WikiFavelas: As mídias periféricas contra a barbárie

Na pandemia, comunicadores populares foram importantíssimos para as favelas, mostra o Dicionário Marielle Franco. Difundiram informações e promoveram ações solidárias. Agora, articulados em rede, tornam-se novas lideranças comunitárias

Ação com grafite da Frente de Mobilização da Maré ©Frente de Mobilização da Maré
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Dez anos depois, as Jornadas de Junho de 2013 ainda provocam grandes controvérsias sobre seu significado social e político, desde análises que enfatizam a novidade representada pela ação coletiva que assumiu uma forma horizontalizada e conectada pela internet, dando origem ao boom dos coletivos e pautas identitárias que proliferaram nessa década, até as explicações que encontram na negação da política como lugar da corrupção, o ovo da serpente que terminou gerando o fenômeno do bolsonarismo.

Se bem é verdade que grupos de direita como o MBL e Vem para a Rua foram os grandes beneficiários políticos que souberam canalizar a insatisfação coletiva em proveito de suas pautas conservadoras, as Jornadas de Junho fizeram parte de um contexto global de insatisfação com os resultados das políticas de austeridade que aumentaram as desigualdades e aumentaram a concentração da riqueza, beneficiando sobejamente o 1% mais rico. Outro fator detonador diz respeito às transformações na sociabilidade, em face à ausência de projetos coletivos em sociedades que incentivaram, durante décadas, o individualismo competitivo, bem como a falta de perspectiva de absorção dos jovens em mercados de trabalho cada vez mais precarizados. No Brasil, o contexto de insatisfação ganha contornos particulares, em uma conjuntura de crise econômica, o que se manifesta no elevado número de greves no período, de crise política, com a atuação deletéria da Lava-Jato e o enfrentamento do governo pelo Congresso, que culminou no golpe de 2016. Adicionalmente, uma crise moral aprofunda a falta de legitimidade dos governos, ao dar prioridade à promoção de grandes e dispendiosos eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, quando a população se via prejudicada pela falta de serviços públicos que atendesse suas demandas.

Enquanto as Jornadas de Junho de 2013 se tornaram fenômeno midiático, político e objeto de análises acadêmicas que atravessaram a década, o fenômeno da organização da ação coletiva em territórios de favelas e periferias só ganhou algum destaque durante a pandemia, quando, na ausência de políticas públicas efetivas, os(as) moradores(as) se organizaram para enfrentar o quadro sanitário e o agravamento provocado nas condições de vida da população, tema que o Dicionário de Favelas Marielle Franco tem tratado de forma permanente. Trata-se de trazer à luz o conjunto de experiências concretas de desenvolvimento de ações de gestão territorial, organização, mobilização de recursos, desenvolvimento e difusão de tecnologias, produção de dados e uso da comunicação comunitária como instrumento de construção de redes de ação coletiva.

Para além do acervo acumulado, importa levantar questões acerca das razões que levam os moradores a se organizarem em situações de escassez de recursos, ausência de recursos políticos, tecnológicos e financeiros e ameaça constante de violência estatal ou da parte de grupos paramilitares e traficantes que dominam os territórios. Algumas dessas questões pretendem ser respondidas pela pesquisadora norte-americana, Anjuli Fahlberg, professora de Sociologia na Tufts Universty, que acaba de lançar neste ano o livro de sua tese de doutorado “Activism under Fire”, pela Oxford University Press. Trata-se de um profundo estudo realizado na Cidade de Deus, no qual a autora tenta entender a singularidade das formas de ativismo em zonas conflagradas, diferenciando-as dos movimentos sociais tradicionais. O ativismo, nesses casos, é identificado como uma estratégia de não-violência, adotada pelos atores políticos como parte da sua resistência e adaptação ao contexto restritivo e violento onde habitam. A autora afirma que o ativismo nas favelas constrói uma esfera de política da não-violência, simbolicamente em oposição à esfera da violência do território. Por fim, ela identifica três tipos de configurações das ações coletivas que consubstanciam a esfera política da não violência: o “assistencialismo transformador”, a “militância comunitária” e a “resistência cultural”. Todas elas apresentam diferentes possibilidades de provocar mudanças a partir da sua ação coletiva.

