrocesso um pouco menos acelerado. A cada ciclo, cresce o abismo entre as necessidades populares e os projetos de poder. A cada adiamento da ruptura, mais difícil se torna imaginar o novo.

Isso não quer dizer, evidentemente, que a luta pelas demandas imediatas deva ser abandonada. O desafio do militante revolucionário — hoje mais agudo do que nunca — é articular a crítica radical do presente às necessidades concretas do agora. É lutar por pão e por horizonte. É ser capaz de disputar o real sem aceitar sua forma atual como definitiva.

A esperança, nesse sentido, não é uma espera. É uma disposição ativa para interromper o curso do desastre. É, como em Benjamin, puxar o freio de emergência. E é também, como em Bloch, cultivar os sinais do porvir nas dobras do cotidiano: na insubordinação, na recusa, na imaginação popular, na utopia concreta que pulsa em cada ocupação, em cada greve, em cada gesto de recusa ao inaceitável.

A tarefa, hoje, é dupla: recusar o “mal menor” como lógica histórica e construir um novo realismo — o realismo do necessário. O possível, afinal, é sempre uma construção. E a transformação radical da sociedade não é uma miragem, mas a única saída concreta diante do colapso social, ambiental, civilizacional.

Não se trata, portanto, de substituir um otimismo ingênuo por um pessimismo esclarecido. O que se propõe é outra lógica de tempo, de política e de vida. Uma lógica que reconheça o sofrimento do presente sem se entregar a ele. Uma lógica que recuse os administradores da miséria e aposte na capacidade histórica dos povos de criar o novo.

O “mal menor” é o nome de um tempo sem saída. Mas a história não é um destino: ela é feita de rupturas, de insurgências, de lampejos. Como relâmpagos que rasgam o céu noturno, há momentos em que o futuro se revela como urgência. E nesses momentos, não basta escolher entre duas formas de derrota: é preciso ousar vencer.

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