As categorias acima devem ser tomadas como tipos ideais, que condensam um conjunto de características definidoras de uma configuração particular que as diferencia das demais. No entanto, a pandemia mostrou que em uma situação de emergência social, econômica e sanitária de tal magnitude, a dinâmica pode inverter papeis, subvertendo os esquemas analíticos. Assim, jovens que foram criminalizados no passado por seu envolvimento em bailes funks com batalhas de corredor, passaram a atuar no desenvolvimento de ações assistenciais, enquanto comunicadores comunitários que se organizaram para difundir informações imprescindíveis para que a população adotasse medidas não farmacológicas no enfrentamento da pandemia, assumiram papeis de lideranças comunitárias no pós-pandemia.

O Dicionário de Favelas Marielle Franco selecionou o verbete da comunicadora comunitária do Complexo da Maré, Gizele Martins, que documenta a experiência dos grupos de comunicadores da Maré e da Cidade de Deus durante a pandemia, e seus possíveis desdobramentos. (Introdução: Dicionário de Favelas Marielle Franco)

De comunicadores comunitários a lideranças políticas nas favelas a partir da pandemia de covid-19

Por Gizele Martins

Trago aqui uma breve reflexão a partir da observação participante e de entrevistas feitas a integrantes dos dois coletivos de favelas do Rio de Janeiro. A partir de março de 2020, inúmeros coletivos de favelas do Rio passaram a se auto organizar para buscar formas de sobreviver em meio a um momento de grandes incertezas diante de um vírus que se colocava e ainda se coloca como uma grande ameaça à vida humana. Esses coletivos se organizaram em campanhas de comunicação com base no conhecimento da comunicação comunitária para falar sobre a covid-19, e fizeram também ações de solidariedade locais e em outras favelas. Trata-se de grupos autônomos e, muitos deles, sem vínculo jurídico, o que dificultou conseguirem recursos via editais etc. Por isso, foram estratégicos no uso das mídias digitais para conseguirem apoio financeiro. Pelas redes, estas frentes de mobilização contextualizavam a situação de abandono, denunciavam a fome, as mortes, a transmissão do vírus, a situação de desemprego e, também, divulgavam cards, davam entrevistas e participavam de inúmeras lives pedindo doações. Estes comunicadores comunitários, integrantes destes coletivos, passaram a assumir um papel estratégico dentro das suas devidas favelas, passaram a ser vistos como representantes, lideranças políticas para dentro e fora das favelas. Sendo este um papel assumido antes pelas associações de moradores e pelas tradicionais organizações de direitos humanos. Mas, com tamanha falência da falta de representatividade destes órgãos dentro destes locais, que estas mídias comunitárias passam a assumir este papel, e serem reconhecidos hoje como lideranças políticas foi algo automático e aos poucos estes meios vêm sendo reconhecidos desta forma.

Comunicação comunitária para combate à pandemia

Foram inúmeros moradores e moradoras das áreas empobrecidas do país que se auto-organizaram durante a pandemia da covid-19 para suprir as próprias necessidades sanitárias, comunicacionais e informativas e de insegurança alimentar. Essa auto-organização surge em um momento de país em que era governado por Jair Bolsonaro, que ficou no poder de 2018 a 2022. Um governo de extrema direita e que abandonou e negou direitos à própria população, ele mentiu e influenciou as pessoas a não tomarem vacina, cortou verbas emergenciais e retirou diversos outros tipos de direitos já conquistados historicamente pela população brasileira.

Neste governo a regra era a ausência de direitos aos mais pobres. Por isso, mas também por estas populações já terem em seus costumes a prática da organização coletiva e comunitária, comunicadores comunitários de áreas como: periferias, favelas, quilombos, indígenas, campo, convocaram as populações de seus territórios – fossem eles militantes ou ligados a um partido ou movimento ou não -, a se integrarem e organizarem juntos materiais de comunicação comunitária para informar a população sobre as recomendações científicas referentes à covid-19.

No Rio de Janeiro, historicamente, o pouco que há de direitos sociais dentro destes territórios foi e ainda é garantido a partir da organização e mobilização daqueles que habitam este chão favelado. Ou seja, as favelas e periferias são conhecidas por seu abandono social, mas também por criarem alternativas de organização comunitária, como as ocorridas nas décadas de 1970/80 e 90, com a chegada das associações de moradores formadas para suprir as necessidades sociais, culturais e políticas locais. O objetivo naquela época era prestar serviços comunitários e organizar o território, além de dialogar com os governantes da época para a realização de políticas públicas[1].

Passadas algumas décadas, ainda hoje, é grande a diferença social e ausência de direitos dentro dos territórios empobrecidos da cidade no Rio. Foi neste período da pandemia da covid-19 que a exclusão social ficou ainda mais evidente[2]. Afinal, são as favelas e as periferias os locais que sempre sofreram com a falta de água, habitação, energia, saneamento básico, educação, saúde, cidadania etc., e sobreviver à pandemia dentro destes locais passou a ser um imenso desafio.

Por conta desta ausência de direitos e, consequentemente, pelas populações faveladas já se auto-organizarem historicamente para suprir as próprias necessidades, em 2020, a partir do anúncio oficializado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) da existência de uma pandemia da covid-19, os moradores foram além das estruturas já conhecidas como as organizações sociais e as associações de moradores e construíram coletivos autônomos de mobilização. Os próprios moradores se auto-organizaram para acharem saídas coletivas e tentarem sobreviver.

De acordo com mapeamento realizado pelo Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)[3], em 2022 mais de 60 coletivos se auto-organizaram e atuaram de forma orgânica dentro de diferentes favelas e periferias do Rio. E, quando se fala em Rio de Janeiro, sabe-se que esta é uma cidade conhecida por sua divisão social e racial, é um estado dividido entre asfalto e favela. De um lado está a paisagem “linda e bela do cartão postal”, do outro estão as favelas e as periferias sobrevivendo em meio à violência e controle de Estado e ao empobrecimento econômico e social[4].

Ao longo desse texto, algumas experiências serão mencionadas mostrando como foi a organização e como hoje demonstram sair desse papel de comunicador para lideranças comunitárias. Um desses grupos surgiu no conjunto de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, favela com uma população local de 140 mil moradores[5]. A Frente de Mobilização da Maré surgiu em março de 2020, quando comunicadores comunitários que já atuavam de alguma forma na favela, organizaram um plano de comunicação para falar sobre os cuidados e formas de transmissão do vírus. O plano foi todo pensando na realidade local, já que as informações passadas pelas mídias comerciais não contemplavam a realidade local.

Para além da campanha de comunicação, com o aumento da fome e do desemprego, que chegou a 33,1 milhões de brasileiros, o equivalente a 15,5% da população, 14 milhões a mais de pessoas passando fome na comparação com o primeiro levantamento realizado em 2020, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o apoio da Fiocruz, a Frente de Mobilização da Maré conseguiu atender em 2020 cerca de 4.500 famílias por mês com cestas básicas e kits de higiene.

Outra favela que teve grande mobilização comunitária foi a Cidade de Deus, localizada na Zona Oeste do Rio e com população local de 38 mil, moradores locais organizaram o coletivo Frente CDD contra covid-19. O objetivo inicial foi a de levar informações sobre o coronavírus para os moradores, posteriormente, com o aumento da fome e do desemprego, passaram a doar cestas básicas, álcool e máscaras.

Nenhuma dessas duas Frentes atuavam antes da pandemia. Os dois coletivos, mesmo atuando em favelas completamente diferentes uma da outra, passaram por dificuldades parecidas: falta de CNPJ, de apoio jurídico e financeiro; de local para armazenar as doações; disputas internas com as associações e organizações locais, dificuldade de conseguir organizar um planejamento de atuação porque as doações eram avulsas; ainda tiveram que passar pelo desafio de se auto-organizar em meio a uma pandemia, mesmo passando por problemas como a falta de internet e outras estruturas.

Mesmo presenciando grandes disputas internas, sofrendo com a falta de apoio jurídico para disputar editais, os dois coletivos não paralisaram os seus trabalhos, ambos usaram como estratégia as mídias digitais, fizeram uma assessoria de imprensa para fortalecer a marca de seus coletivos e conseguiram “furar a bolha social” para tentarem verbas e manter as ações de comunicação comunitária e as ações sociais para salvar a vida coletiva.

Frente Maré e Frente CDD: a atuação política comunitária a partir da identificação e a falta de direitos

A Frente de Mobilização da Maré é um coletivo de comunicação comunitária que teve início em março de 2020, no auge da pandemia da covid-19, para divulgar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Inicialmente, o coletivo fez um plano de comunicação voltado para as 16 favelas da Maré[6].

Este plano pretendia atingir os mais diversos públicos da favela, por isso, foram utilizadas diferentes ferramentas de comunicação, assim como: cartazes, faixas, carro de som, bicicleta de som, rádios, post, grafite de rua, podcast, além da atuação nas mídias digitais como: podcast, páginas no Instagram, Facebook, lista de transmissão no Whatsapp, Tik Tok, Youtube, Flickr e site para armazenamento do conteúdo fotográfico e matérias.

Para além da atuação na comunicação comunitária, o grupo começou uma ação social dentro da Maré, já que o número de famílias em estado de carência alimentar, sem acesso à água, máscaras e remédios estava aumentando[7]. Em apenas um dia de cadastro para recebimento das cestas básicas e kits de higiene, 15 mil famílias da Maré se inscreveram no intervalo de três horas, para conseguir uma das 4.500 mil cestas que seriam distribuídas.

As redes sociais para este grupo foram e ainda são fundamentais, isto porque é pelas redes sociais que conseguiram e ainda pedem doações[8]. Mas, quando se fala de troca e da solidariedade, foi entre os próprios coletivos que as doações de máscaras, álcool, cestas e outros objetos, aconteciam.

Para Vanusa Borba[9], moradora da Maré, integrante da Frente de Mobilização da Maré desde 2020, foi um desafio construir um coletivo desta proporção e lidar com a falta de verbas. “Nós criamos a Frente Maré sem saber que a pandemia iria durar tanto tempo. Nossa falta de experiência e estrutura fez a gente entender que era preciso sermos rápidos na construção deste coletivo, pois vimos que éramos o único suporte para os moradores. As pessoas estavam morrendo. Outras não tinham dinheiro para comprar álcool, água ou máscaras. Combinamos de continuar o coletivo até o fim da pandemia, com isso, passamos a nos organizar melhor e a entender que a comunicação era estratégica também para fora da favela. Começamos a construir nossas redes sociais, fizemos uma vakinha online, compramos um celular para contato direto com a gente, criamos nosso site e fizemos assessoria de comunicação para sair nas mídias de fora da favela para pedir apoio financeiro e doações. Organizações e outros coletivos nos ajudaram bastante não só com materiais, cestas, cartão de alimento, apoio com CNPJ, mas com apoio emocional também”.

Concordando com Vanusa, Naldinho Lourenço[10], fotógrafo comunitário e integrante da Frente de Mobilização da Maré desde o início, disse que cinco pessoas começaram com o trabalho da Frente Maré sem pretensão de durar tanto tempo: “Lembro que a gente só queria fazer por uma ou duas semanas um trabalho de conscientização sobre a pandemia, porque não adiantava dizer para as pessoas lavarem as mãos se a gente não tem água. As coisas foram piorando e aí sentimos a necessidade de pedir doação. Postamos vídeos, dados sobre mortes nas favelas, saímos pedindo doações e foi assim que a gente sustentou uma mobilização com mais de 100 pessoas pelas favelas da Maré. Mas não foi só na Maré que tivemos um coletivo como este, no mesmo momento, a gente viu experiências como a da Maré surgindo em outras favelas e essa troca entre nós foi muito importante. Foi o momento que a gente trocava não só sobre o que estava ocorrendo na favela, mas trocamos até mesmo apoio financeiro. Lembro que em junho de 2020 a gente ocupou as ruas do Rio de Janeiro com atos intitulados de: Nem tiro, nem fome, nem covid: A favela quer viver!”.

Na Cidade de Deus, o início das mobilizações e o processo de construção do coletivo não foi diferente. Com aproximadamente 38 mil moradores, a favela, localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi uma das primeiras a registrar casos de covid-19. Com o primeiro caso, o coletivo Frente CDD, começou a se articular. Inicialmente o coletivo produziu faixas, carro de som e fizeram páginas no Instagram e Facebook para divulgar vídeos pedindo doações. Após alguns meses de produção na parte da comunicação, eles passaram também a doar cestas básicas e kits de higiene para moradores mais vulneráveis.

Na Cidade de Deus, assim como é a realidade de muitas favelas, os moradores trabalham informalmente e ficaram sem renda já no começo da pandemia. Por isso, passaram a pedir não só apoio financeiro para produzir materiais de comunicação para falar sobre os riscos do coronavírus, mas passaram a pedir produtos de higiene e alimentos perecíveis.

Um dos fundadores da Frente CDD, disse que “O que nos uniu no primeiro momento não foi a covid-19, foi saber como o Estado iria se fazer ausente nas favelas do Rio de Janeiro, como se fez. Sabíamos que o coronavírus para a gente, que é preto, pobre e favelado, chegaria diferente”, conta André Dread[11].

Jota Marques[12], um dos jovens que integrou e fundou a Frente CDD contra a covid-19, diz que o grupo comunitário iniciou sem qualquer tipo de apoio financeiro, não tinham perspectiva de que conseguissem toneladas de doações de alimentos ou que conseguissem tantos apoiadores que fez com que a campanha durasse todo o ano de 2020. “Sem dúvida, colocar a cara nas redes sociais pedindo doação foi importante para sustentar o nosso trabalho em 2020. Mas foi o ‘nós por nós’ que fortaleceu e fez a gente entender naquele momento que era necessário estarmos em contato um com o outro. Não tínhamos apoio algum do governo, era apenas nós mesmos tentando lutar para garantir a própria vida e a vida dos nossos. Entre um coletivo e outro, a gente repartia o que ganhava. Literalmente, repartimos o pão”.

Assim como colocado por Jota acima, a troca solidária não ocorreu apenas dos moradores locais para a sua própria favela, foi grande a comunicação e a conexão entre os próprios coletivos de favelas e periferias não só do Rio de Janeiro, mas como do país e do mundo. Nas favelas do Rio, assim como Maré e Cidade de Deus, a comunicação entre os integrantes dos dois coletivos era diária. Além disso, um contava com o outro quando apareciam problemas. Por exemplo, se a Frente Maré tinha mais contato com os movimentos sociais tradicionais do Rio, os integrantes da Frente Maré tentavam articular mais doações ou até mesmo CNPJ emprestado para o coletivo da Cidade de Deus.

Exemplo concreto dessa troca entre os dois grupos citados, foi em relação à própria construção das Cozinhas Solidárias da Frente Maré e da Frente CDD, pois em 2021, com a flexibilização, houve a diminuição das doações, mas, infelizmente, houve o aumento da fome e do desemprego. Com isso, os dois grupos se organizaram e disputaram o edital da Fiocruz voltado para coletivos que estavam na linha de frente no combate ao coronavírus. As duas Frentes de Mobilização se organizaram e escreveram o projeto juntos, fazendo nascer as Cozinhas Solidárias, uma na Cidade de Deus e outra na Maré.

De comunicadores comunitários a lideranças políticas comunitárias

A partir das experiências mencionadas acima, é possível afirmar que há hoje uma nova forma de auto-organização feita a partir das mídias comunitárias. Antes da pandemia estas mídias estavam atreladas a associações de moradores, organizações sociais sem fins lucrativos e outros modelos mais antigos de organização interna nas favelas. A partir de 2020, pode-se perceber ainda uma mudança de comportamento/prática destes coletivos formados por comunicadores e mídias comunitárias, eles vão além do fazer comunicação, elas passaram a atuar como agentes políticos e representativos por causa do vazio deixado por organizações sociais e por associações de moradores.

Para Vanusa, da Frente Maré, esta auto-organização é muito mais difícil do que colocar uma matéria ou produzir um post: “durante os anos mais difíceis da pandemia, passamos a ir além do combate a fake news, nós passamos a agir no vazio das grandes organizações sociais e das associações de moradores das favelas. Elas não atuaram em 2020, por causa disso, nós fomos demandados pelos moradores e passamos a ir além da comunicação e atuamos no atendimento psíquico, entregando cestas básicas e tantas outros problemas que ocorreram”.

Estes coletivos estão se desafiando a descobrir como se auto-organizar, pois estavam acostumados a estarem dentro de uma estrutura já organizada, com CNPJ, com assessoria de imprensa, com equipe de financiamento etc. Mas, é certo, que elas têm uma oportunidade de serem diferentes politicamente e ideologicamente ao que se tornaram hoje as associações e as grandes ONGs.

Além disso, a comunicação comunitária hoje, para além de pautar cidadania, ela pratica cidadania no seu sentido mais amplo, ela combateu durante o governo Bolsonaro de forma ideológica as fake news e hoje participa da vida ativa da comunidade, ela ouve as demandas, procura alternativas e busca no momento formas de se auto-organizar de forma institucionalizada ou se prepara para se formar como uma nova instituição representativa dentro das favelas do Rio de Janeiro. “É no terreno das ideologias – acionadas/mobilizadas pela comunicação – que se dá a constituição das subjetividades coletivas. É aí, diria Gramsci, que os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.” [13].

Complementando, Vanusa finaliza afirmando que “nós somos um conjunto de ações, é comunicação, saúde, assistência social, psicologia, encaminhamento de casos, representação em entrevistas, jornais, palestras, audiências públicas – ou seja, era o que as antigas organizações faziam antes”. Junto a isso, passados quase três anos do início da pandemia da covid-19, estes comunicadores além de tentarem ampliar os seus trabalhos dentro das favelas do Rio, internamente entre a juventude que produz esse trabalho, estão tentando se formar na área da comunicação comunitária, mas também politicamente e de forma coletiva.

Para finalizar, hoje estes coletivos estão se reorganizando. Alguns não existem mais enquanto Frentes ou grandes coletivos como eram em 2020, outros estão buscando se auto-organizar tentando entender como funciona uma institucionalidade, pesquisando como conseguem ter um CNPJ, como conseguem financiamentos para continuarem seus trabalhos nestes locais. Já outros estão preferindo se organizar enquanto movimentos, coletivos autônomos vinculados a diversos outros coletivos que atuaram em meio a pandemia em 2020, é daí que vem surgindo neste momento a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas, que reúne mais de dez coletivos que atuam em todo o país.


Referências

COUTINHO, 2014, p.15, A Comunicação do Oprimido e Outros Ensaios.

PIRES, E.; PÁDUA, J.; ANDRADE, L. e SILBERMANN, D., 2019. Memória coletiva, história da favela: conquistas, tesouros e violência no espaço dos pobres. Disponível em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php?reqid=1268.

Nós por nós: A troca solidária entre dois coletivos de favelas durante a pandemia da Covid-19, Gizele Martins, Raquel Paiva.

Intercom: Favela da Maré: a comunicação comunitária como geradora de mudança social, Gizele Martins, Raquel Paiva.

FRENTE MARÉ A Força dos Novos Coletivos no Contexto da Sociedade Incivil e da Covid-19, Gizele Martins e Raquel Paiva: https://impactum-journals.uc.pt/mj/article/view/11988.


  1. PIRES, E.; PÁDUA, J.; ANDRADE, L. e SILBERMANN, D., 2019. Memória coletiva, história da favela: conquistas, tesouros e violência no espaço dos pobres. Disponível em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php?reqid=1268.
  2. https://www.abrasco.org.br/site/noticias/solidariedade-afeto-e-companheirismo-sao-profilaticos-no-enfrentamento-a-pandemia/49835/.
  3. https://leccufrj.wordpress.com.
  4. Militarização e Censura: A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré, Ed Gramsci, página 23, Martins, Gizele.
  5. A história da Maré é muito rica em detalhes, fatos históricos, lutas e resistências, alegrias e tristezas, enfim é cheia de vida, de vida de homens e mulheres que um dia acreditaram que poderiam até mesmo construir o seu próprio chão, segundo expressão utilizada por Vieira. (2008, p. 99)
  6. As organizações que passaram a ser parte da Frente de Mobilização da Maré no início do ano de 2020 foram: Museu da Maré, Roça Rio, Maré Vive. Maré 0800, Casulo, Ceasm, Fazendo o Bem, Agência Palafitas, Pra Elas, PodcastRenegadus, CEC Orosina Vieira e moradores e moradoras.
  7. Em 2020, o coletivo atendeu cerca de 4.500 mil famílias com cestas básicas e kits de higiene. Em 2021, 400 famílias por mês e este ano foi montada uma cozinha solidária para atender aos mais vulneráveis da Maré.
  8. https://www.frentemare.com.
  9. Entrevista online com Vanusa Borba, dia 10 de jan de 2023.
  10. Entrevista online com Naldinho Lourenço, dia 10 de jan de 2023.
  11. Matéria no UOL, https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/04/16/coletivo-ajuda-15-mil-familias-na-comunidade-cidade-de-deus-na-pandemia.htm.
  12. Entrevista online com Jota Marques, dia 10 de jan de 2023.
  13. COUTINHO, 2014, p.15, A Comunicação do Oprimido e Outros Ensaios.
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